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quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Rapidinhas do Capita


Causo de Amor Campeiro:

Bastião, o peão, no caminho para seu trabalho duro no campo, passava todo dia em frente à casa de sua vizinha, Mirtes, uma viúva precoce de vinte e seis anos, muito bonita.
Como Bastião era um ser humano do gênero masculino em idade fértil, livre e desimpedido, interessou-se pela bela viúva, que morava só na casa herdada do falecido.
Bastião, enamorado que estava, tentava com todas as ferramentas de conquista a seu alcance cativar Mirtes. A cumprimentava polidamente, tentava conversar, se desmanchava em elogios, se oferecia para ajudar nas lides diárias, enfim, a cortejava de maneira gentil e constante.
Mirtes, porém, parecia imune à gentileza e aos galanteios de Bastião. Jamais lhe dava muita abertura, respondia suas perguntas unicamente com sim ou não, não devolvia o interesse que ele tinha por ela de forma alguma, nem sequer o olhava nos olhos quando conversavam, nem sequer, pasmem, tinha a polidez de convidá-lo para tomar um chimarrão quando ele passava em frente à sua casa no fim do dia e a saudava acenando com o chapéu.
Bastião, eventualmente acabou cansado da atitude de Mirtes.
Se não gostava dele, paciência, ele não podia fazer nada, ela não era obrigada a gostar, e inúmeras moças da região gostavam, ele não morreria solteiro exceto se fosse por opção, mas que, ao menos, Mirtes não fosse mal educada.
Cheio dos maus modos de Mirtes, Bastião resolveu devolver as grosserias da viúva em uma só.
Foi até a casa dela na manhã de um sábado e a viu sentada na soleira da porta, escolhendo feijão. Parou em frente à varanda e disse:
-Dia, dona Mirtes.
-Bastião... -Ela respondeu com pouco caso, ainda olhando pros feijões na bacia de plástico laranja.
-Dona Mirtes, hoje, das duas uma, ou tu me convidas pra tomar um mate ou dá pra mim. O que vai ser?
E Mirtes, ainda com o olhar perido nos feijões respondeu, contemplativa:
-... Bueno, acontece de eu tá sem erva em casa...
E viveram felizes para sempre.

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Amanheceu um dia esplendoroso de primavera, um dia lindo, de céu azul temperatura amena. Uma luz dourada entrou pela janela do quarto de Dora, a fazendo sair de sob seu edredon com ânimo renovado. Aquela manhã primaveril lá fora pedia uma atitude igualmente primaveril, e, por Deus, Dora não perderia a oportunidade de tomá-la.
Precisava disso.
Desde que sofrera uma decepção dolorida, mas não totalmente inesperada, após tentar engatar um romance com seu vizinho, uma criatura detestável que nem sequer merecia menção, Dora vinha se sentindo meio triste, meio deprê. Talvez o inverno houvesse contribuído, vai saber, mas isso era passado.
Agora Dora encararia aquela manhã ensolarada e florida com uma cara renovada. Vestiu-se com pressa, foi até o primeiro salão de beleza que encontrou e foi entrando. Cumprimentou a atendente e disse:
-Muda tudo!
Uma hora depois deixava o salão com um corte de cabelo totalmente novo, repicado, mais volumoso. Mas ela achou que não era suficiente, foi até uma dessas lojas de estética e comprou descolorante e tintura loiro Vanusa. Em casa, entregou-se à tarefa de mudar a cor de seu cabelo, o que fez com extremo sucesso. Sumiu a morena de cabelos negros escorridos, surgia uma loira primaveril, quase escandinava.
Era isso, aquela era a cara que ela queria. Mas maquiada.
Tomou banho e maquiou-se com esmero, colocou um vestido florido, sapatos de salto médio, perfumou-se e saiu para encarar o mundo.
No corredor cruzou com seu vizinho. Aquele, a criatura detestável, o vil biltre Viktor de SanMartin.
Ele a olhou com um meio sorriso, foi a acompanhando com os olhos, parecia hipnotizado pela figura dela.
"Sim!", pensou Dora, "era isso que eu queria, esse é o sabor doce da vingança, Viktor de SanMartin, você irá sonhar com essa loira pensando no que poderia ter sido...".
Ela andou lânguidamente, se aproximou de Viktor como se ele não existisse, quase flutuando. Quando passava a seu lado ele começou:
-Dora...
Ela quase salivou de antecipação, pensou "Diga, Viktor de SanMartin, seu calhorda, que pensou melhor e que gostaria de sair comigo de novo, diga, diga pra que eu possa humilhá-lo como o verme imundo que você é!", mas disse:
-Ah, sim, Viktor?
-Chutou o balde, hein? Que cabelinho sem vergonha. - Sorriu pro lado.
-...
-Nos vemos por aí. - Falou com uma piscadela de seus cílios intermináveis.
Se dora não tivesse que pagar as duas últimas prestações do DVD player novo e não estivesse louca pra ver o último filme do Harry Potter, ela teria se matado naquela hora.

