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quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Feliz Ano-Novo!


365 dias se passaram, mais um ano se foi para debaixo do tapete. Aqui estamos nós prestes á celebrar o final de mais um ciclo e o início de outro. Mas...
Será que temos o que comemorar? Será que essa comemoração não se torna vazia quando olhamos pra trás e percebemos que seguimos reincidindo nos mesmos erros de novo, e de novo, e de novo?
Nossos políticos seguem escondendo dinheiro nas meias. Nós continuamos impotentes diante da corrupção, relegados ao papel apenas de decidir se haverá um rodízio de políticos incompetentes, ou corruptos ou ambos, ou se manteremos os mesmos de sempre em verdadeiras dinastias de torpeza e atitudes vis.
Nós seguimos destruindo o mundo, com nossa sede cega de poder e dito progresso. Quantas espécies teremos de exterminar até que sejamos capazes de perceber que precisamos puxar o freio de mão antes que essa ladeira rumo á destruição se torne demasiado íngreme e não haja mais volta?
Nos seguimos sendo asquerosos uns com os outros, nos matando mutuamente de formas tão hediondas que nem é bom pensar. Conflitos étnicos, territoriais e econômicos explodem em todas as partes do globo á cada dia sem que ninguém ligue ou tome uma atitude prática com relação á isso.
Talvez estejamos ocupados demais tentando sobreviver. Eu sei como é. Isso acontece comigo também. Nós estamos presos nesse mecanismo vil de sociedade em que não podemos parar de correr, não podemos dar mole, ou seremos ultrapassados por competidores ferozes, ou pela evolução que acontece á cada minuto.
Não peço que ninguém, dê as costas á suas responsabilidades práticas, que ninguém mande o bom senso lá pra casa do Capita e deixe de lado as preocupações imediatas. Mas, quem sabe, pelo menos um pouquinho, mesmo que seja antes de estourar o champagne, ou a espumante, pense um bocadinho, e veja se não seria melhor se comportar diferente em 2010 pra ter mais motivos pra comemoração na virada pra 2011.

Um grande ano-novo á todos os leitores, pro não leitores não. Até por que eles não vão ver mesmo. Abraço, até 2010 e dá-lhe Inter na Libertadores!

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Ranolfo V.S. A Vida


Os socos sucessivos faziam os dentes de Ranolfo chacoalharem como pêndulos dentro de sua boca.
Com o olho direito, que ainda podia ser aberto, ele mirou seu adversário, saltando á sua frente, o queixo protegido pela mão esquerda, a mão direita projetada á frente, dançando como uma serpente, esperando um descuido de Ranolfo para fustigá-lo novamente com um novo golpe.
Ranolfo gingou o corpo cansado, lançando a mão direita buscando os rins do outro lutador, foi um bom soco, mas não o bastante, a resposta imediata chegou como a ira de Deus, um cruzado de direita encontrou o malar de Ranolfo, ele ficou zonzo, deu dois passos pra trás, inclinando o corpo pra frente tentando evitar a queda. Má ideia, outro cruzado, de esquerda, explodiu na orelha direita de Ranolfo, que passou á escutar apenas um assobio agudo com aquele ouvido. Ergueu as mãos como se estivesse em slow motion, tentando proteger a cabeça, e sentiu um direto violento na boca do estômago que fez o ar abandonar seus pulmões como seu pai fizera com sua mãe.
Por que pensara nisso em uma hora tão imprópria ele não sabia dizer.
Sempre tivera esse problema. Divagava demais. Voava ao longe desde a infância. Provavelmente por que seu mundo particular de divagações era menos duro do que o mundo real.
Na escola ele já fazia isso. Não que Ranolfo fosse um mau aluno, não, ele era, acredite, o primeiro da classe. O preferido da professora, tinha amigos. Apenas gostava mais de seu próprio mundo.
Outro golpe, o arrancou de suas reminiscências, um gancho de esquerda acertou-o no fígado, a pontada de dor se espalhou pelo corpo. Ele ergueu a guarda á tempo de evitar mais um golpe da esquerda adversária na cabeça, mas com isso abriu a guarda oposta pra uma nova pancada, dessa vez no olho esquerdo. A dor foi acompanhada de uma sensação de frio no local da pancada, e o sangue começou á escorrer abundantemente da ferida recém aberta.
Ele gingou de um lado pra o outro, tentou saltar, mas suas pernas pesavam uma tonelada. Lançou alguns jabs, ganhando distância, se afastou do corner. O antagonista ainda saltava, leve, á sua frente.
Ele lembrou de seu pai, o ensinando á pular corda, foi um bom momento, um dos raros bons momentos que teve com seu pai. Normalmente o homem estava bêbado, ou deprimido.
Não tivera a vida que desejava, perdera boas chances, jamais se preocupou em tentar ir além do sonho de ser pugilista. Quando não pôde levar a vida que almejava no esporte, a própria vida se encarregou de o levar á lona. Mas Ranolfo era forte, alto, seu pai sempre achara que ele podia ser um grande boxer. Sua mãe o queria na escola, seu pai o queria no ringue. Ninguém ligava pra o que Ranolfo queria. Quando seu pai foi embora, após uma briga feia com sua mãe que terminou em uma agressão, Ranolfo resolveu que seria um boxeador, não pra orgulhar seu velho. Não, ele queria esfregar seu sucesso na cara do pai e mostrar o quão melhor era.
Ranolfo seguiu estudando, mas passou á se dedicar com afinco aos treinos. Galgou á custa de suor e sangue os degraus do esporte onde um em mil chegam, de fato, ao estrelato.
Ranolfo treinou, lutou em ringues improvisados em parques de diversões, anfiteatros e até em restaurantes. Foi pago com comida, com equipamento, e ás vezes nem sequer era pago.
Jamais desanimou. E agora, ali estava ele, lutando pelo título amador. Sua grande chance de se profisionalizar, arranjar um empresário e continuar subindo. Ele sabia que podia, apenas...
Mais um soco. Outra vez no fígado. Esse foi sentido até pelos ancestrais de Ranolfo. Ele revidou com vários jabs e cruzados, mas o adversário se fechou na defensiva, e Ranolfo sabe que não adianta nada se cansar batendo nas luvas do sujeito. Ele recuou.
... Apenas precisava de uma chance. Essa chance podia ser agora. E essa era uma chance única. O esporte não era como Valéria. Valéria aceitava Ranolfo de volta não importava quantas vezes ele falhasse para com ela. Os braços finos de Valéria. Suas coxas delgadas e suaves. Os seios macios de Valéria sempre aninhavam Ranolfo. Mesmo quando ele gastou o dinheiro da caderneta de poupança dela apostando em si mesmo em uma luta e perdeu. Mesmo quando ele a envergonhou gritando com ela na frente das amigas, mesmo quando Ranolfo, após a morte de sua mãe quebrou todos os móveis do apartamento de Valéria. Valéria o perdoava sempre. Sempre lhe dava outra chance. Mas o esporte não era Valéria. E certamente o homem que esmurrava Ranolfo com fúria contra as cordas naquele momento também não era.
Um soco, dois, três, o nariz de Ranolfo se quebrou, uma narina ficou inútil. O sangue seguia escorrendo grosso por cima do olho de Ranolfo. Ele pensou em se jogar no chão para evitar a surra e ganhar os segundos da contagem, mas francamente não sabia se poderia se levantar. Foi quando o soar do sino o tirou de seus devaneios.
O juíz segurou as luvas de Ranolfo. Falou com ele. Ele não ouviu nada. Apenas fez que sim com a cabeça, e depois que não.
O juíz não disse nada, mas ficou olhando com atenção enquanto Jeová, seu técnico, e Ramiro, o auxiliar, limpavam sua ferida com uma toalha áspera e cotonetes e a empapavam com vaselina.
Ranolfo sentiu muita dor quando Ramiro endireitou se nariz, mas foi apenas por um segundo e o nariz voltou á funcionar, depois ele continuou sentindo só a dor de todo o resto.
Jeová, um negro de sessenta e poucos anos que aparentava pelo menos dez á mais, gritava com ele, ele não ouvia, seguia apenas balançando a cabeça em sinal de positivo.
Jeová apontava com os dedos indicador e o médio para os próprios olhos, ele falava rápido, disparando gotas de saliva como uma metralhadora de cuspe. Ranolfo acompanhou com os olhos enquanto uma dessas gotas voava da boca de Jeová e sentiu quando ela pousou em seu nariz. Sentiu um pouco de nojo, mas não demonstrou, Jeová estava sempre atolado no sangue e no suor de Ranolfo, ele podia suportar uma cuspida do técnico e amigo que lhe oferecia guarida quando Valérias o expulsava de casa e ele precisava esperar ela se acalmar para voltar.
O sino bateu outra vez. Foi só então que Ranolfo ouviu Jeová dizer:
-Ele tá te matando. Mata ele primeiro, senão cê tá fodido.
Ramiro enfiou o protetor de volta na boca de Ranolfo, lhe deu um tapa na cabeça e disse "Pega ele, caralho!".
Ranolfo fez outro sinal de positivo com a cabeça, foi saltando até o centro do ringue. O outro pugilista veio pra cima dele, dançava á sua frente, lançou um jab de direita, Ranolfo se esquivou, um cruzado de esquerda, Ranolfo bloqueou, um direto de direita, esse encontrou Ranolfo. No meio do rosto, entre o nariz e o olho direito. Ranolfo sentiu como se tivesse sido atropelado por um Fiat 147, mas deu graças á Deus por não ter sido em cheio no nariz, nem no olho esquerdo. Deu cinco passos pra trás, pensando na professora Miriam, de matemática. Primeiro ano do ensino médio. Na época já era ensino médio. Ranolfo era dessas pessoas que fez Primeiro Grau e Ensino médio. Enfim, a professora Miriam era ruiva, tinha cabelos curtos, era bonita de rosto e tinha uma bunda espetacular. Épica, arriscaria Ranolfo. Ela era uma mulher fornida, não gorda, não... Fornida. Tinha carne pra morder, era o que dizia Ranolfo.
Miriam fazia piadas sexuais na sala de aula. Nada explícito, tudo subentendido, mas Ranolfo era inteligente e entendia as meias palavras de Miriam. Procurava em sebos por revistas pornográficas que tivesse ruivas de cabelos curtos para fantasiar com a professora Miriam. Coisa de guri, pensou Ranolfo, e riu. Um meio sorriso e um "Eh, eh.".
Seu adversário achou que fosse uma bravata, e se enfureceu. Avançou contra Ranolfo com raiva faiscando nos olhos como se dizendo "Ria disso, agora.".
Os golpes eram como pedradas, acertavam Ranolfo que tentava erguer a guarda, mas protegendo o corpo apanhava no rosto, e protegendo a cabeça tinha seu corpo surrado.
Ficou com vergonha, perderia a luta tomando uma surra proverbial por causa de uma reminiscência. Que vergonha, que vergonha. Outro momento de vergonha. Ranolfo colecianava alguns. Ele podia listar com facilidade três deles que lhe eram particularmente vexatórios.
Em terceiro estava uma festa com Valéria, ela chegou com sua amiga, Francine, e um sujeito, Ranolfo cumprimentou Francine com um abraço e estendeu a mão pro sujeito dizendo "Prazer, Ranolfo.". O problema é que o camarada já era namorado de Francine á alguns meses, inclusive já havia conhecido Ranolfo e conversado por horas á fio em outra ocasião, não muito tempo antes.
O segundo lugar era da vez em que sua avó o pegara se masturbando no quarto com uma playboy da Sônia Braga. Ranolfo encontrara a revista por acaso enquanto procurava por livros sobre a pré-história no armário do avô num verão em que se hospedou com os avós no interior. Ao folhear a publicação deparou-se com fotos de mulheres nuas, daí para o onanismo foi um pulo. Ele apenas não contava com a intrusão de sua avó ao entrar sem bater no quarto onde ele descobria o prazer solitário.
Em primeiro lugar, a vez em que peidara na frente de sua namorada. Era uma noite de meio de semana, estavam voltando de algum lugar, ela e ele pararam pra se despedir em frente ao prédio onde ela morava, ele foi fazer uma brincadeira e o peido escapou. O pior foi que, na tentativa de mascarar o flato fujão, Ranolfo ficou arrastando e batendo os pés diante do olhar incrédulo da moça. Ainda hoje ele se pergunta se não teria sido melhor se desculpar, assumindo a culpa.
A torrente de golpes seguia, Ranolfo baixou a guarda tentando evitar outro soco no estômago, e seu antagonista aproveito-se de sua lentidão acertando-o com violência abaixo do olho esquerdo, as ações de Ranolfo estavam lentas demais, ele protegeu a área atingida após o soco, foi atingido novamente, do outro lado, entre o queixo e a boca, alguns centímetros mais abaixo e aquele golpe poderia ter acabado com a luta. Ranolfo seguia se movendo um quadro mais devagar que seu adversário, outro soco desta vez no supercílio cortado de Ranolfo, fez jorrar sangue, o último acertou o nariz de Ranolfo com tanta violência que ele nem sequer sentiu dor, mergulhou em um torpor gélido que adormeceu sua cabeça, deixando-a leve. Foi uma sensação boa. A dor desapareceu por causa da dormência, suas pernas tremeram de leve, e ele imaginou se era assim morrer. Se fosse, ele ficaria satisfeito. Não era a imagem que Ranolfo tinha da morte. Sua mãe morrera alguns anos antes após perder uma luta desigual para um câncer no estômago. Ela era frágil, magra, e o câncer uma doença pérfida e agressiva, só descoberta em estágio avançado. Ela fez o tratamento, obteve algum resultado, mas depois abandonou os remédios e a quimio e radioterapia. Sua mãe morreu durante o sono induzido, dopada que estava de tantos analgésicos para amenizar a dor causada pela matástase. Ranolfo ainda lembrava da expressão dela na cama, a sombrancelhas contraídas, mesmo com tantos sedativos, mesmo inconsciente, ela sentia dor.
Ranolfo chorou demais por não ter sido melhor filho, por não ter feito faculdade como ela queria, por ter se dedicado ao pugilismo e se tornado tão parecido com o pai, tudo o que queria evitar.
E agora, ali estava Ranolfo, dobrando os joelhos, prestes á ser nocauteado, quando se encostou nas cordas, e toda a dor que sentia no corpo e na alma o atingiram de uma vez só. E naquele momento, sentindo dores da vida inteira, ele revidou. Não só contra seu adversário, mas contra a vergonha de seus vexames, contra a morte da mãe, contra o abandono do pai, contra o conformismo de Valéria. Um soco, um soco ótimo, no bico do queixo do adversário. Houve ali, muita sorte, claro. Mas a guarda de seu antagonista estava aberta, pois ele estava furioso com o riso involuntário de Ranolfo, que parecia prestes á cair, mas eis que, após quele soco, quem caiu foi o outro.
O Juíz iniciou contagem, o sujeito tentou levantar, mas não estava firme. O árbitro declarou vitória de Ranolfo. Ele foi felicitado por Jeová e Ramiro, recebeu tapinhas nas costas de alguns espectadores, o cinturão de campeão amador do presidente da federação, um beijo de Valéria e vários cartões de empresários interessados em agenciá-lo.
Um deles disse que Ranolfo tinha futuro. Aguentara uma surra de um dos pugilistas amadores que batiam mais forte naquela categoria.
Mas Ranolfo sabia que, não importava quão forte o adversário batesse. A vida sempre bate mais forte.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Amanhã?


