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quinta-feira, 29 de abril de 2010

Tocando a vida.



Vladislau caminhou para dentro do brete de fita sustentado por pequenos postes de metal que abrigava a fila da loja.
Ficou lá, parado, avaliando suas opções para em seguida. Segurava uma calça jeans, três camisetas e um casaco de veludo, vasculhava os bolsos procurando pelo cartão da loja enquanto se perguntava se seu limite cobriria as compras ou se precisaria dar uma entrada em dinheiro, talvez pagar as camisetas á vista... Conjecturava a esse respeito, pensando se faria uma gordurosa incursão ao burger king depois das compras, ou se iria procurar a SuperInteressante e o Homem-Aranha daquele mês, se compraria um jogo de videogame ou se iria guardar dinheiro pra alguma eventual necessidade e se compraria a TV de 42 polegadas que estava namorando já fazia alguns meses... Pequenos pensamentos mundanos de final de mês na fila de uma loja de shopping.
Vladislau alisava o casaco que adquiriria quando se virou casualmente para trás, ao pressentir a aproximação de outra pessoa, olhadela rápida, com o rabo dos olhos, apenas para ter ciência de quem se postara atrás de si, e o choque.
A mulher que vislumbrava, de olhos baixos, as próprias compras era bonita, morena, os cabelos negros compridos e ondulados se deitavam sobre os ombros torneados e firmes e emolduravam o rosto coberto de sardas, as sobrancelhas bem desenhadas, os lábios carnudos, o nariz afilado com um quê de Julia Roberts... Era uma mulher bonita, mas não era essa a razão do choque de Vladislau, a razão do choque era outra:
Aquela mulher e ele partilharam um passado comum.
Ela fora, durante dois anos e meio, a mulher da vida de Vladislau. Seu nome era Isabel, fora a namorada de portão de Vladislau, fora seu primeiro amor sincero e consciente, um amor que ele escolheu nutrir, que não fora criado por circunstâncias.
Sim, Isabel fora a mulher que Vladislau escolhera para amar, que ele escolhera para ser a mãe de seus filhos, com quem queria construir um futuro, Vladislau passara dois anos e meio nutrindo o amor por Isabel, e, de uma forma ou de outra, achara que fora correspondido, embora, olhando pra trás, ás vezes tivesse certeza de que amara mais do que fora amado e talvez até houvesse sido esse fato que houvesse acelerado o final da relação, vá saber...
A questão foi que, em certos momentos Vladislau se sentia fora de lugar naquela relação, ele por vezes se sentia vilipendiado e preterido nas afeições de Isabel, e o amor que ele nutrira com tanto interesse e dedicação foi sendo ressecado por palavras mordazes e atitudes irônicas e sarcásticas de parte à parte, culminando numa separação em que muito foi colocado pra fora, que fora regada à lágrimas, mas que, pelo menos fora sem ressentimentos, e talvez, até ainda com algum resquício de afeto entre ambos.
Agora, mais de dez anos haviam se passado, e ali estava ela, Isabel, menos de vinte e cinco centímetros de distância de Vladislau, remexendo as próprias compras, Vladislau não sabia como reagir, desde o final do namoro encontrara Isabel poucas vezes, sempre rapidamente, sempre em ocasiões em que um ou o outro estavam prestes á fazer alguma outra coisa com outra pessoa.
O que ele diria? O que faria? Será que ele estava bem? Engordara uns quilos, mas isso podia ser disfarçado na postura, ele ajeitou a coluna, pondo-se em posição ereta, conferiu o próprio hálito, tudo bem, comera uma caixa inteira de tic tac, o hálito estava OK.
O que diria à ela, por Deus? Viraria-se casualmente, a cumprimentaria fingindo surpresa "Isa? Quanto tempo!". Não... Melhor não chamá-la de Isa, não seria apropriado, afinal, não queria soar íntimo demais...
"íntimo demais", mas que bobagem!
Claro que era íntimo demais de Isabel, explorara o corpo nu dela em mais de uma ocasião, conhecia os recônditos mais particulares dela pessoalmente, poderia cumprimentar os tais recônditos com um "Opa, beleza?" de tão bem que os conhecia, e agora ali estava, pensando em não soar demasiado íntimo de uma mulher com quem tomara banho mais de uma vez, de uma mulher com quem dormira sem roupa, com quem partilhara sorvete de casquinha na mesma colher, claro que eram íntimos, com mil demônios.
Mas tudo bem, não era de bom tom se valer desse expediente.
A cumprimentaria casualmente, sim, mas com alguma deferência, mostrando apropriada gentileza:
"Oi, Isabel, tudo bem contigo? Como vão as coisas?".
Sim, eles conversariam, alegremente, ela elogiaria seu casaco, ele diria sorrindo meio pro lado que não entendia o suficiente de moda pra elogiar as roupas dela, eles ririam, ele a convidaria para tomar um sorvete de casquinha, "não na mesma colher, ah, ah, ah, ah, ah..."...
Não, melhor não.
Ele a convidaria, casualmente para jantar, sim, algo como "Estou indo jantar agora, e tu?", ela diria que também estava, e eles jantariam juntos como nos velhos tempos, como faziam nas quartas-feiras, jantar, cinema, depois ver TV abraçadinhos, deitar e fazer amor apaixonado... Sim, ele gostaria disso, não gostaria?
Ela fora o amor de sua vida, a mulher de sua vida, talvez agora ela aprendesse a amá-lo como ele a amava, e eles seriam felizes como não haviam sido, sem as cobranças, ironias, sem as palavras ferinas e o sarcasmo...
Vladislau se virou casualmente, olhando Isabel, ela devolveu o olhar erguendo levemente as sombrancelhas, encararam-se em silêncio por breves segundos, ele falou:
-Isabel?
Ela fez uma expressão indefinida e apenas disse:
-Sim...
Ele não pôde acreditar, será que ela não o estava reconhecendo? Seria isso?
-Oi, Isa. Tudo joia contigo?
-Ahn... Tudo, tudo joia, e contigo?
Ela não o estava reconhecendo... Não... Não era possível, ela não o estava reconhecendo. A ele, a ele que a amara, a ele com quem tomara banho, a ele que conhecera intimamente os recônditos mais particulares do corpo nu dela, ela não o estava reconhecendo.
-Tudo bem... O que tem feito?
-Ah... Trabalhando, trabalhando muito...
Ela não fazia ideia de quem ele era... Como aquela vaca insensível podia não lembrar dele, ele que lembrava de tudo, lembrava do chaveiro em forma de coração partido, lembrava da camiseta cinza que usava pra correr e ela queria pra dormir por ser larga e confortável, lembrava da música que ouviram na noite em que fizeram amor pela primeira vez, os corpos se tocando, as roupas sendo removidas enquanto Pepeu Gomes declarava que era o marinheiro do barco fantasma que iria pegá-lo... E ela não lembrava? Que bazófia era aquela? Que tipo de meretriz vil e de coração gelado desprovida de qualquer empatia ou bom sentimento poderia esquecê-lo àquele ponto?
Claro, ele engordara uns quilos, vestia-se de maneira mais sóbria, cortara os cabelos diferente, mas ainda era ele! Sua voz não mudara, seus trejeitos não haviam mudado, seu rosto não mudara, como...
Resignou-se.
Não podia abrir a cabeça de Isabel e enfiar-se lá dentro a procurar pelas memórias que ela deveria ter de ambos. Na verdade, não chegava a ser surpresa, Isabel jamais o amara como ele à ela, logo, era perfeitamente plausível que ela houvesse colocado uma pedra sobre a memória da relação de ambos assim que terminou.
Fazia sentido.
Sua vez no caixa chegou, escolheu as condições de pagamento, cinco parcelas, pagou as camisetas à vista, despediu-se friamente de Isabel:
-Tchau, bom te ver, hein? Manda um beijo pra tua mãe.
Ela disse algo, mas ele não prestou atenção. Voltou pra casa, comeu umas batatas fritas de lata, dormiu e tocou a vida.
Isabel também fez suas compras, duas blusas de alça e uma camisola verde-água. Passou o cartão, apanhou as compras e foi, também, pra casa.
Comeu um salgado na padaria perto do seu prédio e tomou um chá gelado. Ao chegar em casa, colocou as sacolas de compras sobre a cama, e sentou-se ao lado. De baixo da cama puxou uma caixa de papelão, dentro da caixa algumas fotos, um scooby-do de pelúcia, cartões, uma caneca de louça branca onde se lia "Namorada Número 1 Do Mundo", um chaveiro representando metade de um coração partido e uma camiseta cinza meio amarfanhada.
Isabel retirou a camiseta da caixa e a levou pertinho do rosto, ela ainda mantinha um cheiro cítrico de perfume e de desodorante.
Isabel a cheirou profundamente, e segurou a camiseta junto ao colo. Seus olhos ficaram marejados por um segundo. Ela guardou a caixa de novo e foi tratar de suas coisas, tocar a vida.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Resenha filme: Homem-de-Ferro