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Tradução:

Ele disse:
-Oi, Fran, que bom te encontrar, tava pensando em ti, olha só, quer ir lá em casa ver minha coleção de livros do Gibran Khalil?
Mas na verdade, não importa o que ele quer mostrar na casa dele, ele quis dizer:
-Oi, Fran, ainda bem que eu encontrei uma representante do gênero feminino, tô numa seca danada, olha só, quer ir lá em casa e dar pra mim?
Ele disse:
-Filme pornô? Não... Acho sem graça, a iluminação é escrota, a trilha sonora é risível, é tudo pensado pra exposição e não pra romantismo ou intimidade, não acho nem um pouco sensual, na verdade até me enoja um pouco.
Mas na verdade ele quis dizer:
-Filme pornô? Adoro pornô. Só se for agora.
Ele disse:
-Tamanho do meu pênis? Não... Não sei qual é. Nunca me preocupei em medir.
Mas na verdade ele quis dizer:
-Tamanho do meu pênis? Claro que eu sei, eu sei desde o treze anos. detalhadamente em centímetros e milímetros. Em um compartimento secreto da minha casa há um quadro branco com gráficos de crescimento mostrando comparativos entre o tamanho em todas as idades e estações do ano.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Saber


O Cabral era reconhecido por ser um sujeito inteligente. Bem informado, culto. Era conhecido por ser agradável e educado, polido, até. O Cabral tinha sido o primeiro da família dele, uma família humilde, a fazer faculdade, o que encheu a avó dele de orgulho, mas pra ele não era nada demais, era apenas trabalho. E Cabral levava o trabalho á sério.
Cabral tinha uma vontade louca de aprender e saber coisas novas. Sempre queria saber mais, sempre queria conhecer mais, daí vinha toda a sapiência de Cabral, de sua vontade infinita de saber. Se Cabral encontrasse uma proverbial lâmpada ao estilo das histórias de Sherazade, e de dentro dela saísse um gênio lhe oferecendo três pedidos, Cabral usaria apenas um: Ele pediria para saber tudo.
Cabral acreditava que, se soubesse tudo, ele não precisaria de mais nada, pois, sabendo tudo, saberia a melhor maneira de suprir suas próprias necessidades sempre que elas surgissem.
Mas Cabral, embora soubesse já bastante, não sabia tudo.
Cabral não sabia expressar o que sentia.
Cabral não sabia perdoar.
Cabral não sabia dançar, nem cantar.
Cabral não sabia como coçar a barriga de um cachorro até a perna dele tremer.
Cabral não sabia fazer cafuné, ou rir de si mesmo.
Cabral não sabia desenhar cavalos e nem o Garfield.
Cabral não sabia que viver com alguém é se equilibrar em uma teia, onde um passo em falso aqui pode reverberar enormemente pra alguém ali adiante, e que o que pra ele parece uma breve oscilação, pra pessoa que tenta andar ao seu lado tem a força de um terremoto.
Cabral sabia muito, e muito pouco...

Reminiscências e confidências...