E quem sabe o que virá amanhã?
Ele certamente não sabia. E, pra ser o mais honesto possível, ele nem sequer ligava muito. Ele não ligava pro amanhã. Também não era um desses pseudointelectuais new age que vivem o hoje da maneira mais intensa possível. Não. Ele era uma pessoa normal, com preocupações normais, mundanas, até rasteiras.
Ele podia, vez que outra se preocupar com o futuro do conflito Árabe/ Israelense, com as guerras tribais da África continental. Ele podia, de vez em quando, sentir os olhos marejados ao imaginar um urso polar morrendo de cansaço e fome após nadar por quilometros a fio sem encontrar lugar para parar por conta do aquecimento global, ele se preocupava com o aquecimento global, comprara uma sacola ecológica que seguia esquecendo em casa, ele tinha opinião formada sobre quase tudo, e queria saber tudo, ou o máximo possível, mas a verdade é que suas preocupações de verdade eram rasas e imediatas no contexto global, mas profundas feito a trincheira Mariana no seu microcosmo.
Ele se preocupava hoje com suas responsabilidades de hoje, e amanhã com as de amanhã,, atendia á elas com devoção, aproveitando o que de bom se pudesse colher de sua rotina que, se não era perfeita, também estava longe de ser um malefício insuportável.
Mas havia ela. Ela, que o cativara com amizade, com palavras, com silêncios... Ele se entregou por completo já quando se conheceram, terminou com um relacionamento de longa duração por causa dela, sem nenhum tipo de promessa de nada além de amizade, apenas por saber que, se sentia daquela maneira por causa dela sendo apenas sua amiga, seu relacionamento não tinha nenhuma chance.
Ele seguiu sendo amigo dela, houveram idas, houveram vindas, voltas e solavancos, mas ele não podia, e, de novo, nem queria, apagá-la de sua vida.
Ele tomou atitudes das quais não se orgulhava, disse coisas das quais se arrependeu, mas no final das contas haviam coisas, pequenas coisas, que sempre permaneciam, e ganhavam novas dimensões em seu microcosmo.
O sorriso dela, por exemplo. Não esses sorrisos de propaganda de colgate, não, um sorriso natural, perfeito em suas particularidades. O modo como a pele se franzia de leve sob seus olhos e sobre o nariz, os lábios se contraindo. Sim, o sorriso era uma dessas coisas. O silêncio antes de ela rir, ou dizer algo que parecia não ter sentido algum, mas só parecia. Vai saber, talvez ele visse sentido onde não existia. Mas, que diabos. Por que isso seria ruim, certo?
Apenas pensando nela ele se preocupava, de fato, com o amanhã. Em como estariam amanhã. Ela, sem dúvida estaria linda, adorável, transcendental. Será que haveria espaço pra ele no amanhã dela? Será que o amanhã dele poderia cruzar os caminhos de ambos? Ele não sabia. Mas isso, ele, no fundo, até que gostaria de saber.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Fan Fic 2: Conexão



Alisson já passou dos trinta e cinco anos, ela veio do Oregon com dezessete, diziam no coral, que ela tinha a voz de uma estrela, ela adorava cantar e treinava diariamente, dando duro para aprimorar seus dons, Alisson queria ser uma estrela, acreditava em si, e sabia, do fundo do coração, que algum dia, estaria no elenco de Cats, na Broadway. Ela fugiu de casa em uma noite morna de maio, com trinta e nove dólares, uma mala de roupas, sua voz e seu talento. De lá pra cá, muita coisa aconteceu, e a vida lhe pregou uma ou duas peças. Um agente mal-intencionado, um par de namorados bêbados, uma infecção no útero. Hoje, enquanto a maior parte dos onze sujeitos na boate escolhe seu número de strip-tease para telefonar, ir ao banheiro ou ao bar, Alisson reconsidera, pela primeira vez, de fato, seu destino de ser estrela, de alcançar o sucesso. Ela tem um filho de sete anos em casa, o pequeno Trevor, ele quer muito um boneco dos Transformers, e se Alisson não fizer pelo menos uma dança particular esta noite, ela não terá dinheiro sequer, para lhe oferecer uma opção além de sucrilhos pro café da manhã, daqui á seis horas, quando pensa nisso, Alisson rebola de forma mais insinuante, e, enquanto tenta desmanchar o nó na garganta, em silêncio, faz uma prece.

Otto já passou dos cinqüenta e cinco anos, e sempre morou em Nova York, ele se lembra de quando era criança, de sua mãe lhe enxugando ás lágrima depois de seu pai, um homem bruto e rigoroso ter-lhe chamado de “menininha”, ele se lembra de ela lhe dizer que seu pai não era mau, apenas iletrado, mas que ela sabia o quanto ele era especial e mais, o quanto era inteligente. Otto acreditou em sua mãe, e ele estudou muito, não que fosse difícil para ele decorar tantas fórmulas, aprender tantos sistemas de cálculos, imaginar tantas variáveis e possibilidades. Otto gostava de tudo aquilo. Nos livros sua vida era fácil, entre os números ele era respeitável, ele era o mestre, as dificuldades de Otto se deram todas fora dos livros, á cada rejeição, á cada humilhação, á cada probabilidade inexplorada, e á cada volta patética ao colo da mãe que sempre o acolhia. Otto perseverou, mas cada provação o tornou mais individualista, sua couraça, mais rígida, e ele se tornou o que sua mãe havia lhe prometido, um homem especial, não por ser belo, mas por ser inteligente, não por ser amistoso, mas por ser seco. Entretanto, as qualidades que fizeram de Otto especial só lhe serviam no mundo limitado dos laboratórios, na vida real, Otto ainda era medíocre, pior, ainda era motivo de chacota, e continuava á ser humilhado. Seu único amor acabou sendo perdido devido á barreira que sua mãe construiu entre ele e o mundo, e logo depois foi ela quem o deixou, mas Otto perseverou, pois acreditava piamente que seu intelecto superior lhe garantiria sucesso, satisfação particular, e ele seria o maior cientista do mundo, e todos o olhariam com reverência ao invés de escárnio. Hoje, quando lembra do acidente que o tornou um monstro, e de todas as derrotas que sofreu desde que resolveu que o crime lhe daria o que a vida lhe negou, Otto reconsidera, pela primeira vez, de fato, seu destino de conforto, de sucesso. Ele está se sentindo velho, e se não conseguir realizar alguma coisa grande, terá que se contentar em ser uma mera lembrança no hall de memórias de outra pessoa, e para evitar isso, ele está disposto á fazer algo horrível. Otto trabalha com afinco, planeja com precisão, e, se acreditasse em Deus, diria uma prece.

Roger já passou dos quarenta e cinco, ele nasceu no Brooklyn, e levava jeito pra esportes no colegial, era bom especialmente em beisebol, arremessador nato, dono de uma bola ao mesmo tempo curva e rápida, ele gostava do esporte, todos lhe diziam que ele iria se dar bem na vida e lhe davam tapinhas nas costas, e Roger acreditava, ele tinha muitos amigos e namorava garotas bonitas, Roger não se esforçava muito no colégio, pois sabia que, sendo esperto e habilidoso, se daria bem na vida real, não nos livros que eram para os nerds e as patricinhas. Roger não se esforçava nos estudos, mas se esforçava no esporte, tanto, que aos dezesseis anos teve uma lesão grave na coluna, decorrente do esforço extremo, e teve que largar o beisebol, como não era um estudante dedicado, Roger não chegou á faculdade. Como tinha se machucado, não pôde jogar beisebol, e como era esperto e iria se dar bem na vida, Roger resolveu aceitar o convite de um amigo para participar de um golpe de risco quase zero e grana certa. Roger topou, mas o quase entrou em cena, e ele e seus comparsas foram pegos vendendo terrenos que não existiam. Roger foi preso, mas sabia que se daria bem na vida, e que a prisão seria só um episódio para enriquecer suas conversas nas futuras festas que daria em seu apartamento de frente para o Central Park. Roger saiu da prisão, e não conseguiu nenhum trabalho que estivesse á sua altura, então resolveu participar de um assalto, não machucaria ninguém, era só botar a mão na grana de uma joalheria e fugir. Durante a fuga, após ferir o gerente da joalheria com um tiro, o carro de Roger e seus dois companheiros bateu em um ônibus. A lesão de Roger se agravou, ele foi preso de novo, passou á andar engraçado, pois não teve o tratamento necessário na penitenciária, e ganhou o apelido de Chaplin. Doze anos atrás, Chaplin saiu de Sing-Sing, ele tentou vários golpes e planos, nenhum deu certo, ele vive de trocados ganhos dando informações pra polícia e de trabalhos temporários, e hoje, quando os relâmpagos cortam o céu, Chaplin reconsidera, pela primeira vez, de fato, seu destino de se dar bem na vida, de ter sucesso. Ele não tem perspectiva, nem família, nem propósito. Ele se sente triste e vazio, e agora, sozinho em um beco ao lado de um bar, ele chora, e encarando o céu, grita uma prece.