Eu sei, eu sei, estou dois anos atrasado, mas com a chegada da sequência na sexta-feira, aliada ao fato de que revi o filme em DVD ontem e estou construindo uma réplica do mini reator ARC pra ir ao cinema na sexta, e não me ocorreu nada melhor sobre a qual escrever, me pareceu um momento propício para essa resenha, afinal de contas, estamos falando do que foi um dos melhores filmes baseados em quadrinhos da Marvel no cinema.
É interessante pensar que dois anos atrás, Homem de Ferro (O título do filme não tem os hífens que existem no nome do personagem no quadrinho...) era uma aposta da Marvel. A casa das ideias havia feito um empréstimo gigante e iria produzir os próprios filmes, pelo menos os próprios filmes de personagens da editora que não estivessem licenciados á outras produtoras, como os X-Men, o Demolidor e o Quarteto Fantástico, presos á FOX (Coitados...), e o Homem-Aranha nas mãos da Sony.
A Marvel tinha, então, a possibilidade de realizar filmes de personagens como Thor, Homem de Ferro, Hulk, que revertera á editora depois do fiasco do filme de Ang Lee, e Capitão América, entre outros. E, o primeiro personagem á ganhar uma encarnação cinematográfica direto da editora mãe seria, justamente, o Homem de Ferro.
A marvel começou acertando em cima da pinta com a escolha do diretor do longa do ferroso.
Jon Favreau, que iniciara a carreira como ator, havia realizado como diretor os bacanas Um Duende em Nova York e Zathura - Uma Aventura Espacial, provando nesses filmes, em especial no segundo, que conseguia encarar as demandas técnicas de um blockbuster cheio de efeitos especiais, mas que era capaz, também, de inserir e trabalhar os elementos de conflitos humanos, tão caros aos quadrinhos da Marvel.
O diretor estava escolhido, mas um dos fatores primordiais para o sucesso de um longa metragem é seu protagonista, e, mais uma vez, a Marvel deu um tiro certeiro.
Para o papel do alter-ego do herói, Tony Stark, um playboy bilionário, egocêntrico, sarcástico, além de inventor genial e auto-destrutivo, foi escalado Robert Downey Jr., que como ator tem seus momentos geniais e um histórico auto-destrutivo.
Completando o elenco estrelado havia ainda Gwineth Paltrow, no papel do (Nada convencional) interesse romântico de Stark, Pepper Potts, Jeff Bridges, excelente como o vilão Obadiah Stane, e Terrence Howard, como o melhor amigo de Stark, tenente-coronel James "Rodhey" Rodhes.
Sob a batuta de Favreau, esse povo contou a história de Anthony Stark, gênio da indústria bélica que lucra rios de dinheiro através do comércio de morte, desprovido de consciência Stark colhe os frutos de sua genialidade levando uma vida de nababo, com festas, mulheres e álcool. Egocêntrico e arrogante, Stark é uma pessoa consciente de sua genialidade, e faz seu trabalho sem se procupar com as consequências.
Isso até sofrer um atentado no Afeganistão, e se tornar prisioneiro do grupo terrorista Irmandade dos Dez Anéis, que demandam que Stark lhes construa uma poderosa arma de destruição em massa.
Ferido por suas próprias armas durante o atentado, Stark é obrigado a trabalhar para os terroristas, entretanto, ao invés de construir a arma que lhe foi pedida, ele passa a desenvolver uma armadura que poderá ser seu passaporte para fora do cativeiro.
Com a ajuda de Yinsen (Shaun Toub), outro prisioneiro dos Dez Anéis, Stark monta a primeira versão do traje de super-herói, e escapa dos seus algozes.
De volta aos Estados Unidos, Stark, confrontado com a realidade de seu trabalho, e temendo por seu legado decide que não quer ser lembrado como um mercador de destruição, ele decide mudar o foco de sua companhia e trabalhar em prol da paz.
Isso, porém, vai de encontro aos interesses de muitas pessoas, que não estão dispostas a abrir mão de tudo que as armas de Stark proporcionam, em especial a mais nova e poderosa delas:
O Homem-de-Ferro.
É uma premissa interessante, que poderia resultar em apenas outro filme movimentado de super-herói, mas nas mãos de Favreau e Downey Jr. se tornou um filme com humor (Afinal, um filme de super-herói não pode se levar a sério demais, como o Coringa mostrou ao Batman em Cavaleiro das Trevas), com alma, cérebro (Favreau?) e coração (Downey Jr.?), que abriu com maestria o caminho para o futuro filme dos Vingadores e fez muita gente desejar que a Marvel jamais tivesse cedido os direitos de filmagens de seus personagens pra estúdios.
Será que a sexta-feira demora muito pra chegar...?

"Me dê um scotch, estou faminto."

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Convicções


Jessé cambaleou trôpego como um hébrio e caiu sobre sacos de lixo apoiados em uma placa de sinalização. Uma dor reverberou latejando da ferida em sua barriga espalhando-se com igual intensidade por todo o seu corpo. A pior parte foi quando ela chegou á sua cabeça, onde fez latejarem, ao mesmo tempo, todos os seus dentes.
Jessé se apoiou na mão esquerda, enquanto com a direita pressionava a ferida aberta em seu abdôme, entretanto, não teve força para se erguer com apenas uma das mãos, se apoiou como pôde, ficou de joelhos, e se ergueu apoiando o corpo no poste da placa de trânsito.
Sentia frio, sua roupa estava molhada, não apenas pela água da chuva que fustigara a cidade nos últimos três dias, mas também pelo sangue que abundava de sua ferida aberta. Jessé imaginava quanto sangue haveria perdido. Não sabia estimar a quantidade, mas chutava, pelo tamanho das manchas de sua roupa, quase um litro. Ficava se perguntando quanto sangue uma pessoa trazia no corpo, nunca lembrava, já lera, mas havia esquecido. Quatro litros? Cinco? Algo assim? Se eram quatro ele podia se preocupar, perder um quarto do sangue do corpo, ou um quinto, que fosse, não parecia uma perspectiva das mais tranquilizantes.
Jessé imaginou se não era um bom lugar pra morrer, ali em meio aos sacos de lixo. Eles nem estavam cheirando mal, eram macios, ele podia ficar ali, morrer sobre o lixo, era até algo poético, ele que durante toda a vida fora acusado de tratar aos outros como lixo, morrer em cima de sacos do mesmo.
Jessé sentiu uma ponta de auto comiseração ao pensar nessa possibilidade. Imaginou como seria se um de seus amigos o visse agora, ali, sangrando feito um suíno, precisando desesperadamente de ajuda. Será que o ajudaria?
Jessé não era uma pessoa fácil de conviver. Na verdade, ser amigo de Jessé era uma tarefa que demandava certo esforço. Jessé era avesso a atividades sociais, Jessé detestava sair á noite, não gostava de festas, parecia entediado sempre, era uma pessoa com gostos extremamente particulares. Tirá-lo de casa, fosse para o que fosse, dava trabalho. Não que Jessé não saísse nunca, ele frequentemente saía com seus amigos, ele apenas escolhia com muita propriedade os programas aos quais atenderia, e eram poucos, isso criava essa distância entre Jessé e seus amigos.
Jessé também se envolvia apaixonadamente em discussões de toda a espécie, religião, política, futebol, Jessé tinha opiniões concretas sobre todos os assuntos, ele geralmente mantinha suas opiniões para si, mas quando uma discussão se iniciava, Jessé fincava o pé e mantinha suas convicções até ser convencido do contrário, o que acontecia muito raramente. Não por que Jessé se achasse o dono da verdade, ou se imaginasse superior aos outros, nem que fosse turrão com suas opiniões pétreas, ele apenas escolhia suas convicções com parcimônia, de modo que custava para se desfazer delas, o que era outro fator de distanciamento de Jessé das outras pessoas.
Jessé não era uma pessoa sentimental, suas reações eram as mais racionais possíveis, não que ele jamais tomasse atitudes passionais, ou que fosse lógico e frio feito um vulcano de Jornada nas Estrelas, ele simplesmente preferia abraçar a racionalidade, isso o mantinha são, e ele gostava de ser são e de estar no controle de si próprio, de ter uma margem de espaço do resto da humanidade, mesmo daquelas raras pessoas de quem ele gostava, Jessé precisava de um perímetro, uma zona de conforto.
Agora ele estava distante de todos, perdendo sangue pelo buraco de bala em sua barriga... E nem lembrava ao certo por que fora baleado, ele havia discutido com o sujeito dentro da danceteria... Pelo quê? Uma garrafa, um encontrão? A discussão virou uma briga, empurrões, chutes, e o sujeito saiu depois de Jessé acertar-lhe uma cabeçada, Jessé não teve mais clima para permanecer na danceteria, seus amigos tentaram dissuadí-lo por causa do horário, mas Jessé não ouviu, disse que pegaria um táxi em frente... Não havia táxi, Jessé resolveu andar até encontrar um, caminhou quatro quarteirões, somente ele na rua, até que, subitamente, ouviu o chamarem e, ao se virar, foi alvejado. Levou algum tempo para entender o que acontecera, ouviu o estampido, viu o sujeito com quem brigara, de nariz ensanguentado, que saiu correndo, ainda pensou em correr atrás do sujeito, mas sentiu algo molhado na camisa, e percebeu o sangue...
Era isso... Jessé morreria na rua, em cima do lixo, por causa de uma briga numa danceteria. Ele que odiava danceterias e brigas em proporções quase iguais, que fora á festa unicamente por ser aniversário de uma amiga por quem tinha grande apreço, morreria ali.
Pensou em como agira, em quantas vezes magoara as pessoas que o cercavam, em quantas vezes fora displicente, irônico ou sarcástico com pessoas que lhe eram caras, em quantas oportunidades teve de dividir momentos com pessoas que o amavam e desperdiçou essas oportunidades em nome de satisfação rápida e vazia. Se tivesse uma oportunidade de voltar atrás, sim... Jessé faria exatamente igual.
Ele era assim, uma pessoa de convicções pétreas.
Deitou sobre o lixo, ajeitando-se, diminuiu a pressão sobre a ferida e sorriu. Estava pronto.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Homem-Aranha: Com Grandes Poderes...