Quatro amigos acampando, todos já com seus quase trinta anos, se conheciam desde sempre, eram amigos desde sempre, acampavam todo ano desde sempre.
Haviam feito inúmeras atividades durante aquele dia, nadaram no lago, escalaram uma parede rochosa, e caminharam, por Deus, como caminharam. Caminharam á ponto de suas botas de trekking ficarem quase macias. No final do dia montaram acampamento, fizaram uma pequena fogueira com galhos recolhidos do chão, usaram seus fogareiros para cozinhar macarrão instantâneo, e ficaram observando as estrelas, recuperando-se do dia estafante e jogando conversa fora enquanto comiam. Deve ter sido o Jorge que começou o assunto. Entre todas as mulheres do mundo da ficção, ficção englobando literatura, cinema, TV, o que for: Quem você queria pegar de jeito?
-Por que, pra mim, entre todas, todas, mesmo, seria a Gilda.
-Quê Guilda? -Perguntou, confuso, Roberto.
-Gilda, rapaz, a... A mulher lá... Pô... Do filme lá, "Nunca houve uma mulher como Gilda"... Tirando a luva... Sabe qual?
-Não.
-Rita Hayworth. -Acudiu Sérgio.
-Isso! Essa aí. Ela. -Assentiu Jorge.
-Mas peraí, Jorge... Na tua proposta a gente pega a personagem ou a atriz? E pega em que período de tempo? Ou é extemporâneo?- Quis saber Augusto, que ainda não se manifestara.
-Como...? Não complica, Augusto. Se eu quero pegar a Gilda eu pego a Gilda do filme, lá de mil novecentos e cinquenta e coisa.- Estabeleceu Jorge.
-Quarenta e seis.- Corrigiu Sérgio.
-Quê?
-Mil novecentos e quarenta e seis. Gilda não é da década de cinquenta, é de quarenta e seis. Ou quarenta e sete, mas acho que quarenta e seis.
-Tá, então, se tu escolhe a Gilda, não é a Rita Hayworth de hoje em dia-
-Até por que, ela morreu em oitenta e sete...
-Cala a boca, Sérgio. Mas então, tu não pega a atriz, tu pega a personagem como ela era. Se tu escolhe a Wilma Flintstone não é a dubladora dela, nem um pedaço de papel desenhado, é uma Wilma Flintstone de carne e osso. Enfim, pra mim é a Gilda, e pra vocês? Roberto, pra ti?
-Hmmm... Deixa eu ver -Disse Roberto fechando um olho pra pensar.- Eu tô na dúvida... Acho que a mina aquela de O Senhor dos Anéis.
-A Liv Tyler?- Perguntou Jorge.
-Não, a outra. A loira.
-A Cate Blanchet?- Ajudou Augusto.
-Não, meu... A outra...
-A Miranda Otto?- Experimentou Sérgio, surpreso.
-Acho que sim... A que matava o louco de preto montado no dragão, aquele, né? É ela mesma. Mas a personagem, não a atriz.
-Éowin, eu acho... Mas é a mulher mais feia do filme, tchê!- Protestou Sérgio, inconformado.
-Como feia? Não tem nada de feia. E ainda matou o dragão. E o cara da máscara de ferro lá. A mulher é fodona e eu gosto dela, pronto, falei e tá falado. E tu, Sérgio?
-Pra mim é a Brida.- Respondeu Sérgio, olhando pra baixo como se estivesse com vergonha.
-Quem é Brida, pelo amor de Deus?- Quis saber Jorge.
-Brida O'Fern, do livro Brida.- Respondeu, incomodado Sérgio.
-Brida... Brida do Brida? Do livro do Paulo Coelho?- Inquiriu Augusto.
-... É.- Confirmou Sérgio, tímido.
Todos riram às gargalhadas.
-Pára que tu leu Paulo Coelho?- Provocou Roberto.
-Todo... Todo mundo leu Paulo Coelho nos anos noventa.- Defendeu-se Sérgio.
-Eu nunca li Paulo Coelho.- Retrucou Jorge.