Nadine já passou dos quinze anos. Ela cresceu em Westchester, gosta de Justin Timberlake, de Sex & the City, da Paris Hilton e da Hello Kitty. Nadine odeia seu nome desde que um colega de aula, Timothy, que ela nem acha tão gato, disse que era um nome de prostituta francesa. Nadine detestou seus pais por terem lhe dado esse nome tão idiota. Na verdade, ultimamente, Nadine tem detestado seus pais por muitas razões. Por não terem deixado que ela viajasse sozinha para a casa de praia de sua colega Brenda, fazendo-a perder a festa do ano, por terem diminuído seu tempo de acesso á internet, por terem instalado o controle parental na TV á cabo impedindo-a de rir com as amigas á custa das atuações sofríveis dos atores de filmes eróticos, por terem lhe cortado o privilégio do cartão de crédito depois de ela ter gasto mil e quinhentos dólares em um clube noturno, por não terem permitido que ela fizesse uma tatuagem maneiríssima á exemplo da colega Abby, por não entederem o que é necessário para ser uma jovem de sucesso. Mas especialmente, Nadine odeia seus pais por não terem-na encontrado ainda. Já fazem seis dias desde que ela foi seqüestrada atrás da escola enquanto fumava um cigarro escondida com Abby e Brenda. Desde então, Nadine passou por dores que nem sabia que existiam. Ela foi vítima de sevícias cruéis e variadas, todas realizadas diante de câmeras cujas fitas foram enviadas para seus pais. Um dos seqüestradores, um homem velho e gordo que tem cheiro de perfume misturado com formol e uma voz muito grossa e assustadoramente calma, disse que se o pai dela não pagar cem milhões de dólares, ele irá torturá-la até a morte, partí-la em pedaços e enviá-los para todos os jornais de Nova York. Nadine, que se gabava de não ter medo de nada, está apavorada, tanto que molhou as calças três vezes nas últimas sete horas. Ela está com medo de pedir para ir ao banheiro, está com medo de ser espancada de novo, de ser queimada e ferida. Nadine está assustada e com uma saudade tão grande dos pais que nem sequer sabia que podia sentir. Nadine não costuma pensar no futuro, por que, como disse o Allan, que é um gato, o futuro só chega amanhã, e não tem novidades pra quem é um sucesso. Hoje, Nadine reconsidera, pela primeira vez, de fato, a chegada do amanhã e o sucesso. Ela sente dores atrozes e inéditas, ela está com nojo do próprio cheiro, ela está tão assustada que mal pode respirar e, ao ouvir um trovão do lado de fora da janela coberta com madeira, ela chora, e apesar da mordaça, faz uma prece.

Peter já passou dos vinte e cinco anos. Ele cresceu em Queens, e é da época em que crescia na casa de seus tios que traz as melhores lembranças. Peter era amado por sua tia e seu tio, que o tomaram como filho após o acidente de avião que matou seus pais. Peter é um bom menino, ele acredita que boas pessoas merecem boas coisas, e acredita que pessoas más devem ser punidas, ele acredita em justiça. Peter não era um menino popular na escola, ele adorava ler, e principalmente, adorava ciências, e talvez esse amor aos livros, mais sua timidez, e a falta de jeito para esportes e brincadeiras é que o tenham tornado um pária entre os seus. Peter foi humilhado e brutalizado na escola, e seus tios eram a única fagulha de afeto que ele tinha, e apesar de serem pessoas de idade, lhe bastavam. Ele chegou ao colegial, ainda acreditando em justiça, pois se esforçava e tirava ótimas notas, e embora sentisse falta de amigos de sua idade, Peter tinha os tios á quem amava. Quando sofreu o acidente que lhe deu dons únicos, Peter achou que era uma grande recompensa, e que deveria usar suas habilidades para ganhar dinheiro e melhorar a vida de sua família.
Mas depois da aranha e do poder, vieram à morte de seu tio Ben e a responsabilidade, Peter havia entendido mal a dádiva que recebera, e por ter sido egoísta, perdeu o tio á quem amava. Mas ele ainda acreditava na justiça, e se tornou um bom homem, cresceu lutando para sê-lo, e conseguiu, á custa de muito sacrifício. Ao longo de sua vida, Peter vem se dedicando com afinco á salvar as pessoas de bem e levar os perversos á justiça. Muitas coisas ruins aconteceram á ele. Muitos de seus amigos morreram depois de seu tio Ben, e a primeira mulher que ele amou foi assassinada diante de seus olhos, mas ele seguiu em frente, acreditando em sua missão, e vencendo cada fase difícil que a vida jogou em seu caminho, sempre acreditando na justiça, colhendo os bons frutos, e tendo fé no sucesso do bem sobre o mal. Peter passou por muita coisa, e já olhou nos olhos desse mal mais de uma vez, e hoje, ao constatar que não importa quantas vezes cruze a cidade, não capta nenhuma pista da menina seqüestrada á seis dias, torturada e jurada de morte por seus raptores, ele reconsidera, pela primeira vez, de fato, o sucesso do bem sobre o mal. Ele está cansado e aflito, fustigado pela chuva que cai no alto do prédio onde parou para descansar um instante, e se não soubesse que é ele a resposta ás orações de muitos, e tivesse um minuto, faria uma prece.

Enquanto vaga pela cidade, ensopado e com frio, o Homem-Aranha pensa, ele pensa com afinco, pensa com raiva, raiva de si mesmo por não encontrar solução para o enigma que se desfralda diante dele, e repassa aquilo que sabe, na esperança de que lhe traga alguma luz:
Nadine Morrow, 15 anos, estudante, filha de Jerome Morrow, 48 anos, engenheiro químico e presidente da indústria química ToMorrow, inventor dos remédios anti-fumo mais utilizados nos Estados Unidos e Europa, e dono de um belíssimo patrimônio, e de Dana Morrow, 42 anos, analista contábil das indústrias ToMorrow. A menina foi seqüestrada ás 16 horas da última sexta-feira, enquanto conversava com amigas ao lado do campo de futebol atrás da escola. Uma van branca estacionou bruscamente, próximo ás meninas e dois homens mascarados agarraram Nadine e a jogaram no carro fugindo em seguida. Três horas e meia após o rapto, Jerome e Dana Morrow receberam um DVD que mostrava Nadine tendo as unhas do pé arrancadas com um alicate durante vinte e oito minutos, após todas as unhas do pé esquerdo da menina terem sido removidas, um texto surgia na tela, dizendo que se a quantia de 100 milhões de dólares não fosse paga, a menina seria torturada até a morte. Para provar que não estava blefando e que tinha total controle sobre a situação, o abdutor enviou cópias da fita para as principais redes de TV de Nova York e fotos da menina para os jornais. Isso foi á seis dias, ele deu prazo de sete para que a família levantasse a absurda quantia. Eu fiquei sabendo á três dias e não consegui nada. Falei com o Matt, que também está procurando, e com o Lamont que está fora das investigações, assumidas pelos federais. Ninguém pôde me ajudar. E ninguém pôde ajudar a garota. Só Deus sabe o que essa menina está passando, o que passou desde a sexta feira passada. Nunca me senti tão impotente. Quem poderia saber alguma coisa á respeito do seqüestro?
Bem, parece que é hora de apelar pro submundo. O Chaplin vai ter que me ajudar de novo.
Quinze minutos depois, uma figura sombria se esgueira pela parede do lado de um bar pouco recomendável na baixa zona leste de Manhattam, enquanto um homem trôpego de andar peculiar sai do estabelecimento e se apóia na parede poucos metros abaixo da figura sinistra:
-Chaplin.
-Hâ? Ah, não, de novo, não!! Tu não tem mais o que fazer da vida, super-herói? Vai prender um bandido de verdade, sai do meu pé. O Justiceiro já levou um pau, eu fiz o que tu me pediu, então não fode a minha paciência, seu trouxa prevalecido do cacete!!!
-Mas que bafo infernal! Saiu do bar por que acabou com a birita? Pelo amor de Deus, Chaplin, eu não conhecia essa sua outra faceta desprezível, credo.
-Vai pro diabo! Quem é que tu pensa que é pra me chamar de desprezível, seu nojento? Ah, claro, tu é um senhor super-herói, e a puta que o pariu, e eu sou só um Zé Ninguém. Bom, desgraçado, eu não tô aqui pra agüentar desaforo de marmanjo de meia-calça, falou?
-E pra que é que você tá aqui, Chaplin?
-...
-Enfim, eu não vim fazer desaforo, eu queria uma informação. Mas pelo jeito, a minha viagem foi em vão, cê tá tão bêbado que nem deve lembrar o teu nome.
-... O que... O que é que tu queria saber?
-Qualquer coisa á respeito da menina seqüestrada. A filha do figurão dos adesivos anti-fumo. Mas esquece, eu vou continuar procu-
-Peraí, peraí, cala a boca, eu não consigo pensar contigo falando feito matraca. A guria que seqüestraram, eu ouvi uma parada á respeito disso... Ah, é, ouvi um cara dizendo que o sujeito que tava armando o esquema não é do ramo.
- O cara que preparou o rapto de uma adolescente riquíssima não é bandido? Esquece, Chaplin, tu ainda tá muito bêbado.
-Não, seu cretino, nojento, burro e otário, eu quis dizer que não é esse tipo de bandido. Ele não trampa esquema normal, ele é um desses malucos de roupa colorida e tal, que quer dominar o mundo. Um bandido de máscara.
-... Quem foi que disse isso?
-Chamam o maluco de Peru.
-E onde eu acho o Peru (Cara, nunca pensei que diria uma coisa tão ridícula.)?
-Tem esse boteco no Bronx, eu... Eu te dou o endereço. Mas ele não vai falar, o Peru é de fé.
-Ah, não esquenta quanto á isso, Chaplin. Eu faço o Peru falar.