Após vários dias com a revista pesando em minha estante sem ter sido lida, resolvi, após ler as duas Superinteressante que estavam melhor posicionadas na fila dos meus interesses momentâneos, ler Homem-Aranha: Com Grandes Poderes... Primeira edição da série especial lançada pela Panini com alto padrão de acabamento gráfico que promete ótimas histórias inéditas de alguns de seus personagens mais clássicos. Promete, beleza, mas cumpre?
No quesito alto padrão de qualidade gráfica, certamente que sim, capa dura com verniz localizado, páginas em papel couché, tudo muito bonito, pra ficar uma belezura na estante e por módicos dezenove reais e noventa centavos, espetáculo.
Mas quanto á ótima história...
Francamente, achei que não.
Homem-Aranha: Com Grandes Poderes... É um história do tipo retcon, que acrescenta elementos, personagens e situações aos dias iniciais da carreira de Peter Parker como Homem-Aranha, quando ele ainda não tinha, como o título deixa bastante claro, grandes responsabilidades. Temos ali um Peter Parker retratado de maneira até bastante crível, ele foi vilipendiado pelos seus colegas de escola durante todo o ensino médio e subitamente se vê capaz de prodígios espetaculares, é perfeitamente aceitável que um pirralho de quinze anos se achasse o rei da cocada preta, que se tornasse respondão e que resolvesse dar vazão aos seus instintos mais baixos e prioridade ás coisas que lhe dão prazer em detrimento de suas obrigações.
A história escrita por David Laphan e desenhada por Tony Harris enfatiza essa faceta "aborrescente" do personagem enquanto mostra seus primeiros dias de Aranha como estrela de TV e da luta-livre, apresentando personagens que jamais haviam sido mencionados e criando motivações "plausíveis" pra coisas como os lançadores de teia e o uniforme, explicações plausíveis que jamais fizeram falta ao cânone de Lee e Ditko, mas enfim, que vão de encontro aos interesses de uma geração que conheceu o personagem dos quadrinhos no cinema e ainda não é capaz de guardar as proporções entre os gibis escritos no começo da década de sessenta e o filme produzido na aurora do século XXI.
A história de Com Grandes Poderes é consistente, e entrega o que se propõe, mostra um jovem adolescente com grandes poderes e nenhuma responsabilidade, mas escorrega feio ao alterar demais, não só a personalidade de Peter, mas o espírito do personagem como o conhecemos (Ou conhecíamos, baseado em recentes eventos dos quadrinhos...).
Peter pode ter flertado com irresponabilidade e fortuna fácil, mas ele jamais foi um covarde, jamais foi um ingrato, e jamais daria as costas ao tio Ben e à tia May.
Recentemente uma história curta de J. M. DeMatteis foi publicada no gibi mensal do Homem-Aranha, ela mostrava o Homem-Aranha, no auge de seus quinze anos, em uma de suas primeiras missões de super-herói após a morte do tio, seu medo, sua falta de jeito, e todos os elementos que teriam feito qualquer outra pessoa largar tudo aquilo de mão.
Não era uma história longa como a da edição especial, não era tão elaborada. Mas tinha alma.
Talvez esse seja, no final das contas, o elemento que faz uma boa história.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Tomara que não chova...


Chato, uma quinta após um feriado que caiu bem no meio da semana. Aqueles feriados em que não há perspectiva de se fazer coisa alguma que não se faça em qualquer outro dia exceto isso:
Fazer coisa alguma.
Chato. De manhã, acordar, vestir as meias, calçar os sapatos, vestir as calças e a camiseta, sair pra trabalhar.
Se estivesse frio não seria tão ruim. Mas não está frio. Não está quente, também. Úmido. Aquele tempo úmido que prenuncia chuva, o céu cor de chumbo, dando ao dia uma tonalidade amarelo-esverdeada modorrenta. O inverno não chega, o outono ainda não está aí, tampouco reina o verão... É uma estação indefinida, nesse dia. Um dia indefinido e modorrento e úmido.
Aquela iluminação amarelo-esverdeada te fustigando e tu, sem guarda-chuva. Tu torce pra não chover, pois tu não está carregando o guarda-chuva, e nem sequer esqueceu, decidiu não levá-lo. Foi uma decisão consciente baseada em praticidade, carregar guarda-chuva e mochila é foda. Mas se desabar o aguaceiro que se avizinha, tu vai chegar ao trabalho ensopado, tomara que não chova.
Ir ao trabalho (Tomara que não chova.), parar no caminho, comprar uma água mineral (Tomara que não chova.), cumprir a jornada, meio dia, sair para o almoço (Tomara que não chova.). Uma hora, de volta ao trabalho (Tomara que não chova.), Voltar pra casa (Tomara que não chova.), chegar, elevador, olha pra vizinha, decotão, par de pernas intermináveis, ajeita a postura, sorri meio pro lado, quase pretencioso:
... Será que chove?
Entrar em casa, festa do cachorro, sair com o cachorro (Tomara que não chova.). Levar ele pra tomar banho, ele está seco mas cheira a cachorro molhado, precisa tomar banho (Tomara que não chova.).
Voltar pra casa(Tomara que não chova.), Tomar banho, colocar roupas na lavadora (Tomara que não chova.), jogar um pouco de video game, ler e-mails (Tomara que ela tenha me mandado notícias.), ir ao mercado comprar uma Fanta e um pacote de salgadinho, Doritos, de preferência (Tomara que não chova.), hoje tem jogo, o time precisa vencer, precisa jogar bem (Tomara que não chova.), sair pra correr? Que preguiça (Tomara que chova.).
Não chove. O dia termina como começou, úmido, modorrento, um prenúncio que não se confirma, chato. Nem foi um feriado instalado no meio da semana, é uma quinta, quinta deveria ser um bom dia, anterior á sexta, e sexta é um ótimo dia. Mas não, foi um dia chato. Eles têm sido todos assim? Os dias? Têm sido, todos eles, chatos? Modorrentos? Quase como feriados no meio da semana?
Olhando em perspectiva, eles meio que têm sido assim. Todos eles...
Mas, e sempre há um mas, o mês caminha á passos largos para o fim, e o mês vindouro carrega consigo promessas de dias mais divertidos, mais alegres, repletos de sensações cálidas de completude.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Situação caótica.


"Ah, meu Deus..." Pensou Alfredo, "Não vai dar tempo." ele elucubrou de forma pessimista enquanto caminhava o mais rápido possível em direção ao banheiro do shopping.
Carregava oito sacolas de compras de supermercado na mão esquerda e uma sacola com uma caixa de sapatos e outra com dois pares de calças na mão direita. Tinha a fronte coberta de gotículas de suor, mas sentia calafrios, um cólica violenta o açoitava de tempos em tempos com intervalos cada vez menores. Seus passos miúdos, com as coxas coladas de forma pouco eficaz mas oferecendo apoio moral ao esfíncter, cada vez mais enfraquecido em sua função de evitar que o pior acontecesse.
Alfredo não merecia aquilo, na sua própria opinião, pelo menos. Era um homem trabalhador, pensava apenas no bem estar de sua família, se comera aquele hambúrguer cheio de pepino e cebola quentes e catchup, se comera uma porção de fritas grandes tambéms lavadas no condimento de tomate, se bebera um milk shake de chocolate de setecentos mililitros foi por mera conveniência, pouparia alguns minutos valiosos se não precisasse esperar que uma refeição de verdade ficasse pronta, afinal precisava ir ao shopping comprar sapatos para a Cecília e calças, por que o Júnior precisava de calças.
Se ele dirigira as quatro quadras que separavam sua casa do shopping foi por que era mais rápido e ele teria tempo de passar no supermercado e fazer as compras como Margarete pedira de forma veemente ao telefone.
Alfredo era um bom homem, trabalhava, era bom pros filhos, não fazia mal pra ninguém, cuidava de seus assuntos, não merecia o futuro imediato que se descortinava á sua frente, ou melhor, na sua traseira.
Tudo bem, ele ignorara a potencial volatilidade da mistura de seu lanche, o fast food já mencionado, com o seu almoço, que incluiu, fora uma saladinha, mais por desencargo de consciência, três panquecas, dois bifes á parmegianna e espaguete ao sugo, fora um chocolate twix na sobremesa.
Agora, aqueles elementos todos estavam fermentando nas entranhas de Alfredo, misturados ao café que ele ingeria em quantidades industriais sentado no trabalho, e á rapadura que ele comprara de um guri no sinal á caminho do shopping, e eles borbulhavam dentro de seu abdôme, pelo menos era a sensação que ele tinha, enquanto ouvia os ruídos que seu estômago e intestinos produziam.
Alfredo repetia para si mesmo como um mantra que não merecia aquilo e que daria tempo, não merecia aquilo, daria tempo, não merecia aquilo...
Mas a verdade é que Alfredo, descuidado como era, relapso como era com a própria saúde.... Bom, a verdade é que, independente do que ele achava, ele meio que merecia aquilo, sim.
Se não aquilo, alguma outra forma de represália. Não se pode abusar como Alfredo abusava sem sofrer alguma espécie de revés, simplesmente não faz sentido. Ninguém descuida tanto de coisas importantes e fica incólume, e Alfredo descuidara.
Alfredo cuidava de sua família, e do próprio bem estar, OK, mas não era capaz de colocar parte desse esmero em cuidados simples que o poupariam de situações como aquela que agora enfrentava.
Alfredo e sua luta interna (literalmente.) contra seu intestino eram como a humanidade e a natureza. A situação caótica de hoje poderia ter sido evitada se alguns cuidados simples tivessem sido tomadas algum tempo atrás. Tanto Alfredo quanto a humanidade não estariam no limiar de uma situação catastrófica se não tivessem sido gananciosos e incautos no passado.
Agora, não entendiam por que estavam como estavam, e, por mais que lutassem, um observador isento diria que de um modo ou de outro, iria dar merda.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Outra vida.