-Isso é por que tu abandonou os livros na quarta série depois que o Marcos Rey parou de publicar na série vagalume, Jorge, alguns de nós continuaram.- Discursou Sérgio.
-É... Mas Paulo Coelho...? Sério...?- Observou Augusto.
-Não é tão ruim... Até tem uns lances bem divertidos. É uma leitura meio fast food, mas não faz mal. E a Brida era gostosérrima.
-É. Tá, tá bem, vá lá, então. Gilda pra mim, a loira que mata o dragão e o cara do mau, lá, do Senhor dos Anéis pro Roberto, e pro Sérgio a Brida O'Connor.
-O'Fern. -Corrigiu Sérgio.
-Cala Boca, leitor de Paulo Coelho. E pra ti, Augusto? Quem é?
-Tinha esse gibi, no fim dos anos oitenta, começo dos anos noventa, Black Kiss, alguém leu?- Perguntou Augusto.
-Eu li... Bom, ler, mesmo eu não li. Eu vi. Era praticamente um gibi de sacanagem. Mas os jornaleiros não sabiam e deixavam a molecada comprar na banca, era uma forma de ver mulher pelada e sexo.- Relembrou Sérgio.
-Isso! Era de um desenhista famoso, o Howard Chaykin, e tinha, na história, essas duas loiras ninfomaníacas, a Dagmar e a Beverly, que passavam o tempo todo se pegando de calcinha e sutiã, cinta-liga e salto alto... Então, pra mim, tem que ser essas duas. A Dagmar e a Beverly.- Sentenciou Augusto com um brilho nostálgico nos olhos.
-É... Mas tu sabe que a Dagmar era um travesti, né?- Inquiriu Sérgio.
-Quê?- Exclamou Augusto horrorizado, sob os risos de Roberto e Jorge.
-É, ela era um travecão.- Manteve Sérgio.
-Mentira! Mentiroso!- Acusou Augusto, arrancando ainda mais risadas dos outros.
-Tô te dizendo, rapaz. No começo da última edição, ou era no final da terceira, não lembro. O cara grisalho, lá, o malvadão, pegava as duas, a Dagmar e a Beverly, dava uma surra nelas, e aí aparecia que a Dag era um traveco. -Relembrou Sérgio.
-Eu só li a primeira e a segunda edição...- Reconheceu Augusto, desolado.
-Então tu quer trocar?- Perguntou Jorge.
-Quero... Não. Peraí... A Beverly era mulher, né?- Perguntou ele á Sérgio.
-Sim, a Beverly era.- Confirmou Sérgio.
-Tá, então deixa a Beverly, só. Fico com ela.- Decidiu Augusto, tristonho.
Mudaram de assunto, terminaram de comer, conversaram por mais algumas horas e dormiram. No dia seguinte, mais caminhadas, banhos de lago, à tardinha arrumaram suas coisas entraram no carro alugado e voltaram pra casa. Sérgio dirigia, deixou Jorge em casa, depois Roberto, e por fim, Augusto. Quando se despediram Augusto disse:
-Lembra da parada lá do Black Kiss?
-Qual?
-Das loiras, lá... A Dagmar e a Beverly, lembra?
-Ah, tá. Sim, o que que tem?
-Vou te contar uma coisa, mas fica entre nós beleza?
-Arram...
-Eu sabia que a Dagmar era um traveco, mas eu nem ligo, meu. Era um traveco lindo. Eu mantenho minha escolha inicial, Dagmar e Beverly.- Sentenciou Augusto, com os olhos esbugalhados.
-Tá... Hã... Tudo bem, eu acho... Como tu preferir, velho.- Aquiesceu Sérgio, desconfortável.
-Beleza. Vou lá, então, abraço. Mas ó... Fica entre nós, hein?- Suplicou Augusto, saindo do carro.
-Claro, claro. Pode deixar, Morre aqui.- Prometeu Sérgio.
Mas no ano seguinte eles não chamaram o Augusto pro acampamento.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Ódio...?