O bar é um único ambiente, luz indireta, nuvem de fumaça perene pairando sobre a cabeça dos presentes, pelo menos trinta e cinco espalhados em mesas e mais uns doze no balcão. Em uma mesa no canto mais afastado do balcão, quatro homens jogam pôquer, dois já deixaram a rodada, um terceiro encara, pensativo, o baralho, enquanto o último, um sujeito grande e forte, com cara de poucos amigos, encara, aflito, o relógio:
-É pra hoje, simpatia?
-Por que a pressa, Peru? Quer que eu te rapele cedo?
-Eu tenho que trabalhar, palhação. Se eu me atrasar, tô na rua.
-Aaaaah, por isso cê não tava bebendo e tá cheio de grana?
-É, recebi adiantado.
-Não acontece sempre no teu ramo.
-O meu chefe tem bala na agulha, sabe que ninguém dá pra trás na dele.
-Quem é o figurão?
-Ninguém que tu conheça.
-E qual é o trampo?
-Joga aí, velho. Eu tô com pressa. E tô pagando pra ver, teus quinhentos e mais quinhentos. Eu tenho um flush.
-Gh, ghgh...
-Ah, perdeu a boca dura, né, ô, trouxa?
-Homem-Aranha. Ali.
-Quê? Ond...
-Aqui, Peru. Vem comigo que a gente tem que colocar o papo em dia.
Agarrando o homenzarrão pela gola do casaco, vindo de cima, o Homem-Aranha desliza pelo teto até uma basculante quase impassável, pela qual espreme seu desconfortável acompanhante diante dos olhares atônitos de todos no bar. Alguns desses homens não conseguirão dormir essa noite, e pelo menos uma dúzia deles irá comprar o jornal de amanhã para procurar um emprego honesto pela manhã.
Cinco minutos depois, uma forma esguia escala uma das torres da ponte do Brooklyn carregando um volume de tamanho grande sobre um dos ombros.
-Arthur, se importa se eu chamá-lo de Arthur ao invés de Peru? É o nome na sua identidade. Tudo bem? Que bom, achei mesmo que você não se importaria, é o seguinte, Arthur, me disseram que você sabe onde anda a guria dos adesivos antifumo, e eu quero partilhar dessa informação.
-Eu sempre achei que pra pular pelos telhados vestido de viado, nêgo tinha que ser fraco da cabeça, tu acaba de confirmar a minha suspeita, aracnotário. Eu nunca vou falar, o cabeça que me contratou é um bandido de fantasia, mas é bandido, me mata se eu disser alguma coisa, tu não tem caveira no peito, tua cabeça não tá pegando fogo, nem tem lâmina saindo da tua mão, então tu não mata, logo, tu não me assusta.
-Aaaah, mas que sujeito durão que você é, Artie. Nem tem medo de mim. Deixa eu te perguntar um negócio: Cê sabe ler?
-Hnn, sei. O que tem isso á ver?
-Lê o Clarim Diário, Artie?
-Sim.
-Leu que eu sou uma ameaça?
-Arram.
-Soube o que eu fiz com o Justiceiro? O cara que faz você borrar as calças?
-T-tu acertou ele... Não foi?
-Eu amassei ele de pancada, Artie, eu arrasei ele. Ele não tem nenhum super-poder, e eu enchi ele de bordoada, tanta porrada que ele foi pra ala hospitalar da Ryker.
E sabe o que é mais interessante, Artie? Eu espanquei ele brutalmente, fiz com que ele sentisse muita dor, e ele não morreu! Não é demais? Dá pra deixar um sujeito completamente arrebentado, e não matar! Eu não sei quanto á você, mas eu acho isso inspirador.
-... O que tu quer saber?
-A menina seqüestrada, onde ela está?
-Eu vou contar, mas não vai adiantar nada. O chefe não tolera atraso, e quando eu me atrasar, daqui á uns dez minutos, ele vai mudar de lugar com a guria e botar minha cabeça á prêmio.
-Onde. Com o resto eu me preocupo, Artie.
Há muitas coisas nesse mundo e Otto Octavius não suporta, ele levaria horas para listá-las, entretanto, nesse momento, há duas coisas em particular que Otto Octavius detesta mais do que quaisquer outras: Atrasos e delatores.
Ele sabe, enquanto olha para o relógio e recolhe itens que considera importantes para seu bem-estar, quem é o culpado pela desagradável situação em que ele se encontra agora. Ele não trocou nenhuma palavra com o subalterno que o acompanha e que deveria ter ido embora á sete minutos atrás. Até agora:
-Senhor Mendonza, quando iniciamos nossa associação, o senhor me disse que poderia encontrar um outro elemento confiável, capaz de cumprir horários e sagaz o suficiente para não ser pego e tornar-se um delator. Entretanto, o senhor Saunders, o elemento em questão, está atrasado... Vejamos, oito minutos, dois aquém do que eu estabeleci como limite de tolerância devido á nossas mazelas de tráfego e eventuais problemas de locomoção, logo, devo supôr que o senhor Saunders foi retido, ou fez uso de alguma espécie de entorpecente colocando-se na delicada posição de ser demitido, e por consequência causar a sua demissão compulsória.
-Não, Doutor, eu tenho certeza de que ele só teve alguma treta com o metrô, o Peru é de fé, ele não iria dar pra trás, tenho certeza de que ele vai chegar á qualquer momento e o senhor nem vai ter que mudar de lugar.
-Você confia, de fato no senhor Saunders, não é mesmo, senhor Mendonza?
-Crescemos juntos, seu Octavius, boto a mão no fogo pelo cara.
-Entendo. Bem, de qualquer modo, devemos estar prevenidos. Recolheu todas as evidências da operação em curso aqui?
-Do jeito que o senhor mandou, doutor.
-Nosso utiliário leve está estacionado em frente á porta do prédio?
-Sim, senhor, seu Octavius.
-Então sugiro que vá até as acomodações de nossa refém, e a deixe em condições de trânsito. Eu notei um odor asqueroso vindo da saleta. Limpe-a e faça com que fique claro que não toleraremos esse tipo de comportamento infantil novamente.
-O senhor quer dizer...?
-Arranque-lhe uma unha da mão esquerda, diga por que o está fazendo, limpe-a rapidamente, suponho que uma mangueira seria o ideal, e prepare-a para uma eventual saída.
-É pra já, seu Octavius.
Enquanto o marginal se afasta, Otto Octavius se lembra de mais um item á adicionar em sua numerosa lista de coisas detestáveis: Pessoas que confiam cegamente. Provavelmente, Otto não precisará de um subalterno amanhã. Ele termina de encaixotar seu computador pessoal, alguns itens de seu laboratório químico dos quais não dispõe de sobressalentes, e o equipamento de gravação, ele faz tudo isso passivamente, sem dar ouvidos aos gritos que vem do armário que foi adaptado em cativeiro para a jovem Nadine Morrow, Otto termina de embalar o equipamento com muito cuidado, usando pouquíssimo suas duas mãos naturais, e um bocado seus apêndices de aço, uma vez que nota que tudo está pronto para o treslado, caminha até o corredor que liga a sala onde seu laboratório estava instalado ao cúbiculo de Nadine, quase ao mesmo tempo, Carlos Mendonza sai, molhado, e portando um alicate de eletricista sujo de sangue.
-Feito, doutor, do jeito que o senhor mandou, a unha do mindinho, e dei uma lavada na guria, ficou tudo ensopado ali, a maior bagunça.
-Ah, a insalubridade desse esconderijo não mais diz respeito á essa operação, senhor Mendonza, estamos indo embora agora.
-Hmmm. Bom, paciência, o senhor quer que eu coloque as tralhas no carro?
-Eu gostaria, senhor Mendonza, mas fazê-lo realizar mais esta tarefa antes do desfecho de nossa associação me parece excessivamente cruel.
-O senhor tá me demitindo, seu Octavius? Olha, eu sinto muito pelo Peru, mas eu sou de fé, o senhor viu, não ligo de fazer nenhuma dessas coisa cabulosas, torturar a guria, filmar tudo, o senhor pode continuar comigo, eu arrumo outro cara, um dos bons, prometo!
-Sim, senhor Mendonza, o senhor se provou, de fato, um ser humano abjeto, e seres humanos abjetos como o senhor são muito úteis, exatamente como, por exemplo, armas químicas, todos os desprezam, exceto aqueles que conseguem ver o quadro maior. Eu vejo o quadro maior, entretanto, tal e qual uma bomba, o senhor, uma vez que tenha cumprido seu objetivo, é descartável.
-Mas, mas eu-.
-Adeus, senhor Mendonza, o senhor está demitido.
É com satisfação que Otto Octavius ouve o ruído úmido de metal destrinchando carne, talvez por que o faça relembrar os almoços de domingo, quando, desde cedo, sua mãe destrinchava um frango para ser cozido e comido com macarrão. Na época era a refeição favorita de Otto, e a única razão para ele aguardar de maneira ansiosa pelo domingo, quando não havia aula e seu pai passava o dia todo em casa vendo esportes na TV, voltando á si após essa breve reminescência, Otto caminha decidido até a porta do armário de Nadine, abre a porta com delicadeza e enrola um de seus tentáculos metálicos ao redor da cintura nua da menina, molhada e ensangüentada, ela grita, mas ele usa outro apêndice para cobrir-lhe a boca, e com os dois restantes, abraça todos os itens encaixotados na sala contígua, e desce as escadas de incêndio, após olhar para os dois lados da rua, ele avança até a van estacionada diante do prédio, e com um movimento rápido, joga a jovem no interior do veículo junto ás caixas, ele senta no banco do motorista, dá a partida, e sai em direção á Manhattan.
O espetacular Homem-Aranha chega ao endereço dado por Arthur “peru” Saunders aproximadamente quinze minutos após ter recebido a informação do bandido, ele lamenta os sete minutos perdidos levando o meliante até a delegacia, mas não queria deixar um criminoso á solta. Quando pousa suavemente sobre o prédio acanhado de cinco andares nas imediações do Brooklyn, ele tem um mau pressentimento, mas não sabe se é relacionado á alguma coisa além da possível falta de veracidade das informações ácerca do paradeiro da jovem. Ele desce pela parede lateral do edifício, e finalmente se detém ao lado de uma janela no quarto andar, e com cautela, entra, ele olha em volta, e anda por um corredor, até uma porta aberta de onde verte água, ele empurra a porta, e o cheiro forte de urina lhe enche as narinas mesmo através da máscara, é só então que ele vê alguns metros mais adiante no corredor, o cadáver de um homem latino, de trinta e poucos anos, virtualmente com um rombo no tronco, um, ou mais, é difícil dizer devido á quantidade de sanque e de vísceras que estão espalhadas sobre e ao redor do corpo, ainda quente. E uma vez mais, o Homem-Aranha se lamenta pelos sete minutos desperdiçados levando Arthur “peru” Saunders até a delegacia.
Ele olha para o chão ao redor do corpo e escala a parede até o teto para não contaminar a cena do crime, é quando vê alguns equipamentos de laboratório abandonados sobre uma mesa na sala. Ele vai até a mesa, olha para o material, e vira-se para o corpo, observando os ferimentos com atenção, dois buracos cilíndricos, como se um tipo de cano de aço tivesse sido atravessado com violência das costas através do peito do sujeito.
-Doutor Octopus. - Diz ele.

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Alisson acabou de passar em uma loja de conveniência ao lado da estação de metrô, ela carrega uma sacola grande, cheia de maçãs, um pacote de bacon, uma caixa de ovos, e uma garrafa de suco de laranja. Ela está satisfeita, quase orgulhosa, pois quando Trevor acordar, daqui á umas duas horas, ele vai ter várias opções de café da manhã. Mas mais do que isso, ela está orgulhosa do embrulho de papel laminado vermelho que traz junto á bolsa. Uma reles caixa de papelão, com uma peça de plástico dentro, mas os olhos de Trevor vão brilhar quando ele abrir o embrulho e vir que é o Líder Otimum, ou Optimum, ou Optimus, enfim, ela nunca lembra direito, embora saiba exatamente o que é. Ela está tão feliz que quase esquece o que fez durante a noite para trazer essas coisas pra casa. Quase. Ela sabe que existe uma regra pra não deixar os homens que pagam pela dança particular tocarem nas dançarinas, mas quem inventou a regra não estava lutando todo o dia pra manter a casa, a eletricidade, aquecimento, água, escola. Quem inventou a regra não tem que chegar em casa, passar duas horas com o filho e depois sair correndo pra fazer limpeza na casa de alguém. Não tem o pequeno Trevor olhando pra si com os olhos enormes e azuis, perguntando se pode ganhar um transformer se tirar dez em matemática de novo.
Alisson está chegando em casa, vasculhando a bolsa á procura das chaves enquanto equilibra com dificuldade as compras, o embrulho, a bolsa, a sacola com a roupa de dança e o guarda-chuva, ela fica tão absorta que não vê o utilitário branco que estaciona diante do seu prédio, nem o homem alto e gordo de meia idade que sai pela porta do motorista vestindo um longo sobretudo preto, ela não vê esse homem puxar com seus tentáculos de metal uma jovem nua, semi-consciente da parte de trás do utilitário, ela só percebe tudo isso, quando está quase perto demais de toda a ação, quando a menina grita, e é golpeada com força por um dos tentáculos de metal, enquanto o homem olha para os lados.
É nesse momento que Alisson se esconde nas sombras de um beco próximo, e verifica aterrorizada que o homem e a menina entram no prédio em que ela mora.

Nadine não consegue sentir as mãos, e está feliz com isso, pois se não sente as mãos, não sente a dor nas pontas dos dedos, a dor latejante que fica cada vez que lhe arrancam uma unha, ela está com muito frio, e está com vergonha, pois está nua, embora esteja quase aliviada por ter tirado as roupas que usava já tinha uma semana. Nadine está apavorada, pois á pouco tempo, descobriu que o seu seqüestrador é um super-vilão. Ela já tinha lido á respeito de super-heróis e super-vilões brigando pela cidade, mas o mais próximo desse universo que já havia chegado, tinha sido, na ordem, ver o Thor voando sobre Manhattam aos sete anos, ver o Homem-Aranha em Queens aos doze, e ouvir uma palestra do Capitão-América na escola aos quatorze. Ela não tinha se sentido particularmente impressionada com nenhum deles, embora achasse Thor um gato, ela o viu de muito longe, e só tem certeza de que era ele por causa da capa vermelha e do cabelo loiro, o Capitão parecia legal, mas falava que nem o avô dela, o que estava longe de ser interessante, já o Aranha era repulsivo, sempre encurvado, grudado nas paredes e não dava pra ver nenhum pedacinho sequer da cara dele, e era justamente um sujeito que ela sempre via nas notícias do Homem-Aranha que havia seqüestrado ela, o Dr. Polvo, ou algo assim. Nadine estava horrorizada, também, por que nunca houvera considerado esses super-vilões uma ameaça real, eram como os vilões de James Bond, querem dominar o mundo, então não machucariam gente comum, na verdade ela já tinha ouvido o Allan, da escola, dizer que os super-heróis e vilões eram agentes do governo, contratados pra fingir brigas enormes e desviar a atenção do público das questões mais sérias, como crescimento da economia, guerra no Iraque, aquecimento global e coisas assim. Ela chegou á achar que ele tinha razão. Até ser envolvida pelo frio metálico do tentáculo daquele homem tão sério, tão friamente perverso. Nadine está atemorizada enquanto ele sobe as escadas de um prédio velho carregando-a, ela continua assim quando ele abre a porta de um apartamento no sexto andar, e a conduz até um quarto com as paredes forradas de um material parecido com borracha. E quando ele a algema, amordaça, e tranca a porta, ela se sente aliviada, apenas por ele não estar mais por perto.
O homem conhecido como Chaplin está procurando um bar. Outro bar. Será o terceiro dessa noite, o quinto do dia. Chaplin sentiria vergonha se não tivesse feito tantas coisas piores ao longo da vida. Se não tivesse deixado de fazer tantas coisas... Ele é o cara que os tiras procuram quando querem saber onde anda um bandido de carreira, o Demolidor e o Homem-Aranha vêm até ele quando acham que um bandido comum pode ter feito algo grande. Ele é o Chaplin, ninguém o leva á sério por que ele é um aleijado de merda, um bandido que não sabe ser bandido e só se presta ao papel de alcagüeta. Ele está cada vez mais cansado de não ser levado á sério, de não conseguir se olhar no espelho sem sentir nada além de remorso. Ele está tentando se lembrar onde ainda tem algum crédito, pois super-heróis não lhe dão gorjetas como os policiais, e ele está liso, é quando percebe a aproximação do Homem-Aranha, e instintivamente, se encolhe.
-Chaplin, preciso de mais uma informação, rápido. Onde eu acho o Doutor Octopus?
-Esse cara não é estrangeiro? Lá da Latvéria?
-Não, Chaplin, esse é o Doutor Destino, o Doutor Estranho é o cara que mora em Village e tem uma janela gozada no telhado, e o Doutor Druida é o negão pintoso que aparece na TV, Doutor Octopus é o cara dos braços.
-Braços... Ah, o velho gordo! Ninguém gosta de trampar pra ele, o cara é doido.
-Oh, sim, e quem pleiteia trabalhar pra um super-criminoso deve estar mesmo de posse das plenas faculdades mentais. Vamos Chaplin, onde eu acho ele ou alguém que saiba onde achar ele?
-Ih, meu, sei lá...
-Além do Peru, cê conhece mais alguém que estivesse trabalhando pro Octopus?
-Pro Octopus...
-No seqüestro da menina! Vamos, Chaplin! Pra ontem! Pelo amor de Deus!! O que é que tu tem na cabeça? A vida de uma menina pode estar nas tuas mãos, Chaplin, vida em uma, morte na outra, e você fica ensebando... Olha, eu vou te dizer uma coisa, poder sempre traz consigo responsabilidade.
-Que poder? Que poder eu tenho? Eu não sou nada!! Não tenho nada!!!
-Tudo o que tu pode fazer pra ajudar alguém é um poder, Chaplin! Tudo! Cê não precisa voar por aí de ceroulas, você pode carregar as compras pra uma pessoa mais velha, pode ensinar uma criança á olhar pros dois lados antes de atravessar a rua, pode apontar uma direção pra alguém que está perdido, tudo isso é poder, Chaplin, e traz responsabilidade.
Pensa nisso, enquanto decide o que tu vai fazer da vida, eu tenho que tentar salvar aquela guria, nem que tenha que esmurrar cada bandido dessa cidade.