Edegar era um sujeito simples. Era, mesmo. Não é falácia. Ele era simples. Gostava de coisas simples, vivia de maneira simples, e, mais importante, honesta.
Edegar trabalhava de segunda á sexta, estudava á noite, se exercitava com boa frequência, embora quisesse se exercitar com mais frequência ainda, o que não fazia pela escassez de horários.
Edegar gostava de prazeres simples, gostava de cinema, gostava de esportes, assistia noticiários, mas faltava alguma coisa na vida de Edegar, embora ele não tivesse muita certeza de o que era.
Edegar trabalhava no arquivo público municipal de sua cidade. Era um bom emprego. Trabalhava seis horas por dia, tinha estabilidade, ganhava um salário digno, e era um emprego sem imprevistos. Praticamente ninguém consultava os arquivos públicos após o advento da internet. O Google fizera de Edegar e seu trabalho obsoletos, e ele não se importava. Era mais tranquilo assim. Na verdade, Edegar não gostava muito de seu trabalho. Ele achava chato, pouco estimulante, maçante, até. Ele conseguira aquele emprego graças á influência do marido de uma tia-avó por parte de mãe, que era vereador. Jamais queisera o trabalho em questão, mas sua mãe lhe dissera o quanto era importante que Edegar começasse á trabalhar já que estava fazendo dezenove anos.
Edegar agradeceu ao vereador com uma garrafa de vinho, por recomendação de seu pai, que lhe disse o quão importante era manter uma boa rede de contatos.
Edegar seguiu na faculdade, cursava administração, também recomendação de seu pai, que lhe disse que, já que o jovem não se interessava de verdade por nada em particular, era bom ter um curso universitário genérico. Edegar detestava o curso de administração. Também era chato, maçante e tudo mais, na verdade Edegar queria, mesmo, era cursar turismo e sair viajando pelo mundo, mas não era uma coisa prática, ou factível, então Edegar seguia na administração, tinha um desempenho medíocre que lhe permitia ir levando sem rodar em nenhuma das cadeiras que cursava.
Edegar namorava uma moça, Edilene, Edilene morara a vida toda na casa ao lado da dos pais de Edegar. Se conheciam desde os sete anos de idade, sempre implicaram um com o outro na escola. Edegar jamais viu Edilene como algo além da vizinha implicante, entretanto a recíproca não era verdadeira, Edilene, por volta dos 17 anos resolveu fazer de Edegar o alvo de suas afeições, e, por recomendação dos amigos, Edegar acabou se envolvendo com a moça, que era de boa família, bem comportada, recatada, enfim, uma moça de fundamento.
Mas Edegar não gostava, de fato, de Edilene. Havia outra moça, Raquel, que atraia Edegar, mas Edegar nem sequer pensou em gastar latim com ela. Raquel era descolada, cosmopolita, bem informada, era, como Edegar dizia, maneira. E uma moça maneira como Raquel não tinha razão pra dar bola pra um sujeito tão... Tão... Tão sem adjetivos como Edegar. Então, Edegar se mantinha ao lado de Edilene, não estava infeliz, mas também não estava feliz.
Edegar queria sair de casa, morar sozinho, mesmo que não fosse sair da cidadezinha, mas tinha que ajudar seus pais. Todo santo dia ouvia o quanto sua ajuda era importante em casa, o quanto as coisas seriam difíceis sem ele. Edegar ouvia os elogios e era corroído por dentro, e ficava. Ficava á despeito de não ter privacidade ou individualidade. Tentava tirar o melhor de tudo, mas ás vezes era difícil, difícil demais. Nessas ocasiões Edegar escrevia, não eram bons textos e ninguém lia eles, Edegar preferia assim. Não sabia se conseguiria lidar com críticas negativas. Edegar descontava suas frustrações no papel. Seu sonho era ser escritor. Por isso aceitara o emprego no arquivo, seria uma maneira de estar em meio á escritos, talvez o ambiente o inspirasse e melhorasse sua escrita. Mas Edegar praticava pouco, quase nada.
Edegar acordava ás seis da manhã, tomava café e saia para o trabalho onde chegava ás oito, ao meio-dia almoçava com Edilene no restaurante do seu Feijó, ele saia do trabalho ás cinco, corria cinco voltas ao redor do parque, ia á faculdade ás sete da noite, chegava em casa perto das onze, conversava com Edilene por meia hora, embora a maior parte do tempo ela falasse sem parar e ele ouvisse muito pouco, depois ele ia para a cama.
Esse era o dia á dia dele, com raras alterações, como ir ao cinema, ou os finais de semana em que Edilene arranjava algum programa do qual Edegar não gostava, mas ia sem reclamar por que, afinal, qual o ponto em reclamar?
Edegar se mantinha em animação suspensa.
Vez que outra se pegava imaginando como seriam as coisas se ele não fosse tão letárgico. Se ele abrisse mão da segurança e da responsabilidade, se ele tentasse, ao menos uma vez, não fazer as coisas conforme todos esperavam, e fizesse, naquela vez, o que ele, e não os outros, queria.
Mas esses pensamentos desvaneciam rápido quando Edegar lembrava que não podia simplesmente dar as costas á sua vida e fazer tudo diferente. Ele tinha obrigações, ele tinha responsabilidades, era honesto demais, responsável demais pra mandar tudo lá pra casa do Capita e agir por impulso. Talvez fosse isso... Talvez isso fosse apenas uma desculpa triste pra sua covardia e apatia. Ele não sabia, e naquele momento, saber não era uma prioridade.
Uma noite, após a sua corrida, Edegar foi á venda do grngo Walter comprar um energético, quando saiu, sorvendo com gosto a bebida gelada, esbarrou com Raquel.
Pediu desculpas, ele viu que ela carregava um DVD, ele comentou, ela sorriu e engataram uma breve conversa sobre cinema, tinham algumas opiniões muito parecidas (Ambos gostavam de Woody Allen) e outras totalmente divergentes (Ela adorava Almodóvar, ele detestava.), mas a conversa foi agradável.
Se despediram, e, quando Edegar retomava seu caminho pra casa, foi impelido á olhar para trás, e, ao se virar, percebeu que Raquel também virou e olhou.
Sorriram um para o outro e seguiram, cada um seu caminho.
Edegar sentiu dentro de si um calor, uma sensação de cor e som... Ele não soube o que era, mas se sentiu bem.
Era uma sensação nova para Edegar, era vida.
Até ali, Edegar não estava morto, ou vivo, outros estavam vivendo a vida de Edegar por ele. Agora, que ele conhecia o sabor de viver a própria vida, seu futuro dependia apenas dele.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Top 10 Cinema: Ficção Científica


Quando a inspiração não vem, ou eu acho que o texto que estou escrevendo não vai ficar bom o suficiente pra publicação, eu faço uma das minhas brincadeira preferidas:
Elencar os dez filmes de que mais gosto dentro de um determinado gênero. Num pique de Sci-Fi, resolvi voltar com mais um dos infâmes top-10 Casa do Capita baseado em ficção científica!
Tentei evitar, nessa lista, filmes que já tenham sido mencionados em listas anteriores (O Exterminador do Futuro 2, O Predador e Aliens - O Resgate, mencionados no Top 10 de filmes de ação, ficaram de fora.), também não tem filmes feitos antes da década de 70, eu privilegiei um pouco o Sci-Fi, ramo mais pop da ficção científica, o que deixa de fora filmes mais cabeça como Solaris, Farenheit 451, e 2001: Uma Odisséia no Espaço. Á ela, então:

10- RoboCop - O Policial do Futuro (Paul Verhoeven, 1987)
Era um futuro indefinidamente próximo, grandes conglomerados transnacionais dominavam os Estados Unidos, na cidade de Detroit, a polícia (Controlada pela empresa OCP) não tem verbas, pessoal, ou moral para fazer seu trabalho, e a criminalidade impera de maneira quase absoluta.
Nesse cenário caótico conhecemos a história de Alex Murphy, policial brutalmente assassinado no cumprimento do dever que é usado como cobaia pela OCP no projeto RoboCop, que o transforma em um híbrido de homem e máquina, que além de combater o crime na cidade de Detroit trava uma luta interna entre sua programação e as memórias de vida..
Além das inspiradas e violentas cenas de ação, dos efeitos de maquiagem convincentes e do elenco equilibrado a história do filme mostra uma ideia muito interessante de futuro, mostra os países controlados por corporações, dominado pela criminalidade e acompanhado através da televisão, essa ambientação sinistramente familiar 23 anos depois do longa original é o pano de fundo para contar uma história que mostra, nas palavras do próprio diretor, Paul Verhoeven, o poder da alma humana.
"Vivo ou morto você vem comigo."

9- Star Wars: Episódio IV - Uma Nova Esperança (George Lucas, 1977)
Foi em 1977 que George Lucas encantou uma geração e criou um dos maiores fenômenos nerd de todos os tempos.
A muito tempo atrás, em uma galáxia bem, bem distante aconteceu a história da busca por identidade de Luke Skywalker (Mark Hamill), e do confronto entre o lado luminoso e o lado sombrio da Força, personalizados respectivamente por Obi-Wan Kenobi (Alec Guiness), e a Aliança Rebelde e pelo vilão-mór do cinema, Darth Vader (David Prouse/James Earl-Jones), e o perverso Império Galáctico, além dos coadjuvantes excepcionais que incluiam personagens carismáticos como Han Solo (Harrison Ford), princesa Leia Organa (Carrie Fisher), Chewbacca, os andróides C3P-O e RD-D2, havia uma história movimentada, envolvente e carregada de inocência que conquistaram multidões, estabeleceram uma mitologia praticamente universal, uma nova forma de fazer cinema em hollywood, e de quebra, fez muito moleque querer arrumar a trouxa e fugir para uma galáxia bem, bem distante e fazer carreira como Jedi.
"Sua falta de fé me perturba..."