Luciana andava acabrunhada naqueles dias. Arredia, aflita, distante... Enquanto voltava pra casa do trabalho caminhando com uma decisão que contrastava com a indecisão que a açoitava internamente, ela não sabia bem o que era, não com certeza, mas tinha cada vez mais clara a impressão de que poderia ser o Roger.
Não era de hoje que os sentimentos dela por Roger estavam confusos. Ela não sabia dizer, com certeza, qual era a relação que tinham àquela altura, não sabia dizer o que sentia por ele, nem sequer se queria continuar estando perto dele.
Podia ser só uma fase, claro, mas também podia ser um irremediável desgaste, afinal, ela e ele estavam juntos já, desde meados de 1999. Pois é. Desde a época em que a Shaquira, o Lou Bega e o Khaled dominavam as paradas de sucesso das rádios do Brasil, o Fernando Henrique era presidente, o Lula apenas uma rascante voz da oposição, e ainda se podia comprar Cebolitos nos super-mercados de Porto Alegre.
Talvez fosse isso. Talvez fosse desgaste. Luciana não era habituada a permanecer tanto tempo em uma relação. Luciana não acreditava em amores eternos. Não acreditava em "...e eles viveram felizes para sempre.".
Claro, ela acreditava que podia ser feliz, precisava acreditar, mas achava que era mais palpável pensar em termos de "... e ela foi feliz ao lado dele por uns três anos, e depois foi cuidar de sua vida e ser feliz sozinha, pelo menos por um tempo...", que, ela sabia, não tinha lá a mesma musicalidade, mas ao menos parecia mais honesto para consigo mesma.
De qualquer forma, a questão ali, era que ela já estava com Roger a mais tempo do que havia estado com qualquer outra pessoa em sua vida. Não haviam sido maus anos, não era como se ela fosse infeliz ao lado dele, mas, ao mesmo tempo, ela tinha sofrido algumas decepções durante o tempo em que estiveram juntos e, talvez inconscientemente, ela ligasse essas decepções ao Roger, de modo que poderia ser interessante tocar a vida sem ele e ver no que dava. Mudar de ares, recomeçar, ter a oportunidade de fazer mais e de ser mais...
Ela não tinha lá muita certeza de que essa era a forma correta de proceder, até aí, nada de novo, Luciana já estivera naquela situação antes e sempre fora mais impulsiva do que cautelosa, jamais tivera problemas com isso, tomara suas decisões, certas ou erradas, e lidara com os frutos delas advindos sem pedir ajuda pra ninguém, porém, agora, ela não sabia como dizer ao Roger que tomara essa decisão.
Como chegar pro sujeito com quem ela dividira tudo nos últimos anos e informá-lo que achava que não aguentava mais ele?
Supôs Luciana que sinceridade brutal, rápida e rasteira seria o ideal. Como tirar um band-aid. Quanto mais rápido melhor. Poderia fazer isso naquela noite. Quando chegasse em casa do trabalho prepararia o terreno para ter uma conversa definitiva com Roger. Talvez fosse bom. Talvez fosse o correto, talvez não, enfim, Luciana não tinha uma resposta para essa questão, mas faria o que seu instinto mandava, haveria de ser o suficiente.
Chegou em casa e tomou banho como se fosse fazer isso pela última vez na vida, não colocou o perfume que Roger lhe dera de aniversário, podia passar uma imagem errada.
Saiu do banho, prendeu os cabelos e se vestiu. Ligou o rádio e arrumou sua mala na companhia de Damien Rice. Por alguma razão pareceu apropriado.
Ouviu o alarido das chaves dele no corredor antes de elas efetivamente tocarem a fechadura. Roger entrou, meio esbaforido. Camisa vermelha, blazer de veludo marrom, calça jeans, all-star vermelho. Largou os óculos a chave e a carteira sobre a mesa, virou-se para ela com um sorriso e estalou um beijo no ar em sua direção e correu pra cozinha desabotoando a camisa sem perceber a mala dela, feita, ao lado do sofá:
-A minha toalha tá por aqui?
-Na secadora.
Luciana se levantou e andou até a cozinha, Roger estava lá, descalço, segurava os tênis pelos cadarços e sacava a toalha da secadora. Olhou pra ela sorrindo, mas sua expressão mudou ao ver o quão séria ela estava:
-Aconteceu alguma coisa?
Luciana, ainda séria, sentenciou:
-Precisamos conversar.
-OK... Alguma coisa me diz que eu vou detestar o teor dessa conversa, mas manda brasa.
Aquele tipo de resposta era uma das coisas que haviam cansado Luciana. Na verdade, aquela resposta meio que serviu de gatilho para o que veio á seguir:
-Roger... Não dá mais. Não dá mais pra mim. Eu não consigo mais viver assim. Aqui. Contigo. Eu não consigo mais suportar o tipo de relação que a gente leva. Eu não sei mais o que a gente é. Namorados? Noivos? Marido e mulher? Duas pessoas que dividem apartamento por conveniência? Eu não suporto mais viver aqui contigo, Roger. Eu não suporto mais o teu bom-mocismo morno, essa tua ataraxia quase patológica, a tua incapacidade de levantar o tom de voz, os teus DVDs em ordem alfabética, acima dos livros e abaixo das action-figures na estante, eu não suporto mais o Playstation 3, nem o Discovery Channel, nem os jantares de terça, quinta e sábado, as idas ao cinema, os beijos de surpresa, o sexo sem surpresas, os passeios rotineiros, a sinusite crônica, o futebol de sexta, eu não aguento mais te ouvir citar Nietszche, Gandhi e Tarantino de memória, eu não aguento mais o teu ateísmo, nem os Beatles, ou o Creedence, o Coldplay e o Oasis... Eu não aguento mais. E eu tô me detestando por te dizer isso, por que, no fundo, eu queria dizer que não é tu, que sou eu. Mas não ia ser verdade. É tu. É tu e o teu silêncio rabugento quando alguma coisa te incomoda, a tua implicância velada com meus pequenos hábitos auto-destrutivos... Eu sei lá, eu me apaixonei por ti pensando que, com o tempo, tu fosse mudar, mas não. Tu continuou a mesma pessoa, não mudou em nada, e eu virei uma megera, e as coisas que fizeram eu me apaixonar por ti, então, hoje são as que me fazem sentir o contrário.
Os olhos de Luciana estavam vermelhos e as lágrimas escorriam abundantemente pelo seu rosto. Roger não disse nada. Suspirou e segurou a mão de Luciana:
-Se tu quiser que eu mude, eu mudo. Me desfaço de todas as coisas que te incomodam. Mudo meus hábitos, falo mais alto, frequento uma religião, não sei se consigo me desfazer da ataraxia, mas posso fingir que estou preocupado com as coisas. Quase tudo que tu mencionou tem solução. A gente só precisa conversar a respeito.
-Roger... Hoje, na maior parte do tempo, eu te odeio.
-E eu te amo o tempo inteiro.
-E como a gente fica?
-Espero que juntos.
Roger calçou os tênis de novo, pendurou a toalha de volta na secadora, apanhou as chaves e a carteira, mas deixou os óculos.
Luciana caminhou até a sala e fitou sua mala.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Rapidinhas do Capita