A chuva castiga Nova York, e o herói mascarado conhecido como Homem-Aranha está invadindo uma imobiliária, ele passa através da janela do décimo quarto andar de um prédio na Madison, ele aguarda um instante antes de descer do teto ao qual está grudado, e assim que o faz, pousa suavemente em uma cadeira diante de um micro computador. Ele digita o endereço do prédio onde encontrou o cadáver identificado pela carteira de motorista como Carlos Mendonza, mas não há registro, “Era querer demais, mesmo.” pensa. Ele acessa então, o google, e digita novamente o endereço, a resposta é o nome de uma outra imobiliária. Em Chelsea.
-Chelsea, então.
O Homem-Aranha salta pela janela, e usando suas teias, avança vertiginosamente rumo á Rua Chelsea.
Alysson está com medo, ela prepara o café da manhã de Trevor enquanto relembra a cena grotesca que viu minutos antes. O homem de tentáculos carregando uma menina nua pra dentro do edifício. Allyson quer telefonar pra polícia, mas tem medo. E se vierem dois patrulheiros, e o sujeito, que ela já viu no noticiário, matá-los e vier atrás dela, ou do Trevor?
Alysson nem quer pensar nisso, mas suas mãos estão tremendo enquanto ela coloca a frigideira para esquentar no fogão.
Chaplin encontrou um bar, ele está sentado no balcão, com um copo grande de cerveja e uma dose de tequila diante de si, mas embora ambos tenham sido colocados na frente dele á mais de dez minutos, ele ainda não tococu em nenhum deles. As palavras proferidas pelo Homem-Aranha queimam em sua mente. Poder. Responsabilidade. Roger jamais havia encarado as coisas sob esta ótica. Ele nunca supôs que tinha qualquer tipo de poder. Vida e morte, disse o Aranha. Vida em uma mão. Morte na outra. Roger deixa a bebida, remexe os bolsos até encontrar uma moeda de cinqüenta centavos. Ele ruma até o orelhão nos fundos do bar, e disca um número, enquanto tapa um dos ouvidos com o dedo.
-Alô, Freddie? É o Roger. O Chaplin. Não, não, na boa... Não, eu tô limpo agora. Na verdade eu queria te perguntar se tu sabe alguma coisa do tal de Doutor Octopus... Mesmo?
Como é o nome do cara? Martin. Me arranja o telefone dele? Beleza, Fred. Fico devendo essa.
Roger desliga o telefone, remexe os bolsos e encontra outra moeda. “Poder e responsabilidade”, ele pensa antes de começar á discar o outro número.
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O homem conhecido pela alcunha de Doutor Octopus está sentado confortávelmente diante de seu computador pessoal, ele está concentrado, editando um DVD com cenas fortes de uma moça sendo torturada de maneira cruel. Ele faz isso enquanto limpa as mãos com um lenço claro. Um som de campainha eletrônica o tira de seu momento de imersão. Ele olha desonfiado para o ícone que pisca na barra de tarefas na tela do notebook, e hesita um segundo antes de levar a seta do mouse até ele, clicar e dizer:
-Octavius.
-Oi, doutor, é o Benny, Benny Crane. O senhor pediu pra eu manter os olhos abertos se alguém andasse por aí fazendo pergunta do senhor e tal. É que, bom, tem um vagabundo, aí, um tal de Chaplin, e ele andou perguntando bastante nas últimas horas, daí eu pensei: “melhor falar pro Doutor.”
-Esse Chaplin, quem é essa pessoa? Por que eu deveria me preocupar com ele?
-Bom, doutor, ele é informante, entende?
-Para o departamento de polícia?
-Também, mas ele dá informação pro Demo, e pro Aranha.
-Oh. Entendo... Você agiu de maneira sensata, senhor Crane, não me esquecerei disso. Vou pedir-lhe um favor, cuide para que esse Chaplin não seja capaz de falar nada á ninguém, por digamos... Alguns meses, sim? Eu o contatarei assim que houver disponibilidade de tempo para tratarmos de sua recompensa.
Otto Octavius desliga a chamada com um clique do mouse, então digita um número no teclado do computador, um telefone ligado á um roteador conectado á um intricado sistema de embaralhamento, faz com que a ligação passe por linhas de Bruxelas, Madrid, Osaka, Ciudad Del Este, e Wellington, até chegar á um telefone distante, não mais, do que trinta e seis quadras dele. O telefone toca por duas vezes até que:
-Gargan.
-Olá, MacDonald. É Octavius. Diga-me, você ainda está de posse daquele seu traje magnífico?
-Talvez, de que se trata?
-Estou tendo um problema com artrópodes. Imaginei se o senhor, talvez, possuísse os meios para me auxiliar nessa questão, pelo preço justo, obviamente.
-E de quanto estamos falando?
-No momento me encontro com severas restrições de erário, entretanto, espero para não mais do que seis horas, um pagamento referente á um trabalho em que me encontro no momento, todavia, para que eu coloque as mãos no montante, é necessário que não haja inprevistos nem interrupções de nenhuma espécie. Se eu for bem sucedido em minha negociata atual, poderia oferecer uma soma de seis dígitos pelo serviço.
-Hmmmm. Seis dígitos, hein? Tentador, mas me diz uma coisa, doutor, a gente nunca trampou junto, por que isso agora?
-É uma questão de timing, senhor Gargan, nunca antes as conjecturas haviam disposto o tabuleiro da forma atual, meus colaboradores costumazes estão indisponíveis, e o senhor é tido em alta conta por muitos de nosso meio, embora eu, honestamente, o considere um tanto quanto instável. De qualquer modo, eu estou sem alternativas, e o tempo me é escasso, e eu preciso de não mais do que quatro ou talvez cinco horas.
-Sei. Bom, então, especificamente, do que o senhor precisa?
-Mantenha nosso desafeto comum longe de meu atual domicílio. Nada mais.
-E onde é que o senhor tá?
-Isso, senhor Gargan, não é importante. Mas o alvo está em algum lugar do centro. O encontre e crie uma distração.
-Distração, né? Sem grilo, nisso eu sou bom.
O vigilante chamado de Homem-Aranha está cometendo pela segunda vez hoje, o que ele sabe ser um delito leve. Ele invadiu uma imobiliária na Rua Madison, e agora, acaba de invadir uma segunda na Rua Chelsea. Ele está investigando arquivos em pastas dentro de um pesado armário de metal. Ele se pergunta o que leva o dono do lugar á não ter adotado um sistema informatizado de arquivamento quando encontra o endereço pelo qual estava procurando, e percebe o nome do locatário: Ernest Rutherford.
Rutherford foi o físico néo-zelândes que descobriu que o modelo “Pudim de Ameixa” de Thomson para o átomo não era aplicável. Só o Oquinho se trairia com um chiste tão óbvio como nomes de cientistas históricos como fachada para alugar esconderijos. Isso não me resolve nada, mas me dá uma pista. Imóveis alugados no período dos últimos seis meses para homônimos de cientistas famosos. De volta ao arquivo. Dez contra um que eu encontro o desgraçado em um apartamento alugado em nome de Niels Bohr.
Alisson está segurando o telefone com a mão direita e uma espumadeira com a esquerda. Ela olha fixamente para o teclado, Alisson se sente na obrigação de ligar, ela respira fundo, prende o fone entre a cabeça e o ombro e então leva o dedo até o dígito nove, ela comprime o botão, e repete a operação com o dígito um, mas pára. Alisson tem medo. E se o homem-polvo tiver grampeado os telefones do andar? E se ela entrar em pânico, falar alto demais e ele a ouvir? A ligação cai, Alisson coloca o fone de volta no gancho, respira fundo novamente, e se prepara para ligar quando uma voz atrás de si lhe chama a atenção.
-Mãe?
Roger ‘“Chaplin” Andretti saiu do bar á passos largos, ele sabe onde, mas não tem certeza do que fazer com essa informação, ele está pensando em que direção tomar quando escuta passos atrás de si.
-Chaplin. Que coisa mais feia... Bancando o traíra. A gente sempre achou que tu sabia o que devia e o que não devia dizer pros homens, mas sair entregando geral pros caras de capa? Tsc, tsc, tsc. É, Chaplin, tu precisa de um corretivo.
Três homens, um magro e alto, que Chaplin imediatamente reconhece como Benny Crane, traficante com ilusões de grandeza, e outros dois mais baixos, mas bastante fortes, pelo menos, mais fortes do que o Chaplin. Eles avançam rápido, ele tenta escapar, mas a perna o atrapalha, as duas pernas, Chaplin se amaldiçoa por ser um aleijado, ele está pensando em como isso poderia ter sido evitado quando um golpe forte lhe atinge no flanco esquerdo, bem nos rins, ele sente o choque se espalhando pelo corpo cansado e castigado por anos de abuso, a dor se intensifica com o fim do impacto inicial, e um outro golpe acerta em cheio suas costas, Chaplin deixa escapar um grito fino, a dor é inacreditável, ele tomba, uma torrente de golpes o atinge em todo o corpo, pontapés e chutes nas costelas, cabeça, pernas. Quando param de castigá-lo, ele ouve em meio á seu torpor sangrento, a voz de Benny Crane:
-Que sirva de lição, Chaplin, meu velho, mantenha a boca fechada, o jacaré não entrou no céu por que sua boca era grande, bom, a tua boca é muuuuuuuuuuuuito grande, Chaplin. Grande demais.
Um dos sujeitos larga um cano de ferro, e o outro larga um bastão de beisebol e um par de luvas no chão, próximo á figura prostrada. É nessa hora que Roger Andretti emerge de Chaplin novamente, ele pega o bastão, e se levanta apoiando-se nele. Ele fica de pé, suas costas, suas costelas, suas pernas, todo o seu corpo parece gritar, mas ele luta contra isso, endireita-se, e fala:
-Benny... Eu vou arrancar os teus dentes.
Roger anda com dificuldade contra Benny Crane e seus comparsas, um dos sujeitos avança contra a figura trôpega que vem em sua direção, mas os anos sumiram, o defeito na coluna sumiu, todos os fracassos de Chaplin se foram, só quem está ali agora, é Roger, atleta promissor, ele gira o bastão com fúria, e acerta a perna do brutamonte, que se abaixa por reflexo, e sofre um novo impacto agora nas costas, caindo no chão e se contorcendo. O segundo parceiro de Crane corre pra apanhar o cano de ferro, mas quando tenta passar por Chaplin, é atingido no peito e cai pesadamente ao chão, de onde ergue os braços suplicando por ar. Chaplin manca até Crane, e faz um movimento, como se fosse lhe bater com o taco. Crane se encolhe instintivamente, e quando vê que não foi atingido, sai em disparada. Chaplin larga o bastão, cospe um pouco de sangue, e os cacos de dois molares, e sai, andando com dificuldade do beco. Agora ele sabe o que fazer.
-Vida em uma mão, morte na outra. Poder e responsabilidade.
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-Meu filhotinho! Por que você já tá de pé? A mamãe nem te chamou a primeira vez, ainda.
-Hnnngh, eu sei, mas tem um barulho chato na parede.
-Na parede, Trevor? Mas que barulho bobo é esse?
-Uma batidinha.
-Batidinha?
-É, uma batidinha que fica indo e vindo, indo e vindo...
-Deixa a mamãe ver.
Alisson acompanha Trevor até o seu quarto decorado com postêres do Capitão-América, do Thor, e dos Transformers, ela senta próxima á parede, onde a cabeça de Trevor deveria estar e ouve uma batida, quase inaudível, mas nítida, intermitente. Alisson ouve, e seu sangue gela.
Nadine está exausta, ela está exausta e congelando. Ela não consegue sentir o dedo mínimo da mão esquerda, e ele está bem mais feio do que os dos pés haviam ficado. Ela está preocupada, está desesperada, e quando uma lágrima escorre pela maçã de seu rosto, ela sente um cheiro estranho, que leva um segundo pra identificar. Bacon!
Ela nunca imaginou que ficaria feliz em sentir cheiro de bacon, bacon que Lupe, a cozinheira, insistia em colocar no seu prato á despeito de sua recente conversão á dieta vegetariana. Mas de onde vinha o cheiro? Ela não havia sentido desde que fora colocada no cativeiro, e agora, assim que mudava de lugar, ela podia sentir. Bacon! Vinha através da janela coberta com uma tampa de madeira, de além da parede, talvez?
Nadine não tinha nada á perder, ela não queria mais ficar com aquele homem grotesco. Ela tenta bater na parede. Ela bate de leve, mas de maneira insistente, por alguns instantes, a cadência quase a faz pegar no sono, mas o som de uma campainha telefônica abafada a desperta, e ela segue batendo, de maneira insistente, contrita, como se não houvesse mais nada além daquela tarefa.
Peter Parker, também conhecido como Homem-Aranha está de pé, parado diante de um arquivo de aço de onde tira sistematicamente pasta após pasta, lê o endereço, o nome do locatário, e devolve o documento rigorosamente em ordem á gaveta.
Cara, eu não servia pra arquivologista, olha só, eu devo ter perdido mais de uma hora nisso, se eu tivesse a menor idéia der onde a menina pode estar eu certamente teria largado essa tarefa besta de mão á tempos. Eu preciso pensar; ler as palavras, não posso passar os olhos, a vida da guria depende disso, a coitada ta lá, nas mãos daquele cientista louco. Ás vezes eu me pergunto por que, não importa o quanto os fins sejam nobres, os cientistas sempre acabam fazendo muito mais coisas pra se envergonhar do que pra se orgulhar. Não só o Octopus, que é um exemplo meio óbvio. Pegue Einstein, por exemplo, E=Mc2, a fórmula física mais famosa do mundo, e ele sempre será lembrado tanto como o precursor da bomba atômica como o pai da relatividade... Peraí... E=Mc2... Eu tinha visto onde? Aqui, Soho, apartamento de dois dormitórios alugado á seis meses em nome de Eiqwals McSquare, “E Igual eme cê, quadrado”. Te peguei desgraçado.
O espetacular Homem-Aranha salta através da janela do prédio, ganhando os céus de Nova York, ele sabe pra onde ir, ele sabe o que fazer, ele está sentindo uma leveza estranha no estômago, não medo, não após tantos anos, é mais como uma excitação extrema, uma ânsia de fazer algo, ele quer colocar as mãos em Otto Octavius, ele quer levar o Doutor Octopus á justiça. Ele está pensando nisso, antevendo o momento, quando sente um sibilo em sua nuca, e se dá conta de que se trata de seu sentido-de-aranha.
-Gargan!!
Ele olha para cima e vê, saltando de um arranha-céu próximo, a volumosa figura negra e viscosa, a enorme aranha branca no peito, e a boca escancarada, Venom, outrora um uniforme simbiótico trazido por Peter Parker de um mundo distante, depois de rejeitado por seu hospedeiro aracnídeo juntou-se ao repórter falido Eddie Brock em uma longa e incansável campanha contra o Aranha, quando Eddie desenvolveu câncer, separou-se do traje em um leilão, em que a substância foi arrematada por Don Fortunatto, um mafioso que queria que seu filho, Ângelo, fosse o novo Venom, infelizmente (pro Ângelo) o Simbionte não se adaptou á ele, abandonando-o em pleno salto e causando sua morte, depois disso, a criatura se uniu á MacDonald Gargan, antes o Escorpião, um detetive transformado em super-vilão por um experimento patrocinado por J. Jonah Jameson num de seus arroubos anti-Aranha, agora Gargan conhece a identidade secreta do Homem-Aranha, mas é insano e egoísta demais para partilhar dessa informação com alguém. Eles só se enfrentaram uma vez desde que o Simbionte passou ás mãos de Gargan (ou Gargan ás mãos do Simbionte, quem sabe?), e foi em uma situação atípica, O Homem-Aranha sabe que Gargan já possuía dons sobre-humanos antes do Simbionte, que tem o dom de aumentar a força física de seus hospedeiros através de emoções negativas e se alimenta de adrenalina. Tudo isso passou pela cabeça do herói em menos de um segundo, tempo que o novo Venom levou para estar ao alcance de seu punho. Um soco forte, aproveitando a velocidade da queda do vilão, atingindo em cheio seu estômago.