8- Minority Report - A Nova Lei (Steven Spielberg, 2002)
Em 2054 Washington comemora seis anos sem assassinatos. Tudo graças ao departamento Pré-crime, que usa três jovens sensitivos conhecidos como pre-cogs para prever homicídios e impedí-los antes que alguém se machuque.
É despeito do paradoxo envolvido nessa forma de justiça, que prende pessoas literalmente por crimes que elas não cometeram, John Anderton (Tom Cruise, sendo Tom Cruise) confia cegamente no sistema. Assombrado pela perda de um filho, o policial crê que jamais teria passado pelo trauma que o levou ao divórcio e ao vício em drogas se o pré-crime existisse na épooca do desaparecimento de seu rebento.
Entretanto, quando John descobre que matará um desconhecido em 36 horas ao mesmo tempo em que o Tribunal de Justiça envia um agente (Colin Farrel, legal) para avaliar a confiabilidade do sistema, Anderton não tem alternativa, exceto fugir de sua própria equipe e tentar provar sua inocência antes de ser preso e colocado em animação suspensa por "homicídio futuro".
Spielberg dirigiu essa adaptação de um conto de Phillip K. Dick após o fracasso de A.I. Inteligência Artificial, e o fez direitinho, o elenco que ainda contava com Max Von Sidow, Samanta Morton e Tim Blake Nelson abraça bem a ideia do longa, cheio de perseguições e pirotecnias, mas sem jamais deixar de focar a história e o paradoxo que a impele.
"Todo mundo corre..."

7- Akira (Katsuhiro Otomo, 1988)
Neo-Tóquio, a capital reconstruída do Japão após a Terceira Guerra Mundial é um antro de decadência e subversão. Quadrilhas violentas dominam as ruas enquanto lutam por território, Kaneda, o líder de uma dessas quadrilhas, encontra durante uma briga com outra gangue, um estranho menino, que explode a moto de seu amigo Tetsuo, ferindo-o gravemente, Tetsuo e a criança são levados por soldados á uma instalação governamental onde funciona O Projeto. Lá, Tetsuo passa por experiências e descobre que, assim como Akira, a criança que causou, com seus poderes psíquicos, a destruição da velha Tóquio, possui poderes mentais que estavam latentes até então. Tetsuo torna-se um psicopata psiônico hiper poderoso, e cabe á Kaneda, com a ajuda de um grupo de psíquicos impedí-lo de causar uma nova guerra!
Akira é um anime bem construído, com uma trama intrincada que prende a atenção e aborda, além da óbvia ideia de futuro apocalíptico e temática cyberpunk temas como o mau juízo de valores e a alienação dos adolescentes marginalizados, mostra a corrupção nas altas cúpulas políticas e a aversão da sociedade ao controle de um estado policialesco.
"Ele não é seu amigo, é nosso! Se alguém vai matá-lo, deve ser a gente!"

6- Jornada nas Estrelas - A Ira de Khan (Nicholas Meyer, 1982)
Jornada nas Estrelas - O Filme, de 1979 era um filme contemplativo, poético, até, que mostrava uma versão anabolizada da série de TV que conquistou gerações. Não era um filme pra qualquer platéia, e, á despeito de ser um bom filme, dirigido por Robert Wise, de O Dia em Que a Terra Parou (1951), e ter uma bela história, não empolgou nas bilheterias, talvez não fosse um filme de fácil digestão, talvez o público em geral não tivesse pegado o espírito da coisa, talvez por esquecer alguns elementos tão caros á série de TV, como o humor.
Em 82, porém, a tripulação da Enterprise voltou, agora para enfrentar as maquinações de Khan(Ricardo Montalbán, voltando ao papel que interpretara um em episódio da série clássica.), inimigo jurado de James Kirk (William Shatner), que coloca as mãos em uma arma de poder imensurável e pretende descobrir como usá-la infiltrando-se na própria Federação.
Se A Ira de Khan é inferior ao primeiro filme em vários aspectos, não é menos verdade que a segunda incursão de Kirk, Spock, McCoy e companhia ás telonas é um filme muito mais movimentado e atraente ao público não-trekker. A trama é envolvente, tem boas reviravoltas, incluindo o destino do senhor Spock, e é tida por muitos fãs como o melhor filme da cinessérie espacial.
"Eu sempre fui, e sempre serei seu amigo. Vida longa e próspera"


5- De Volta Para O Futuro (Robert Zemeckis, 1985)
Marty McFly(Michael J. Fox) é um jovem de 17 anos típico de 1985. Namora uma moça, Lorraine (Claudia Wells), que a mãe não aprova, é relapso nos estudos, acha os pais e os irmãos um bando de perdedores, e quer ser astro de rock. Menos típica é sua amizade com o doutor Emmett L. Brown(Christopher Lloyd), um cientista pouco ortodoxo que trabalha em uma série de invenções estranhas e pouco úteis (Como o sistema para acertar todos os relógios do mundo). Essa relação se complica quando o doutor Brown apresenta á Marty a sua máquina do tempo, um De Lorean convertido e movido á plutônio capaz de viajar pelo tempo.
A invenção é boa, a ocasião escolhida por Brown para apresentá-la á Marty, não. O plutônio usado como combustível para a máquina do tempo foi roubado de terroristas líbios, e eles vêm em busca de vingança, matam o doutor Brown, e obrigam Marty á fugir para o passado, mais precisamente, 1955, quando precisará conciliar seus futuros pai e mãe (Crispin Glover e Lea Thompson), cujo início da relação foi impedido por sua interferência, escapar do valentão Biff Tannen (Thomas F. Wilson)e contar com a ajuda do doutor Brown para voltar para o futuro, tudo isso brincando de com as implicações de viagens no tempo de maneira divertida como nenhum outro filme soube fazer e dando origem á uma das melhores trilogias da história do cinema.
"Ninguém... Me chama... De franguinho..."

4- Star Wars: Episódio V - O Império Contra-Ataca (Irvin Kershner, 1980)
Se em 77 Lucas mostrou a fábula de Luke Skywalker e seus amigos enfrentando, ao lado da Aliança Rebelde, o perverso Império Galáctico, três anos depois, sob as mãos mais firmes de Irvin Kershner nós viajamos novamente para aquela galáxia bem, bem distante, e as coisas não iam bem por lá.
Desde a sequência inicial, em que Luke é atacado por um Wampa, seguido do resgate de Han e o ataque do império á base em Hoth, nós percebemos que aquele filme não acabará bem. Se Uma Nova Esperança encantou uma geração, O Império Contra-Ataca certamente a traumatizou. Numa sequência de eventos chocantes que não nos dá nem tempo de respirar temos Luke abandonando seu treinamento Jedi com Yoda, Han e Léia traídos por Lando Calrisian, C3P-O desmantelado, Solo congelado em carbonita, Luke derrotado por Vader, com a mão decepada e descobrindo que o mais tenebroso lorde negro dos Sith é, na verdade, seu pai. Só de escrever já senti um arrepio na espinha!
"Não, Luke. Eu sou seu pai."

3- Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971)
Em um futuro não muito distante, caótico e sombrio, Alex DeLarge (Malcolm McDowell, genial) comanda uma gangue de delinquentes que vive para cometer delitos. Espancar idosos, cometer estupros, consumir drogas e brigar com outras gangues são o programa dos arruaceiros. Entretanto, após cometer um assassinato, Alex é enviado á uma casa de detenção. Lá, ele concorda, em troca de liberdade, em se submeter á uma experiência que visa livrá-lo de seus impulsos violentos e negativos, através de condicionamento. Alex é preso á uma cadeira e forçado á assistir cenas de violência e de sexo enquanto sofre os efeitos de drogas que lhe causam ennjoo e vômitos. Como resultado do processo Alex renega o comportamentos e o sexo violentos, também renega a Nona Sinfonia, de Beethoven, que o jovem adorava, mas era a trilha sonora das imagens que ele assistia no programa, e agora, também causam os enjoos e vômitos em Alex, que retorna á sociedade como um pária, incapaz de reagir á violência, rejeitado pela família, humilhado por seus antigos amigos, e alvo da vingança de suas vítimas.
A Laranja Mecânica apresenta duas formas distintas de violência intrínsecas á sociedade moderna, a violência individual do delinquente contra a sociedade e a violência do Estado contra o indivíduo. Alex começa como algoz da sociedade, passa pela fase de vítima do Estado, e finalmente ele se torna parte do sistema, que vê como uma ferramenta para perpretar sua ultra violência.
Bem montado, com boas atuações e a direção segura de Stanley Kubrick, Laranja mecânica é um clássico absoluto!
"Engraçado como as cores do mundo real só parecem realmente reais quando você as vidia na tela."

2- Os Doze Macacos (Terry Gillian, 1995)
É o ano de 2035, a população da terra foi arrasada por um vírus que matou mais de cinco bilhões de pessoas, presos nos subterrâneos, cientistas elaboram uma experiência que pode salvar a humanidade, mas é extremamente arriscada.
James Cole (Bruce Willis, em um dos melhores trabalhos de sua carreira) um prisioneiro, é escolhido como voluntário para um experimento, que envolve viajar no tempo de volta á 1996, para descobrir a causa misteriosa do vírus que matou 99% da população da Terra. Por engano ele é enviado á 1990, onde é internado em um manicômio, onde conhece a doutora Kathryn Rilley (Madeleine Stowe, linda na época.) e Jeffrey Goines (Brad Pitt, muito bem, indicado, inclusive, ao Oscar de melhor coadjuvante.), que desempenharão papéis importantes na liberação do vírus seis anos no futuro.
O filme dirigido por Terry Gillian é excelente, tem um roteiro não-linear excelente, que usa com maestria a teoria da viagem no tempo, arranca o melhor dos protagonistas, aborda paranóia, viagem no tempo e terrorismo sem deixar a peteca cair, ainda tem uma fotografia genial, claustrofóbica, talvez a grande ficção científica dos anos noventa.
"Oh, não seria ótimo se eu fosse mesmo louco? Então o mundo estaria OK."