Ontem, no mercado, vi um produto que me chamou a atenção: Repelente infantil.
Fiquei me perguntando qual seria o cheiro, e se seria, de fato, eficaz para afugentar crianças.

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Talvez tenha sido a chuva fina e fria de ontem, isso é fácil de supôr, difícil é adivinhar se foi a garoa do caminho entre trabalho e casa, ou, mais provável, a garoa do caminho entre casa e mercado, essa, por ter sido depois de um banho morno, é a suspeita número um.
Claro, pode ter sido outra coisa... O leite com chocolate estourando de gelado, a noite dormida todo torto debaixo de uma janela aberta e sob um lençol transparente de tão fino, e, pior de tudo, por nada além de preguiça de ir apanhar uma coberta mais pesada. Enfim... O resultado foi sentido na manhã de hoje. A garganta arranhando, o corpo dolorido, aquela sensação de peso nos seios da face que só quem sofre de sinusite crônica conhece em todo o seu esplendor, e o horror de ouvir os tendões e nervos estalando sob a pele do pescoço quando se mexe a cabeça...
Mas podia ser pior... Bem pior. Ele podia não estar apaixonado.

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Samuel andava sozinho pela rua, era uma daquelas frias tardes Porto Alegrenses em que o céu está azul, o sol está ali, mas ainda assim, você sente o ar gelado dos quatorze graus celsius permear o espaço entre as fibras do seu casaco e fustigar a sua pele de maneira impiedosa, tornando a respiração ofegante e dolorosa, pois cada inspiração queima as narinas. Ainda assim, é uma sensação gostosa, e ás vezes, apenas ás vezes, você inspira com um pouco mais de força, judiando do nariz, já vermelho pela baixa temperatura, apenas pelo prazer de sentir o cheiro do ar gélido ao seu redor.
Era assim que Samuel estava, embora, pela expressão em seu rosto fosse visível que ele não estava no melhor dos seus dias e encontrava pouca satisfação na beleza daquela tarde tranquila.
Sua roupa toda preta era um retrato do que ele sentia, Samuel estava apaixonado.
E, se havia no mundo coisa mais dolorosa que um amor não correspondido, Samuel ainda não a experimentara, de modo que ele vivia dias infernais desde que fizera sua declaração de amor à Carla, uma de suas melhores amigas, e recebera como resposta um sorrido tímido e um beijo no rosto. Gestos amigáveis que feriram o pobre Samuel. Muito. Demais. Mais do que se ela tivesse sacado uma faca e o apunhalado no fígado enquanto esmagava seus terstículos com um alicate e cantarolava o hino do grêmio em ritmo de axé.
Agora, ali estava Samuel, e ele sabia, que não passava de um tolo fingindo estar numa boa e tornando seu mundo um pouco mais frio.
Andava pelas ruas, imaginando o que fazer... Deixar tudo como estava, sem respostas definitivas, ou ir até Carla e pedir que ela lhe dissesse um simples e objetivo sim ou não?
Ele não sabia.
Do bolso de seu casaco de lã preto o MP3 player tocava música. John e Paul lhe diziam ao pé do ouvido que, em qualquer momento em que sentisse dor, se segurasse, e não carregasse o mundo nos ombros.
Que não os decepcionasse, e agora que a encontrara, fosse até lá e a conquistasse.
Samuel andou á esmo. Sem saber bem onde ia. Enquanto o coro de na, nanana, nanana ecoava em seus ouvidos, chegou ao prédio onde Carla vivia.
Um vizinho saia e segurou-lhe a porta, Samuel aproveitou. Subiu as escadas enquanto os rapazes de Liverpool lhe diziam que não fizesse bobagem, que escolhesse uma canção triste e a fizesse melhor. Que se lembrasse de deixá-la entrar sob sua pele, e então ele poderia começar a fazê-la melhor (melhor, melhor, melhor, melhor...).
Quando colocou o pé no andar onde Carla morava, ouviu o ruído de uma porta sendo aberta, e viu, diante de si, em um átimo, a porta do apartamento de Carla se abrir e um sujeito sair de lá.
Por reflexo Samuel subiu o lance seguinte da escada, e pôde ver, nitidamente, por entre as hastes de sustentação do corrimão, Carla segurar a mão ossuda do desconhecido. Abraçá-lo e entregar-lhe um casaco de couro preto envernizado.
O sujeito vestiu o casaco, abraçou Carla novamente, e saiu em direção à escada sem se despedir.
Samuel, claro, não bateu à porta de Carla. Ficou escondido na escada por uns vinte minutos, e então foi embora sem olhar pra trás.
Naquela noite ele chegou em casa e limpou a lista de execução de seu tocador de música. Nenhuma dos Beatles. Passou a ouvir heavy metal. Angra, Sepultura, e outras menos cotadas, passou a andar com uma turma diferente e nunca mais viu Carla de quem sequer atendeu as ligações.
Carla que, naquela tarde fatídica, terminara amigavelmente o meio namoro que tinha com Roger, pensando em tentar algo sério com Samuel, e não entendeu bem por que ele não quiseram mais falar com ela, mas superou, e, eventualmente, ainda pensava nele. Especialmente quando de seu CD player saíam as vozes dos Beatles entoando Blackbird.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Macho de verdade.