-Hfuuuuuuuuuuuuunfh!!
O Venom sente o golpe, mas é ágil, forte, e não cairá tão facilmente. Ele lança um jato de teia, se contorce no ar, e arremete de volta contra o Homem-Aranha, que para sua surpresa, segue avançando. Venom se lança com força com intuito de acertar seu alvo com os dois pés, mas no último instante, o herói dá uma pirueta larga, fazendo com que o enorme antagonista passe no vazio do movimento.
-Desgraçado!!! Vem brigar comigo!!!! Cadê as piadinhas? Vem brigar!
Ensandecido, o vilão se lança novamente, dessa vez, porém, ele dispara um filete de teia, e puxa o Homem-Aranha contra si, como resultado, ambos se chocam no ar, Venom segura o rosto do Aranha junto ao seu, enquanto lhe dá um abraço de urso, ele fala com sua boca enorme deixando que respingos de uma saliva grossa e esverdeada lhe escorram dos dentes pontiagudos:
-Ah, ah, ah, ah, finalmente, depois de tantos anos eu te peguei, e nem sequer é pessoal, me disseram onde te achar, miserável, eu e o traje não podíamos estar mais felizes, acho que pra homenagear o finado Brock, vamos comer o teu cérebro, ou quem sabe o teu coração? Tô na dúvida, alguma sugestão?
-Na verdade tenho uma sim. Vai comer um halls, Gargan, por que teu bafo fede á rato morto.
Os músculos potentes do pescoço de Peter Parker impulsionam sua cabeça com a força de um carro popular contra o rosto desfigurado de seu inimigo totalmente desprotegido, o resultado é uma pequena chuva de cacos de presas voando em meio á gotas de saliva e sangue, além de libertar o herói dos braços do vilão. O Homem-Aranha dispara um jato de teia em um prédio próximo, salvando-se da queda, e quando Venom, alguns metros abaixo tenta fazer o mesmo, é impedido, pois o Homem-Aranha ejeta outro jato com a outra mão, interceptando o seu. O vilão se esborracha pesadamente no chão, sumindo em uma pilha de lixo no beco abaixo. O Homem-Aranha tem ímpetos de descer e se certificar de que Gargan está mesmo inconsciente, de envolvê-lo em teia e chamar a polícia, mas ele se lembra do que aconteceu algumas horas antes, e resolve seguir em frente.
Alisson está vendo toda a sua vida passar diante de seus olhos, ela encara a parede quase como se pudesse ver através dela, ela está transtornada, sua obrigação como mãe, é proteger seu filho independente de qualquer outra coisa, entretanto, sua obrigação como pessoa, é pegar o telefone, e fazer o possível.
-Trevor, a mamãe quer que você faça o seguinte: Vá ao banheiro, coloque a sua roupinha, e vamos sair pra dar uma volta.
-Ah, não, mas é muito cedo, manhê. Eu nem tomei café, eu nem escovei os dentes e minha aula é só daqui á duas horas.
-Vamos fazer o seguinte, a mamãe te leva pra tomar café fora, pode ser? Onde você quiser.
-Pode ser no McDonald’s?
-Pode, mas tem que se vestir beeeem rápido, pode ser?
-Tá!
O menino pega as roupas penduradas na cadeira diante de uma escrivaninha de tamanho próprio para uma criança e corre, ligeiro, em direção ao banheiro, nesse interim, Alisson vai até seu quarto e passa á trocar de roupa rapidamente, ela ouve Trevor dar a descarga, ouve a torneira ser ligada e depois fechada e a porta do banheiro ser aberta.
Trevor está pronto, eu ligo para a polícia, e saímos, agora já são seis e meia da manhã, não vai parecer suspeito se eu sair com ele agora.
Ela anda rápido, batendo os calcanhares contra o piso de parquê encerado com esmero, e chega ao corredor que leva os quartos e o banheiro á sala, ela ergue o telefone, e digita rapidamente o nove, um, um, ela cola o telefone ao ouvido e percebe que não há sinal, ela baixa o gancho com o dedo e espera pelo ruído contínuo, mas ouve a voz de Trevor:
-Oi, moço.
Ela percebe, então, que ouve a voz de Trevor pelo telefone e vindo do corredor. Ela larga o telefone no chão, e corre para a sala. Ela se depara com o pequeno Trevor, sentado no chão, amarrando os tênis, e diante dele assoma a figura sombria de um homem alto e gordo, vestindo um enorme sobre-tudo negro, ele tem uma folha de papel na mão direita, o telefone da sala na esquerda, e de suas costas, se estendem quatro tentáculos de metal, e eles se remexem como enormes serpentes. O homem á vê chegando, olha para a lista, e então fala de maneira calma, e talvez por isso mesmo tão assustadora:
-Olá, senhorita... Carter, correto? Eu percebi que a senhora discou o número de emergências, e supus que, uma vez que sou seu único vizinho homem em condições de ajudá-la em possíveis contingências, este era o momento propício para me apresentar. Meu nome é Doutor Otto Octavius.
O Homem-Aranha se balança em alta velocidade por entre os precipícios de concreto da cidade de nova York, ele não olha pra trás nem para baixo, pois não quer que nada tire seu foco, ele não tem muito tempo. Nadine Morrow não tem muito tempo.
Ele faz uma curva acentuada, perdendo velocidade, quando sente novamente o arrepio na nuca, e sente o zunido na cabeça: -Sentido de Aranha- O Venom ressurge, atacando com fúria, com ira, golpeando á esmo. Os golpes são dados com os pés, os punhos, as presas, uma barragem de agressões interminável, entretanto, elas atingem apenas braços que se fecham ao redor da cabeça do herói aracnídeo, numa guarda impenetrável, mas conforme os golpes se sucedem, o Homem-Aranha constata que se não fizer algo, terá seus braços quebrados, ele está preso na parede, se engalfinhando com Venom á, pelo menos, onze andares de altura, ele percebe seu inimigo preparando um golpe, e vê uma brecha para agir.
Ele aguarda até o último segundo, sem prestar atenção á visão, confiando apenas em seus sentidos especiais, e é seu sexto sentido que lhe alerta para se esquivar um milésimo antes de o golpe lhe atingir. O punho do monstruoso Venom rompe com facilidade o concreto da parede, se enterrando na fachada do prédio até o cotovelo. O monstro começa á forcejar para tirar o braço do espaço exíguo quando nota que seu antagonista não está mais no lugar, ele olha em volta:
-Desgraçado! Onde foi que se meteu? Fugiu de novo, mas não tem erro. Eu te acho.
-Eu sei que acha Mac, por isso vou facilitar pra você.
Seguindo a voz MacDonald Gargan olha alguns metros acima e vê o aventureiro conhecido como Homem-Aranha colado á parede, antes que ele possa elaborar algum insulto, o herói despenca da parede, atingindo com os dois joelhos o cotovelo preso á parede. Um ruído alto de ossos se partindo se faz ouvir, seguido instantaneamente de um guincho e de um rosnado desumano proferidos pelo homem e pelo simbionte que o envolve. Venom e Homem-Aranha caem através do vazio em direção ao chão, entretanto, o herói lança sua teia em uma calha com a mão direita, e nos pés de seu inimigo com a esquerda, ele usa a inércia de seus movimentos para chegar á parede, e quando o faz, seus poderes de adesão molecular o fixam á parede ignorando a gravidade. Músculos melhorados através de um milagre/acidente e tarimbados por anos de combates contêm a queda da criatura de mais de cem quilos abaixo de si, e usando o empuxo gerado pela queda, o arremessam contra uma parede de tijolos que se desfaz diante do choque como se fosse uma nuvem. Venom, fustigado pela dor no cotovelo e agora nas costas, se levanta com dificuldade, ele olha em volta e vê que é um tipo de depósito, então uma sombra interrompe a luz que entra pelo buraco na parede. Ao olhar, o Simbionte se ouriça antevendo a nova chance de matar seu eterno desafeto, Gargan, no entanto, sente um calafrio lhe percorrer a espinha.
-Gargan, eu cansei de você com essa gosma por cima. E vou tirar ela de ti por bem ou por mal.
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Otto Octavius não é um homem de se prender á emoções. Ele sempre foi contido, calculista, talvez até frio. Mas é assim que homens da ciência devem ser. Otto Octavius está sentado confortávelmente diante de seu computador, ele sorve silenciosamente uma xícara de chá-preto, e embora seus olhos estejam pousados sobre um menino de não mais de sete anos, e sua mãe, uma mulher bastante atraente, embora já de certa idade, ele vislumbra ao longe. Ele se vê em uma mansão confortável nos Alpes suíços, comendo iguarias deliciosas e comandando uma criadagem competente e silenciosa enquanto realiza experiências com fórmulas atômicas desconhecidas, e, quem sabe, fazendo uma descoberta tão significativa, que diante dela, seus pecados tornam-se irrelevantes, e ele finalmente recebe o reconhecimento que sempre mereceu. Ele pensa no futuro, e quase deixa escapar um sorriso, mas o menino soluça ruidosamente, e a expressão de Otto se fecha. Ele olha para a mulher e para o menino e diz:
-Preciso ficar sozinho por alguns momentos, tenho certeza de que a senhora entenderá que sua prole ruidosa não se encaixa em tal conceito.
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Chaplin andou muito. Sua perna dói demais, um problema com o qual ele aprendeu á conviver, mas que nunca havia sido tão incômodo, ele chega á um prédio simples, ao lado de um beco, no Soho, ele encara a escada de seis degraus diante do prédio e fica desanimado quando percebe a dificuldade que enfrenta para superá-los. Talvez por que se lembre que no endereço que lhe deram, o apartamento consta no sexto andar. Ele tenta girar a maçaneta da porta de entrada, mas nada acontece. Ele puxa do bolso um clipe de papel, o desdobra transformando-o em um arame fino, saca do outro bolso uma ferramenta clavicular fina de mais ou menos dez centímetros de comprimento, e os intromete no buraco da fechadura, faz um ou dois movimentos como se tentasse encaixar algo, e ouve satisfeito um clique “Não perdi o jeito” ele pensa quase orgulhoso. Ele entra no prédio simples, e se depara com as impiedosas escadas, pensa em contar os degraus, mas desiste, “vai tomar muito tempo” conclui. E agarrado firmemente ao corrimão, começa á subir.
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Nadine Morrow está apreenssiva, a fase do terror aparentemente passou, e a do medo também se foi. Ela não sabe mais o que esperar, ela não se importa com o fim, contanto que haja um fim, e que seja logo. Ela está tendo esses pensamentos quando a porta de seu cativeiro se abre e ao invés da volumosa figura de seu captor, ela vê serem empurrados para dentro da sala um menino pequeno e uma mulher vestindo umas roupas horríveis. Ela pensa nisso quando se dá conta de que está nua, e cobre os seios e junta as pernas. A mulher olha para a porta, passa a mão no rosto do menino limpando-lhe as lágrimas, e então olha para Nadine, e Nadine que sempre era olhada com inveja, cobiça ou desaprovação, percebe compaixão naqueles olhos, e antes que tenha tempo para sintetizar isso, a mulher está ajoelhada á sua frente examinando seu dedo escurecido e inchado. E talvez a ternura que aquela mulher emprega aos seus movimentos, ou talvez seu olhar compadecido, fazem Nadine chorar de novo, mas não de medo ou dor, é algo que ela não sabe explicar, assim como um nó na garganta, mas ela se sente grata. Grata como jamais se sentiu antes.
Um murro, dois, três, dez, Mac Gargan já perdeu as contas de quantas vezes foi golpeado, ele não estaria mais de pé se o traje não estivesse o mantendo assim, ele chega á pensar que talvez fosse melhor demaiar, pois embora o traje o fortaleça e aumente sua resistência, não consegue assimilar sua dor física, e ela não é pouca.
O Homem-Aranha está ficando exausto, não é fácil se esquivar de todos os golpes do Venom, nem tampouco golpeá-lo com tanta costância e com a violência necessária, ele está começando á ficar exausto, e pior do que isso, sem tempo, ele precisa tirar Gargan e seu traje de combate, ele está tão perto de seu objetivo, mas não pode deixar Venom á solta. Ele se recorda então, de onde está, um depósito, ao seu redor, galões de mostarda, óleo, catchup, freezeres e caixas de latas de refrigerante. Uma lanchonete. Então ele se dá conta: Óleo.
Venom tenta um contra-ataque, uma finta acrobática tira o Homem-Aranha de seu alcance, e o faz pousar suavemente ao lado de uma pilha de galões de condimentos e latas de cinco litros de óleo vegetal, enquanto seu inimigo avança, o Homem-Aranha empunha um galão de mostarda e uma lata de óleo, ele pega ambos e arremessa primeiro o galão plástico de mostarda, do qual Venom se esquiva, e, em seguida, o recipiente de óleo, que atinge o vilão tão violentamente que se arrebenta, cobrindo o traje com o líquido. Entretanto, cheio de ódio pelo golpe baixo, Venom avança sem se dar conta de que a substância que o envolve do ombro ás pernas, é inflamável, ele se lança de encontro ao herói, e o choque faz com que a placa de gesso do chão ceda, e ambos caiam no andar térreo, onde fica de fato a lanchonete, vários funcionários estão do lado de fora do estabelecimento, provavelmente afugentados pelo estardalhaço no segundo andar, eles gritam e apontam quando o Homem-Aranha e o Venom caem engalfinhados entre as mesas do restaurante, o Aracnídeo se levanta primeiro, mas Venom, ainda se erguendo lhe atinge com um soco violento, que arremessa a figura esguia trajada de azul e vermelho através de um cardápio luminoso preso atrás do balcão e o faz cair pesadamente na cozinha, antes que seja capaz de se levantar, o Homem-Aranha se vê com o pescoço preso entre as mãos fortes como tornos de seu inimigo, que uma vez mais fala, deixando a saliva escorrer por entre suas presas através de sua língua desproporcional:
-Vai, Aranha, faz um comentário engraçadinho, uma piada, uma frase de efeito, vai palhaço, diz alguma coisa, qualquer coisa!!!
O Homem-Aranha engasga, e luta para erguer uma das mãos por entre os braços de Venom, como se quisesse colocar algo diante dos olhos de seu algoz, quando consegue, Gargan vê o pequeno instrumento de plástico, com uma cânula de metal fina, de não mais que quinze centímetros de comprimento, enquanto o herói em suas mãos diz:
-M, ma, magiclic.
Um pequeno gatilho é acionado, e uma faísca sai da ponta da cânula do objeto, e o óleo que recobre o vilão do ombro até as canelas entra em combustão, no mesmo instante, o Homem-Aranha empurra com força sobre-humana o vilão, afastando-o de si antes que as labaredas o atinjam, os guinchos do traje se misturam aos gritos de Gargan, que instintivamente começa á se separar do simbionte, que afligido pelas chamas não oferece resistência, assim que o doloroso processo termina, Macgargan está nu, parado como se tentasse se equilibrar, e o simbionte escorre pelo chão como uma sombra viscosa e arredia, em direção á uma pia, por cujo ralo escapa. O Homem-Aranha anda até Gargan:
-Gargan.
O vilão se vira com dificuldade, e percebe o herói com a mão erguida na altura de seu queixo, o polegar segurando o indicador, e os outros três dedos extendidos. Ele se esforça para entender o gesto quando o Homem-Aranha libera o indicador, dando um peteleco que joga Gargan um metro e meio para trás, desmaiado. O aracnídeo envolve seu inimigo com teia enquanto ouve o som de sirenes se aproximando, e salta pelo buraco no teto, e ganha as ruas pelo buraco na parede do segundo andar.