1- Blade Runner - O Caçador de Andróides (Ridley Scott, 1982)
Los Angeles, novembro de 2019, Rick Deckard (Harrison Ford, Indiana Jones, Deckard, e Han Solo, esse homem é Deus) é convocado de sua aposentadoria para "aposentar" um grupo de andróides Nexus 6 liderados por Roy Batty (Rutger Hauer, na grande atuação de sua carreira), que fugiram de seu lugar de trabalho e buscam desesperadamente uma forma de ampliar sua perspectiva de vida (Os Nexus 6 vivem apenas por quatro anos.).
Em sua investigação Deckard conhece Rachel, novíssimo modelo replicante fabricado pela Tyrell Corporation, que tem memórias implantadas que a fazem ter certeza de que é humana, e sobrinha do presidente da empresa.
Deckard se envolve com Rachel ao mesmo tempo em que caça os cinco replicantes fugitivos (embora apenas quatro apareçam no filme, quem seria o último replicante?) sob a vigilância de Gaff (Edward James Olmos), passando pela luta com Pris (quem não gostaria de morrer levando uma chave de coxa da Darryl Hanna no auge da forma e beleza?), até o derradeiro confronto com Roy.
Scott apresentou um filme com visual espetacular que flertava com o expressionismo alemão e mostrava um futuro iluminado por néon, onde não havia mais identidade individual ou territorial (Los Angeles parece uma Chinatown gigante habitada por japoneses, húngaros e hispânicos), com a banalização da tecnologia espalhada em todos os cantos e que funciona em vários níveis. É um filme que eu vi aos oito anos de idade, e curti por que era um filme legal de investigação e ficção, e, anos mais tarde, um pouco mais maduro, me pegou pelos questionamentos mais profundos como a busca por humanidade dos replicantes, a busca por identidade e afeto de Deckard, e até as perguntas que permanecem após os créditos, seria Deckard o sexto replicante? Por que Geff deixa de presente ao Blade Runner um unicórnio de origami )Deckard tinha um sonho recorrente com um unicórnio.)?
Filmaço com "F" maiúsculo, e cult absoluto!
"Eu vi coisas que sua gente não acreditaria, vi naves de ataque em chamas no cinturão de Orion, vi raios C cintilando no escuro, no portão de Tanhäuser, agora, todos esses momentos se perderão, como lágrimas na chuva."

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Resenha cinema: Uma Noite Fora de Série


Você conhece a situação: Casal na casa dos quarenta anos. Ela corretora de imóveis, ele advogado tributarista. Razoavelmente bem sucedidos financeiramente, moram no subúrbio de Nova Jérsey, dois filhos pequenos, clube do livro no sábado, jantar fora na sexta, sempre no mesmo restaurante, vão pra cama ás onze, dormem de pijama, sexo uma vez por semana e olhe lá... Eles não têm mais o fogo do começo da relação. Na verdade, seria estranho se ainda tivessem, a intimidade levou á isso, á essa relação morna.
Quando o casal vizinho se separa e eles ficam sabendo dos motivos, um sinal de alerta dispara, e eles temem ir pelo mesmo caminho.
O casal em questão, Phil e Claire Foster, decide então dar uma reanimada na relação, ela se ajeita com um pouco mais de esmero, ele a leva pra jantar em um restaurante caro em Nova York.
Parece meio modorrento, provavelmente era a ideia do roteiro, mas quando a gente vê as caras de Steve Carrel (O Virgem de 40 Anos, The Office) no papel de Phil, e de Tina Fey (Uma Mãe para Meu Bebê, 30 Rock) no papel de Claire, a gente sabe que vai rir. E rir bastante.
Pra complementar um pouco a trama, Phil e Claire tentam conseguir, sem reserva, uma mesa em um concorrido restaurante, não conseguem, Phil, não querendo perder moral com a patroa, "rouba" a reserva de outro casal, os Triplehorn, e estão curtindo uma bela noite quando dois sujeitos param ao lado da mesa e levam o casal para uma conversa reservada no lado de fora, inicialmente Phil e Claire pensam que vão levar uma bronca pela travessura no restaurante, mas descobrem que os Triplehorn de verdade são chantagistas que mexeram com as pessoas erradas.
Daí pra frente, o casal se envolve em todo o tipo de clichê de filmes de perseguição, o que não tira, em momento algum, a graça do longa, Carrel e Fey têm um timming cômico genial, e não deixam a peteca cair em nenhum momento. E tome capangas mal encarados, fugas em carros esportivos, arrombamentos, tiroteios, tudo bem dirigido por Shawn Levy, e com um elenco de apoio muito bom, que conta com gente como Ray Liotta, Mark Ruffalo, Kirsten Wiig, Taraji P. Henson, James Franco e Mila Kunis (Muito maneiros como os destrambelhados verdadeiros Triplehorns), J. B. Smooth, roubando a cena como um taxista azarado, e Mark Whalberg, como um especialista em segurança com aversão à camisas.
Mas, mesmo com os coadjuvantes estrelados, Carrel e Fey são as estrelas do filme, os donos da festa, que jamais deixam de convencer como casal casado, e nunca perdem a graça trabalhando bem com o roteiro politicamente incorreto e ás vezes histérico como pede a cartilha da nova comédia hollywoodiana.
Uma noite fora de série pode não ser uma dessas comédias insanas como Segurando as Pontas ou Se Beber Não Case, mas arranca boas risadas e prende a atenção. O que mais se pode exigir de uma comédia?

"Ah, meu Deus! Ele virou a arma! É pra matar!"

terça-feira, 13 de abril de 2010

Minha Utopia




O velho sentou um um banco no jardim, e anunciou que contaria uma história, a história de um mundo diferente.
As crianças que queriam ouvir sentaram ao redor do velho, e as que preferiram continuar brincando se afastaram para não atrapalhar com gritos e risadas. O velho começou a contar, então, a história de um mundo.
Era um mundo engraçado aquele sobre o qual o velho falou.
Era um mundo em que os governantes não estavam sequer remotamente interessados nas necessidades dos governados. Era um mundo em que os governados se queixavam muito e nada faziam. Era um mundo em que a educação, de uma forma ou de outra, estava disponível a todos, mas nem todos estavam disponíveis à educação. Era um mundo torto onde em muitas oportunidades os filhos morriam antes dos pais, em que as pessoas preferiam apontar o dedo pros outros e fazer queixas ao invés de olhar para si próprias e pensar no que poderiam ser melhores.
Era um mundo doente, em que as pessoas não ligavam pro mundo, maltratando-o, e não entendiam o que havia acontecido quando o mundo as maltratava em retorno.
Era um mundo em que cada pessoa estava exposta a cada minuto do dia à possibilidade de corrupção, e, tristemente, poucas eram as que tentavam, de alguma forma, resistir.
Era um mundo em que religiosos tinham todas as respostas, e as pessoas, por não estarem disponíveis á educação e á sapiência, ignoravam o fato que que as respostas podiam estar erradas.
Era um mundo em que aquilo que as pessoas tinham era mais importante do quem elas eram, e em que as pessoas, na ânsia de terem as coisas e se tornarem importantes abriam mão de sua identidade individual sem sequer piscar os olhos.
Era um mundo em que era ótimo fazer parte de um grupo, qualquer grupo. Em que as pessoas atavam seu próprio destino ao de outra ainda que não amasse à outra pois as pessoas eram covardes demais para estarem sozinhas. E quem fosse diferente era taxado de estranho, era taxado de egocêntrico, era taxado de sabichão.
Era um mundo triste, aquele, povoado por uma gente rasteira e vil, desprovida de amor-próprio no bom sentido, mas repleta de amor-próprio no mau sentido.
Era um mundo de gente infeliz, que achava que a resposta às suas mazelas era ter mais dinheiro, ou ter mais poder, ou ter mais atribuições, títulos, mais coisas...
Era um mundo fragmentado em que algumas porções viviam como reis futuristas e outras viviam como se estivessem na idade da pedra, um lugar em que a riqueza do mundo ofereceria de bom grado sustento a todos, mas onde as pessoas não sabiam nem queriam aprender a partilhar.
Era um mundo triste, habitado por gente ruim, e por gente fraca. Ainda bem que aquele mundo acabou.
As crianças agradeceram pela história, se levantaram e voltaram a brincar, deixando o velho sozinho com seus pensamentos, pensamentos que remetiam aquele mundo tão ruim.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