Nesse tempo turbulento em que vivemos, uma terra de ninguém onde impera o oba-oba, algumas coisas de vital importância se perdem na poeira diária. Uma delas é o que faz de um homem um macho de verdade? Como reconhecê-lo?
Talvez você esteja cumprimentando diariamente um vizinho boiola, talvez a possível mãe dos seus filhos o olhe com nojo pensando que da fruta que ela gosta você come até o caroço, talvez seus amigos tenham parado de lhe procurar por causa do seu comportamento sexualmente ambíguo, ou, pior ainda, talvez eles te procurem justamente por causa disso.
Pra facilitar pro seu lado, aqui vai um pequeno guia de comportamento do macho que é macho. Assim você saberá se estiver sendo meio delicado:
Quando um Macho de verdade vai ao cinema, "Uma metranca na mão e um balaço na cabeça" é seu lema. Por que macho que é macho não vê filminho do Gláuber Rocha, macho que é macho não vê comédinha romântica ou filminho de aventura, macho que é macho vê filme do Dolph Lundgren, do Steven Seagal que mata todo mundo no cinema e nas horas vagas ainda é policial em Nova Orleans, do Chuck Norris, que é o cara, macho que é macho ainda dá um desconto pra filmes do Stallone e do Schwarzenneger, e ainda assim, só os de ação, que as comédias deles são tudo pra criancinha, e macho que é macho já nasce com vinte e cinco anos e bebendo cachaça direto do gargalo da garrafa de plástico, e tem que ser de plástico, que cachaça em garrafa de vidro, assim como cerveja e vinho é pra fresco ou pra mulher.
Macho que é macho não joga futebol, futebol é esporte de contato, e contato com homem quem quer é franchona, macho que é macho só assiste ao futebol, de preferência jogo em que não torça pra nenhum dos times, que aí tanto faz o resultado e dá pra xingar todo mundo dentro do campo, especialmente o juíz e aquela piranha contorcionista que botou ele no mundo.
Macho que é macho trabalha ou na lavoura ou com contrução civil, se for o caso, melhor se for na área de demolição, que só quem constrói é o amor e amor é coisa de menininha.
O Macho, mesmo, não tem melhor amigo, que isso é coisa de mulherzinha, nem amigo ele tem, ele tem os parceiros de bebedeira, e olhe lá, que esse negócio de parceiro, hoje em dia, é coisa de veado.
Macho que é macho casa com a mulher mais feia, gorda e judiada da região, que mulher bonita é pra quem quer admirar beleza, se apaixonar e esse negócio de admirar beleza e se apaixonar é coisa de mulherzinha.
Macho que é macho casa só pra ter alguém pra cozinhar, lavar roupa e cerzir meia, e só tem filho pra mostrar que não é baitola.
Macho que é macho não ouve música, que música é expressão da alma e expressão da alma é coisa de bicha, por não ouvir música, macho também não dança até por que, se dançar, os outros machos da região se juntam e quebram ele de porrada pra ele aprender a não dar vexame.
Macho não cumprimenta dando soquinho na mão do outro, macho que é macho aperta a mão, de preferência até uma lágrima aparecer no canto do olho do cumprimentado, se não aparacer lágrima é por que o outro também é macho de verdade.
Macho que é macho usa cueca tradicional, daquela com abertura na frente, ou samba-canção, sempre branca, azul ou bege e sempre claras, que é pro macho ver com facilidade se houver freiada na curva, qualquer outra cor ou formato denuncia boiolice.
Macho que é macho não faz tatuagem, não anda de mãos dadas com a namorada, não penteia o cabelo ou usa perfume, quando muito loção pós-barba, de preferência daquelas meio fedidas.
É... Ser macho, mesmo é tarefa pra poucos, meu amigo. Não desista, e depois me diga como se saiu. Mas de longe, que macho que é macho não fica se aproximando demais de homem.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Rapidinhas do Capita