Otto Octavius escuta o som das sirenes vindo da lanchonete barata distante não mais do que meio quarteirão do seu QG atual. Ele se inquieta, olha de maneira sorrateira pela janela da frente, ele se enerva ao ver que há pelo menos três viaturas e um camburão, número padrão para contenção de atividades super-humanas, “o timing é perfeito”, ele pensa, “á menos de uma hora para o fim do prazo estabelecido para o pagamento do resgate, a polícia bate á sua porta para resgatar a menina seqüestrada.”. Mas Otto Octavius não pretende deixar que as coisas simplesmente aconteçam, oh, não, ele vai mostrar ao mundo do que é feito Otto Octavius, e do que ele é capaz. Aquela menina mimada, indelicada, e mal-agradecida por todas as coisas boas que tem, sem nem sequer merecer, vai ser encontrada pelos policiais, sim, mas em pedaços conforme ele prometera desde o início. Essa era a sua contigência, o crime não precisava ser executado de maneira perfeita, se funcionasse, tanto melhor, mas de um modo ou de outro, a jovem Nadine Morrow não voltaria viva para a casa, era a maneira que Otto encontrara pra deixar claro que estava falando sério, que era uma força á ser temida. E nesse instante, ele passa pelo computador pessoal, aberto em uma página de acesso á saldos de contas em um net bank das Ilhas Caimãs, e ignora-o pela primeira vez desde que o plano, elaborado com tantas minúcias, foi colocado em prática. Ele se dirige furiosamente á porta da saleta que foi transformada em cativeiro para Nadine Morrow. Ele conjectura á respeito da necessidade iminente de matar a mulher do apartamento ao lado e seu filho, não é algo que Otto apreciaria fazer, não por ser uma tarefa asquerosa, mas por que eles não são ninguém, e esses crimes não terão o impacto que Otto gostaria de empregar á morte da jovem Nadine. Talvez matá-los copiando o modus operandi de algum homicida perigoso seja apropriado. Todas essas variáveis passam pela cabeça de Otto Octavius até que ele pára e encara a porta do cativeiro. A porta aberta, do cativeiro.
O punguista conhecido pela alcunha de Chaplin está parado meio metro dentro da saleta trasfigurada em cativeiro para Nadine Morrow e Trevor e Alisson Carter, ele tenta ajudar Alisson á amparar Nadine, mas o esforço é sobre-humano, sua perna dói demais, subir os seis lances de escada que separam o térreo daqui depois de ser espancado pelos capangas de Benny Crane é mais castigo do que ele pode suportar, além disso, ele está preocupado por que depois de abrir a fechadura da porta do apartamento, ele foi camuflado pelo ruído de sirenes próximas e viu que o Doutor Octopus estava na janela, agora, no entanto, as sirenes haviam cessado, e ele tinha quase certeza absoluta de que não conseguiria passar despercebido pela sala com uma menina ferida, e agora ele tinha a menina ferida, um menino pequeno e aquela bela mulher. Chaplin está se amaldiçoando por não ter encontrado o Homem-Aranha. Por não ter se oferecido para usar seus contatos antes. Chaplin pensa nisso quando ouve um ruído mecânico atrás de si, e ouve o grito do menino que encosta-se à parede em seguida.
-Eu não sei quem é você, mas vou tentar o jogo de deduções do detetive Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle. Minha dedução é de que o senhor nada mais é do que um suicida. Uma pessoa perturbada que deseja renegar o dom da vida, por que esta foi muito injusta para com o senhor. Se minha dedução proceder, devo acrescentar que o senhor veio ao lugar certo, embora vá ter que entrar na fila. A senhorita Morrow aqui, é a feliz possuidora da primeira posição nesse ranking macabro.
Chaplin se apavora, ele é um homem aleijado, tem dificuldades enormes para andar, e nas últimas horas foi exigido além das possibilidades de seu corpo. Ele não teria condições de se opôr á Octavius nem que fosse jovem e saudável, no estado em que se encontra então, é virtualmente impossível fazer qualquer tentativa de impedir o vilão de matar Nadine. Ele olha para a menina, tão frágil, sua pele alva, magra, os cabelos finos em desalinho, as mãos feridas, os pés praticamente esmagados, a expressão de terror em seu rosto. Ele olha a mulher que a ampara, tão bonita, tão cheia de tristeza nos olhos, e por fim, olha para o menino, uma criança, encarando com olhos azuis esbugalhados a face da morte. E ele toma uma decisão.
-Poder e responsabilidade.
Otto Octavius passa por Chaplin como se ele não existisse, a mulher tenta se colocar entre ele e a menina, mas é afastada com um solavanco de um dos braços metálicos, ele avança contra Nadine, e quando se prepara para pegá-la, sente uma pontada nas costas, e em seguida a sensação molhada de sangue. Ele usa um dos apêndices para remover uma pequena ferramenta com ponta em forma de chave cravada nas suas costas na altura da cintura, e constata aliviado que a peça é pequena demais para lhe causar qualquer dano mais grave do que um arranhão e desconforto. Ele mostra a peça para Chaplin, e a sacode diante dos olhos dizendo:
-Uma excelente tentativa, muito bem pensado, entretanto, eu creio que houve certa carência no quesito força. Permita-me demonstrar como deveria ter sido o procedimento.
Otto Octavius, ainda com a ferramenta segura em um de seus tentáculos a empurra contra o abdôme de Chaplin, a peça entra profundamente, seguida pelo tentáculo de aço, e ambos atravessam o corpo dele, entrando pela barriga, e saindo pelas costas. Chaplin olha incrédulo para o tentáculo que o permeia, e sente o sangue subindo de sua garganta.
-Assim, teria sido melhor.- Diz Octavius com um sorriso sádico. Ele se vira, deixando Chaplin estrebuchando no chão, e pega com seus tentáculos os dois braços e as duas pernas de Nadine.
-Entenda minha jovem, isso é algo que deve ser feito. Não posso dizer que lamento, mas aviso-lhe de que não se trata de uma questão pessoal.
Ele está começando á puxar cada tentáculo em uma direção, pronto para estraçalhar a jovem em pedaços, quando ouve uma voz familiar.
-Pode não ser pessoal pra você Otto, mas pra mim é.
Um par de pés atinge as costas de Octavius com um coice de mula, ele imediatamente larga a menina e vira-se para encarar seu conhecido antagonista.
-Ora, ora, ora. Antes tarde do que nunca Homem-Aranha. Embora eu deva confessar, imaginei que um crime mais corriqueiro não despertaria o seu interesse, ou, que trabalhar usando um low profile seria suficiente para superar suas limitadas faculdades mentais e tirá-lo de meu encalço. Infelizmente, parece que me enganei pelo menos parcialmente, afinal, você só chegou agora, quando já é a hora de descer as cortinas para esse espetáculo.
-Desculpe, seus lábios se movem, mas só o que eu ouço é blá-blá-blá, sou um gordo doente mental.
-Ora seu verme sem respeito!
Otto Octavius tenta atingir o Homem-Aranha com dois tentáculos enquanto usa um terceiro para imobilizar Nadine e o quarto para conter Trevor e Alisson em um canto do quarto exíguo.
Nesse espaço minúsculo eu não vou poder escapar do Octopus por muito tempo, preciso, no mínimo, levar ele pra sala.
O Homem-Aranha dispara um jato de teia certeiro em um dos tentáculos, e o puxa de encontro ao outro, unindo-os através do fluído, para sua infelicidade, ao invés de inutilizá-los, torna-os num porrete, que o Dr. Octopus usa com extrema perícia, esmurrando-o no queixo e arremessando-o através da parede. Otto sabe que o Homem-Aranha não tardará á voltar, então o persegue através da brecha na parede até o apartamento de Alisson. Para sua surpresa o Homem-Aranha não está caído no chão como ele esperava, ele esquadrinha a sala, e quando olha para o teto, uma vez mais é atingido pelos pés do herói.
-Tua guarda tá muito aberta Oquinho, desse jeito eu acabo contigo, conheço cento e setenta e três formas de matar com os pés, cento e setenta e quatro se o chulé contar.
Enfurecido, Otto Octavius deixa de lado Alisson e Trevor para contar com um tentáculo á mais para atacar o aracnídeo, ele consegue arrebentar a teia e liberar os tentáculos que estavam unidos, e os arremete um após o outro contra o Homem-Aranha, que se esquiva em movimentos leves e precisos, escapando por milímetros de cada golpe, então, para sua surpresa, o Homem-Aranha deixa a defensiva, e avança contra ele. Otto arremessa os três tentáculos livres contra o Homem-Aranha, que em pleno vôo laça os três com teia e os leva consigo para trás do cientista criminoso, que desequilibrado, tomba pesadamente de costas no chão. É nesse momento que o super-herói mascarado consegue pegar o tentáculo que segura Nadine, e usando toda a sua força desenrola-o da cintura da jovem. Ele a coloca no chão e dá a ordem:
-Corre!
Dois dos tentáculos do Dr. Octopus o colocam de pé enquanto os outros dois se lançam desesperadamente para tentar recuperar sua refém, mas o Homem-Aranha é mais rápido, ele se coloca na direção de um dos tentáculos enquanto captura o outro com teia, impedindo-o de avançar segundos antes de tocarem a Jovem que corre com dificuldade quase cruzando a porta, o herói então dispara mais um jato de teia, dessa vez nos olhos de Octavius, que enfurecido, e com seu inimigo á disposição começa á golpeá-lo com ódio. Uma seqüência violenta de golpes brutais, fortes o bastante para esfacelar concreto, sistematicamente atingem a cabeça e o tronco do Homem-Aranha. Otto Octavius espanca selvagente seu inimigo e vocifera com a voz embargada de ira:
-Você sabe o que fez comigo? Você tem alguma idéia? Você me roubou tudo! Roubou meu plano, minha chance de mudar minha vida, minha chance de alcançar o sucesso! Meu sucesso, meu por direito, não importa o que parecia pra você, era a minha chance, minha única chance!!! Você me tomou a minha vida seu inseto desgraçado e intrometido, e eu vou tomar a sua!!!!Agora, você tem algum último gracejo? Algum último comentário espirituoso antes de eu dar fim á sua vida miserável, e ir até lá embaixo, pegar aquela fedelha mimada e terminar o que eu comecei?
Otto Octavius segura o Homem-Aranha, inerte, seu traje rasgado, as lentes de sua máscara partidas. Ele olha para o herói com desdém, e o traz até a frente de seu rosto, bem perto.
-Eu estou destinado ao sucesso, Homem Aranha. Ao sucesso. E não é você, um microcéfalo com ilusões de grandeza, nem uma menina estragada pelos pais, ricos e culpados que vão me impedir de trilhar meu caminho.
-Otto... Otto, o úni... Único caminho que cê vai trilhar... É até a Balsa.
-Uma bravata. Devo admitir que seja uma bela bravata, entretanto, bravatas são insignificantes quando desprovidas de lastro para sustentá-las.
-É... Que eu sei de uma coisa... Uma coi... Uma coisa que cê não sabe, Octopus...
-Ah, e o que seria, Homem-Aranha? Deixe que suas últimas palavras sejam partilhando sua sapiência comigo. O que você sabe que eu não sei, Aracnídeo?
O Homem-Aranha se inclina para frente, e sussurra no ouvido de Octavius:
-O-o c-corpo humano, c-con-conduz eletricidade.
Assim que profere essa frase, o Homem-Aranha dispara um jato certeiro de teia em um fio exposto no buraco da parede pela qual Octopus o atravessou, e, com a teia, puxa o fio até a sua mão, e dali para todo o corpo do herói, e então, através dos tentáculos de Otto Octavius até o sistema nervoso central do vilão, ao qual estão ligados. A descarga faz com que o Homem-Aranha e seu inimigo convusionem, tremam e se retesem, até que o herói larga involuntariamente a teia. Ele e Octopus caem no chão desacordados. Mas após alguns minutos, a resistência ampliada do Homem-Aranha lhe traz de volta a consciência, ele se levanta de um torpor doloroso, e constata as queimaduras de segundo grau na mão que segurava a teia, e as queimaduras leves nos locais seguros pelos tentáculos de Octavius. Ele envolve Octopus em teia depois de checar seus sinais vitais, mesmo achando pouco provável que ele acorde antes de meia hora. É só então que ele vê. No apartamento onde Nadine estava escondida, estirado no chão, em meio á uma poça de sangue.
-Chaplin!!!- O Homem-Aranha salta até onde está o corpo, e ergue sua cabeça no colo.
-Chaplin, chaplin! Ah, meu Deus, o que é que cê tá fazendo aqui?
-... Eu... Eu ouvi... Ouvi o que tu falou... Aranha... Poder... Responsabilida... Dade. Eu... Tomei... Tomei... Mun decisã... o... o...cara fez tu...tudo isso...pranum sê umfrcassad?...Eh... e..eu tô até feliz de ser... d sê um frcassad... frcassa-