A hora da vingança


Aparício apareceu como quem não queria nada.
Sônia não via o miserável faziam uns quatro ou cinco meses. E agora, após abrir a porta de casa, enquanto pendurava a chave no claviculário, ouviu a voz da mãe, conversando animadamente. Estranhou, a mãe não tinha muitas amigas, podia ser a avó de Sônia, ou sua tia, elas apareciam com frequência, mas não. A voz que chegou aos ouvidos de Sônia não era nem, de sua avó, nem de sua tia.
Era uma voz masculina. Falava depressa, falava muito. Sim... Aquela voz era dele.
Do acéfalo, do bitolado, do cafajeste... Era a voz de Aparício.
Ele havia aparecido novamente.
Sônia lembrava como se fosse ontem da última vez que vira o rosto longo de Aparício. Lembrava de suas espessas sombrancelhas negras, de seus olhos castanhos e dos cabelos repletos de gel. Ela lembrava do cheiro de perfume e de suor misturados que ele exalava, e do cheiro de chiclete clorets no seu hálito. Sônia lembrava, sim.
De sua voz lhe dizendo macia e cheia de culpa que não era ela, que era ele, que ela era jovem e linda e encontraria um homem que fosse completo e pudesse amá-la como ela merecia. Que ele não era esse homem, que ele ainda não se encontrara, e que enquanto não se encontrasse não a mereceria.
Sim, Sônia lembrava de tudo que o desgraçado dissera.
Ela lembrava de como quase se sentira culpada por ser perfeita demais, boa moça demais, de como quase flertara com a ideia de se largar um pouco, de fazer umas bobagens, de cortar os longos e belos cabelos negros ondulados ou quem sabe acrescentar um pouco de volume á sua impecável silhueta de 58 quilos distribuídos de forma harmônica em um metro e setenta?
Sim, Sônia se sentiu culpada por ser boa demais. Ela de fato acreditou no que o energúmeno, falastrão, gosmento, horrível e idiota de duas caras, cavanhaque e mãos delicadas de artista lhe dissera naquela noite com sua cara de pau.
Ela o admirou em sua honradez, ela acreditou, de fato, que ele a considerava perfeita, e não se considerava à altura dela. Aquilo a ancheu com alguma forma obscura e dolorosa de lisonja, tanto que ela se sentiu, de fato se sentiu culpada por ser boa demais.
Todos os desentendimentos, brigas e cobranças dela pareceram, de repente, tão inócuas, tão vazias, tão... Tolas diante da abnegação daquele homem. Ela crera naquilo. Ela de fato acreditou que aquele jumento linguarudo, aquele mandrião nojento e obtuso era um homem abnegado.
Pois sim.
Aquilo não era um homem. Aparício era uma criatura pestilenta e quadrúpede, um rato!
Isso mesmo, um roedor portador da peste negra e que vivia nos túneis úmidos dos esgotos fazendo a imitação de um homem.
Sônia demorara apenas alguns dias para descobrir, ao chegar mais cedo da faculdade, lépida mas ainda com um buraco em seu coração, ela viu, lá estava o santarrão, o tosco, á menos de trinta metros de sua casa, sentado na calçada conversando animadamente com aquela ruiva... A audácia, a desfaçatez... Quem ele pensava que era, aquele usurpador? Aquele verme xabouqueiro? Como ousava romper com ela, que terminara todos os seus namoros, e, ainda pior, fazendo-a se sentir culpada, dizendo que precisava se encontrar, que precisava se um homem completo, que ainda não o era, e toda aquela ladainha, e, menos de uma semana depois lá estava ele, de tiara e jeans, conversando na calçada com aquela, aquela...
Não importava. Não importava mais. Sônia havia superado. Tinha pra si que revertera aquela situação. Namorara homens feitos, sem os defeitos juvenis daquele rufião de barbicha, namorara homens sérios que não faziam vozinhas especiais nem tampouco a jogavam sobre o ombro e corriam por meia quadra sacolejando-a como se fosse um saco de batatas. Homens responsáveis que ouviam e acatavam seus bons conselhos sem desfazer deles ou ironizá-los sem dar a devida atenção. Não, Sônia agora era uma mulher feita, e namorava com homens feitos. Não que estivesse namorando com nenhum agora, homens feitos eram algo chatos, mas ela tinha sua vida, realizada no trabalho fazia o que gostava e dividia os frutos com quem partilhasse seus gostos.
E ele, agora retornara, sim, o cretino retornara, ali estava o crápula, ele que fizera Sônia passar noites em claro, chorando copiosamente, e depois a fizera passar mais noites em claro, chorando de raiva e o insultando em ordem alfabética... Mas ele voltara. Voltara rastejando conforme ela profetizara ao vê-lo na rua sozinho numa tarde qualquer no centro de Porto Alegre. Ela sabia, pelo modo como ele a encarou, pela sua hesitação na hora de se despedir, ela sabia, sabia que ele iria retornar, que ele cairia em si e voltaria se arrastando e pedindo perdão.
Agora era a hora de aproveitar o momento, de saborear aquela vitória, sim, Sônia iria fazer isso, iria desfazer de Aparício, iria sorrir candidamente enquanto ele pedisse uma segunda chance e então... Rá! Ela gargalharia friamente e lhe diria algumas boas verdades.
Sacou da bolsa o espelho e a maquiagem, precisava estar bonita para que ele se sentisse ainda pior ao ser vergonhosa e impiedosamente rejeitado, aquele... Aquele... Não importava. Não agora. Não em seu momento de triunfo.
Sônia respirou fundo, e entrou na sala, sua mãe e Aparício silenciaram. A mãe disse:
-Olha só, filha, quem deu o ar da graça!
Sônia olhou com um sorriso cínico enquanto Aparício, vestindo calça jeans, camiseta branca e camisa preta aberta se levantou e andou em sua direção, ele a abraçou forte, beijou-lhe a face, e ainda abraçado nela disse em seu ouvido:
-Quanto tempo, Soninha.
Sônia estava aproveitando seu triunfo. O abraçou vagamente, sentiu o cheiro de clorets em seu hálito, sentiu o cheiro de perfume masculino e suor almiscarado, o roçar da barbicha em seu pescoço. As pernas de Sônia tremeram de leve. Ela suspirou.
Recomponha-se! Ela pensou, recomponha-se! Esse calhorda está aqui para implorar que tu o aceites de volta. Recomponha-se, guria!
Ele segurou as mãos dela quando a desvencilhou de seu abraço, perguntou como estava tudo.
Ela respondeu com monossílabos. Estava vivendo um conflito interior. Será que devia aceitá-lo de volta? Seus olhos ainda mantinham a mesma qualidade juvenil de antes, mas ele parecia mais maduro. Sabia que ele estava trabalhando em um emprego fixo agora, que era um homem mais responsável... Poderiam tentar de novo, ela faria dar certo, mesmo que tivesse que tentar ser menos certinha, menos perfeita. Ela queria sentir novamente o cheiro de perfume e suor, o hálito de clorets, queria sentir os braços dele a envolvendo... Sim, ele pediria para ser aceito de volta, pediria uma segunda chance e ela diria que sim. Claro, se faria de difícil. Não deixaria ele perceber o quanto sentia sua falta, ela faria pose de durona. Arrá, aquele sujeito não sabia com aquem estava lidando, Sônia era uma mulher poderosa, e faria o relacionamento dar certo. Aquela separação fora apenas um intervalo em sua história de amor para que ela aproveitasse um pouco a vida e ele adquirisse a perspectiva necessária para dar à ela o devido valor.
Ela sorriu, ainda sentindo as mãos delicadas de artista dele envolvendo as suas:
-Esperando á muito tempo? -Ela perguntou.
-Não, não. Tava de saída, já. -Respondeu Aparício, soltando suas mãos.
-Claro - Ela começou.
Então deu-se conta. Como assim "de saída"?
Ele se despedia da mãe dela, um abraço fraternal, um beijo no rosto, repetiu o gesto com Sônia. Pegou uma sacola esportiva do chão, ao lado de poltrona onde estava sentado.
-Só tinha vindo buscar a minha bolsa de viagem e o meu moletom da Nike que tinham ficado aqui. Tô de viagem marcada pra Canela nesse final de semana, pode fazer frio. Bom te ver, Soninha. Beijão.
A mãe o acompanhou até a porta, e quando voltou, Sônia estava sentada no sofá limpando a maquiagem e tirando os sapatos.
-Ele pareceu bem, né? Tá namorando sério, já fazem uns cinco meses. Ele acha que é a mulher da vida dele. Disse que aprendeu muito contigo. Bom rapaz. Quando é que tu vai arranjar um namorado que nem ele de novo, hein, Sô? Ele é tão... Tão...
-Zastre. -Completou Sônia com o rosto contorcido de raiva.
Quando sua mãe perguntou "O quê?" ela disse que não era nada e foi pro banho. No chuveiro, com o rombo novamente escancarado no coração, recitava baixinho:
-Anormal... Bitolado... Chantagista... Desclassificado...
Aquilo duraria ainda algum tempo.