Chaplin morreu nos meus braços. Muita coisa aconteceu depois disso. O resgate de Nadine foi parar na TV em um espaço dedicado á captura do Venom, que por sinal, ficou catatônico depois do choque da separação do simbionte. Parece que eu não precisava ter batido nele afinal de contas, mas foi aliviante, de qualquer modo, o pai dela, Jerome Morrow não chegou á fazer o depósito de cem milhões, que estava preparado. Mesmo assim ele vai ter uns problemas pra recuperar todas as ações que vendeu á rodo pra levantar o dinheiro, nada que não se arranje com tanta grana no banco. Nadine se recuperou do choque do cativeiro, e foi estudar na Europa, não antes de pedir que seu pai desse uma recompensa á Alisson, que faturou dez milhões de dólares, dez por cento do valor do resgate. Gargan tá internado em Ravenloft, o hospital psiquiátrico dos vilões perturbados, e Otto foi, de fato, pra balsa, embora depois do que fez ele talvez merecesse uma agulha naquele braço roliço. Ele seqüestrou a menina, a torturou, matou dois homens. E em nome de quê? Sucesso. Ele se justificou! Teve a cara-de-pau de me dar uma explicação pra ter feito aquilo.
É muito fácil encontrar respostas, justificativas depois que cometemos um erro. É da natureza humana, nós erramos e tentamos outorgar nossa falha.
Talvez por que essa justificativa, mesmo que artificial, seja mais fácil de engolir do que culpa e arrependimento, remédios amargos que curam a alma, mas ferem o coração. É muito mais simples justificar depois do que medir e pesar antes, pra ver o quanto são terríveis as coisas que fazemos em nome de conforto, luxo, sucesso...
E no final das contas, o que é sucesso? Epíteto, o filósofo grego dizia que era ser taxado de idiota, significava que você não ligava mais pra opinião dos outros, e que isso era sucesso... Não sei se concordo. Reconhecimento? Riqueza, talvez? Acho que não. O abraço de um filho? O perdão do pai, o afago da mãe. Esses me parecem mais com sinais de sucesso.
Vitórias? Cada uma delas. As grandes vitórias, aquelas que a gente só consegue dimensionar quando pára e pensa no quanto custaram. As pequenas vitórias, conquistadas com suor todo o santo dia. Não... Não precisam ser necessariamente vitórias.
Chegar em casa, se olhar no espelho e saber que, não importa o que houve, você deu o seu melhor que você foi forçado ao seu limite, mas a vida exigiu e você deu mais dez por cento... Isso, isso sim é sucesso. A certeza de que, independente do resultado, você esteve á altura do desafio.
Parabéns Chaplin. Não importa se durante a vida você foi taxado de fracassado. Na hora mais importante, antes de prestar contas, a vida exigiu, e você ofereceu mais dez por cento.
O Homem-Aranha pousa uma tulipa sobre o túmulo em que se lê:
Roger Andretti, amigo e herói.
Parabéns Roger. Você é um sucesso. Descanse em paz.



Fim.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Um feliz Natal pra todos.


E chegou o Natal, aqui estamos, á poucas horas do dia 25 de Dezembro.
Espero que todos tenham uma noite mais do que feliz, seja ceiando com família, com amigos, ou mandando todas as convenções lá pra casa do Capita e saracoteando em alguma casa noturna da vida.
Saudações á todos, á todos muita paz, e um FELIZ NATAL!