Resenha Game: Heavy Rain



Nos últimos dias de Março peguei meus minguados rendimentos e, após uma rápida contabilidade, achei que poderia me auto-presentear com um novo jogo de videogame. Fui até o shopping e lá, vasculhei as prateleiras em busca de novidades. Três jogos imediatamente entraram na disputa que organizei em minha própria mente para ver qual seria o escolhido:
Aliens VS. Predador, God Of War III, e Heavy Rain.
Em que se pese que eu não joguei God Of War I e II, e apesar de ser fã de Aliens e Predadores não guardo as melhores lembranças de jogos relacionados aos extraterrestres, acabei pegando Heavy Rain, cujas novidades eu vinha acompanhando pela internet no último ano, e sobre o qual repousava grande curiosidade de minha parte com relação às decantadas inovações em termos de gameplay.
Agora, após ter terminado minha primeira incursão no mundo do "Assassino do Origami", posso falar a respeito com algum lastro. Vamos lá.
Heavy Rain é um suspense bastante semelhante aos que infestam os canais de filmes a cabo, na história, uma cidade típica dos EUA é assolada pelos ataques de um assassino serial conhecido como "Assassino do origami", que sempre opera da mesma forma: Sequestra um garoto com idade entre oito e dez anos, o mantém cativo por uma semana, o afoga, e então, abandona o cadáver da criança em algum lugar inóspito com uma orquídea e uma figura de origami.
Nesse cenário, surgem os personagens principais do game, que são quatro, todos com papéis a desempenhar na trama, cada um com sua história e todos jogáveis em capítulos sucessivos:
Ethan Mars, arquiteto divorciado, meio que o personagem central do game, teve o filho mais velho, Jason, morto em um acidente dois anos antes dos eventos do jogo, ele se vê envolvido nos crimes do origami de duas formas diferentes quando seu filho, Shawn, é sequestrado pelo criminoso ao mesmo tempo em que o trauma da morte de Jason começa a fazê-lo questionar a própria sanidade.
Scott Shelby, o detetive particular asmático, ex-policial, é o personagem com o maior número de sequências de ação, e parece resoluto em descobrir quem é o assassino não importa a que custo.
Norman Jayden, criminologista do FBI é enviado de Washington para auxiliar a polícia local na resolução do caso, ele possui um aparato de investigação criminal de fazer inveja ao pessoal do C.S.I., é dedicado e segue as regras, embora o seu vício em drogas possa complicar, e muito, sua investigação.
Fechando a quadra há Madison Paige, repórter insone que se vê envolvida no caso quase por acidente, e subitamente se torna o fiel da balança que pode significar vida ou morte para Shawn Mars.
Eu sei, não parece grande coisa.
Qualquer pessoa que tenha jogado um survivor horror em algum momento desde a era dos trinta e dois bits já viu histórias semelhantes.
Mas não se engane, Heavy Rain é bem diferente dos demais games que enchem as prateleiras das lojas por, pelo menos, três razões:
É um jogo de investigação, de suspense, onde as ações de cada um dos quatro personagens em suas respectivas linhas narrativas pode alterar o final do game, beleza, inovação número um.
O jogo investe em uma trama que foge das que geralmente vemos em videogames de última geração, é um suspense, não é um game de terror, nem é um game de ação, embora hajam alguns momentos tensos (A sequência de Madison no porão do médico é de fazer roer as unhas.), e esporádicas (e boas) sequências de ação, o clima é de investigação durante a maior parte do jogo, inovação número dois.
Durante essa investigação não há certo ou errado, não há um script correto para seguir. O jogador é responsável pelo jogo baseado em suas escolhas e em seu esmero ou desleixo na hora de realizar as tarefas que o game propõe.
Se você falhar em um quick time event (Aqueles momentos estilo God Of War em que uma sequência de botões deve ser realizada corretamente para cumprir uma tarefa.), se você não tiver tempo de tentar de novo, sua falha é incorporada à história, e você seguirá por uma linha narrativa que conduzirá a um desfecho diferente do que seria em caso de sucesso.
Se um dos personagens morre enquanto você joga, não há game over, ele morreu, e você segue jogando numa linha narrativa que incorpora a morte do personagem e você terá que encarar sua falha até o final do game (Ainda lamento ter "matado" o agente Norman Jayden... Prometo cuidar melhor de você na minha segunda tentativa, Norm.), inovação número três.
Além dessas belas novidades, há o apuro técnico. Heavy Rain é um jogo de animação bela e gráfico perfeito, os personagens são incrivelmente vivos. Claro, há problemas em certos momentos de movimento mais lento, quando se percebe que a movimentação dos personagens não é tão fluída quanto a de pessoas de carne e osso seria, porém as feições digitalizadas dos atores que interpretam os papéis no game (Com a mesma técnica de captura de performance usada por Robert Zemeckis em A Lenda de Beowulf e Expresso Polar) são de comover, assim como a boa dublagem e os cenários perfeitos.
Um bônus que nós, Brasileiros ganhamos na carona dos nossos patrícios portugueses é a possibilidade de jogar o game dublado em português (luso, não é o bicho, o som em inglês é bem melhor.), ou com legendas em português de Portugal, bacana pra quem não domina inglês, uma vez que o texto é fundamental para aproveitar o que o jogo oferece de melhor, sua história.
Eu sei, é uma história parecida com todos aqueles filmes dos canais a cabo à noite e tudo mais, mas aqui, você está no comando do personagem principal. Mais que isso, dos quatro personagens principais. Se estiver atrás de um game onde pensar e ser paciente é tão útil quanto esmagar botões, gritar, babar, bater no peito e gritar que é muito macho, invista cento e oitenta reais nesse. Vale a pena.

"Eu sou um pai, também..."

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Estratégias...


Um. dois, três petelecos.
Rondineli virou pra esposa, Lurdinha que não parava de bater nele.
-Que isso, Lurdinha! Para, criatura!
-Para nada, tu não tirava os olhos daquelazinha! -Respondeu Lurdinha enfurecida.
-Mas... Mas do que tu tá falando, mulher? Que "zinha"? Que bobagem é essa? -Perguntou Rondineli, dando um passo pra longe de Lurdinha e ajeitando o cabelo.
-Pensa que eu não vi, Rondineli? Pensa que eu sou trouxa? -Perguntou Lurdinha, avançando pra perto de Rondineli e batendo nele enquanto perguntava entre os dentes cerrados: -Pensa que eu sou trouxa? -Separando cada palavra com um novo peteleco na cabeça do Rondineli que gritou "Ai!" e se afastou de novo.
-Lurdinha, eu não sei do que tu tá falando, eu não tava olhando mulher nenhuma, tava acompanhando a banda, cheguei á te dizer que o baixista parecia um galã de novela mexicana com aquele cabelo sem vergonha cheio de gel. -Argumentou Rondineli, diminuindo o passo e encarando a Lurdinha.
-Que tu disse, o quê, Rondineli? Tu balbuciou alguma coisa mas nem deu pra entender. Tu tava com muita baba na boca de tanto olhar praquela loira aguada. Homem é bicho triste, é só aparecer uma mulher com uma bunda enorme que, pronto. Acabou-se, eles não percebem mais nada. É só oxigenar o cabelo e dar um jeito de ficar com um rabão e deu, todos os trouxas da festa não vão tirar o olho. -Completou ela, desdenhosa.
Lurdinha parou com os petelecos. Afastou-se como quem desiste da raça humana.
Rondineli se aproximou dela, tentou tocar seu braço, mas ela o rechaçou:
-Não, não. Por que, olha, vou te contar, viu? Pensei que tu era diferente. Pensei que tu era... Sei lá. Pelo menos que tivesse bom gosto. A cara daquela pistoleira. Cara de fim de linha, Rondineli, e vestida daquele jeito? Aquela calça... Parecia que tinha nascido dentro. Os peitos quase de fora. Óbvio que tava caçando. E a isca deu certo. Lá tava o trouxa, babando atrás dela. O problema é que tu tava comigo, Rondineli, comigo! E eu não mereço isso. É, antes de tudo, uma falta de respeito. Te larguei, viu?
O tom de Lurdinha, os cantos da boca apontando pra baixo, deixavam claro que ela estava extremamente desgostosa com toda a situação. Rondineli, não se lembrava francamente de ter ficado babando atrás da tal da loira bandida, olhara, claro, quem não olharia? A bandida tava mesmo quase nua no salão, era, de fato, algo pistoleira, tinha pinta de quem tava caçando, isso é excitante. A loira não era uma mulher bonita, mas era, sei lá, uma potrancuda, e estava expondo a mercadoria de forma extremamente eficaz. Tava tudo lá. Mas não era uma mulher que Rondineli seguiria babando por uma festa, jamais deixaria Lurdinha, pequenininha, graciosa, delicada, proporcionalmente perfeita por uma mulher como aquela loira. Nem sequer lhe passaria pela cabeça trair Lurdinha com uma mulher daquelas. Com mulher alguma, exceto, sei lá, se a Megan Fox ou a Scarlett Johansson surgisse intimando Rondineli com um "Agora ou nunca.". Rondineli amava a esposa, francamente, por isso casara com ela. Apenas gostara das formas generosas da loira bandida, e achara que uma olhadinha ou duas não fariam mal.
Ledo engano. Agora a santidade do seu casamento estava ameaçada por uma bobagem como aquela. O tom do discurso de Lurdinha acenava com uma bolsa de viagem cheiam de roupas e a casa da mãe dela, aquela víbora.
Rondineli achou que a delicadeza do cenário pedia um movimento estratégico bem pensado. Afastou-se da Lourdes, enfiou as mãos nos bolsos e disse.
-já entendi o que é isso. Mas não vai funcionar, Lurdinha. Tu não vai inverter essa situação.
Lurdinha chegou á pensar em deixar passar, detectou algum movimento estratégico por trás daquele comentário, mas a curiosidade de saber quual era o esquema de Rondineli venceu seus instintos e ela perguntou:
-Inverter o quê, Rondineli?
-A coisa toda. Tu não tirava os olhos daquele escamoso daquele baixista. -Disse Rondineli com uma nota de desapontamento na voz.
-Tu tá louco? Aquele cara... Aquele cara com aquela pinta de galã de rodoviária? Tu pensa que eu... Peraí. Eu entendi o que tu tá fazendo... Tu tá me acusando de inverter as coisas pra inverter as coisas. Que golpe baixo, Rondineli, até pa ti.
-É... Golpe baixo... Parece que disso tu entende, né? Claro, faz sentido, agora. Tu comentou demais a porcaria do solo de baixo. Falou do movimento das mãos... É, dona Lourdes... Francamente... -Rondineli olhou pra cima como quem diz "Perdoa-a, ela não sabe o que fez".
Lurdinha chegou á ficar vermelha. Parou e encarou Rondineli:
-Tu pensa que eu sou burra, né, Rondineli? Por que só isso explica essa tua ideia. Eu, interessada naquele cara escroto? Bochechudo, com aquela suíça... Nem suícça, costeleta. Parecia o primo brega do Wolverine. Aquela camisa floreada com aquela calça branca, aquele barrigão...
-Ah, então tu tava olhando, mesmo, né? Sabe direitinho como ele tava vestido, como ele era... Gostou, mesmo do escamoso.
-Ah, vai se catar, Rondineli.
-Não vou, não vou, não vou, não. Tu vai parar. Parar com essa besteira. Tá. Eu olhei pra bandida. Olhei mesmo. Achei gostosona e olhei. Admito. Mas não quero pra mim. A mulher da minha vida é tu, Lurdinha. É só por ti que eu babo. Seja de amor, seja de raiva. É tu, Lurdinha, só tu.
Rondineli abraçou Lurdinha e a beijou. Á princípio ela tentou resistir, mas se entregou, correspondendo o abraço e o beijo.
Mais tarde, em casa, fizeram amor apaixonadamente, depois, Rondineli adormeceu com Lurdinha encostada em seu peito, e a sensação do dever cumprido.
Á seu lado, Lurdinha ficou feliz por ter riscado os tês e pingado os is com Rondineli. Além disso, tivera a vitória pessoal de fazer o marido admitir que olhara pra piranha na festa. Adormeceu feliz, mas antes, deu um leve suspiro ao lembrar do baixista da banda e de seu charme rústico.