Hoje meu Orkut me disse: A Dança é a linguagem oculta da alma.
Descobri que minha alma é muda.
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Estava andando na rua, uma amiga e eu. Paramos junto ao cordão da calçada, esperando que o sinal abrisse e pudéssemos atravessar a rua. Nisso, assomou a figura de uma mãe dedicada e de seu filho. Um moleque elétrico em seus seis, quiçá sete anos. Nos poucos segundos em que ficamos ali, qguardando o bonequinho verde brilhante que diria para cruzarmos a avenida, o fedelho rodopiou, sentou no chão, arremessou seu boneco do Max Steel pra cima e o apanhou, arremessou de novo e deixou o brinquedo estabacar-se no chão, tudo sob as vistas complacentes de sua mãe que dignou-se unicamente a proferir alguns protesmtos lamurientos.
O sinal ficou vermelho, e os carros pararam. A mãe e o filho se puseram a atravessar, o moleque rindo e olhando em volta, atravessando em zigue e zague diante de sua mãe que tentava contê-lo.
Disse à minha amiga, enquanto sinalizava, para que esperasse que mãe e filho se adiantassem um ou dois passos:
-Deixa eles irem na frente que esse piá é meio retardado e eu não quero ele morrendo atropelado por que eu dei uma joelhada nele.
Ela me lançou um olhar fulminante, repleto de recriminação:
-Que horror, Rodrigo. Não se usa essa palavra. É uma criança... Especial.
Tive que me defender, o moleque não parecia portador de nenhuma síndrome de fato.
-Não foi o que eu quis dizer com "meio retardado". Não fiz um diagnóstico, só exercitei minha maldade.
O segundo olhar de minha amiga foi ainda pior que o primeiro, e nem sequer veio acompanhado de um discurso recriminador, apenas um "tsc" e o silêncio de quem desiste.
Mais feio do que usar expressões politicamente incorretas só mesmo admitir a própria falta de correção política.
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Hoje vi a meia mais sexy do mundo. Preta, cano médio, com a cabeça de um cachorrinho de pelúcia pendurada pelo lado de fora.
Lutei com bravura sobre-humana pra não me render aos meus instintos primevos e me jogar no chão beijando os tornozelos da moça que os usava enquanto rasgava minhas próprias roupas.
Esses fabricantes de vestuário de hoje em dia apelam, mesmo. Não sabem mais o que é pudor, francamente...

Tape o buraco.


Jofre enfrentava um dilema. Um dilema que, pra algumas pessoas, não teria importância, pro próprio Jofre, na verdade, não teria muita importância alguns meses atrás. Jofre era um sujeito prático. Não era de se deixar levar pelas emoções, guardava seus sentimentos atrás de muralhas fortificadas que lhe garantiam uma zona de conforto e privacidade à qual ele prezava demais.
Essa zona de privacidade e de conforto era onde Jofre transitava, onde ele interagia com o mundo, sempre de maneira segura e sóbria, guardando uma distância acadêmica de tudo o que poderia incomodá-lo.
Jofre não era uma má pessoa. Claro, era humano, e, como eu já disse outras vezes, isso não é um elogio. Mas guardava algumas boas características que lhe haviam sido ensinadas em casa, e outras que adquirira sozinho. Jofre não foi criado sob uma presença masculina marcante. Seu pai era muito jovem quando Jofre nasceu, tinha muitos amigos, vida social agitada, não era muito de querer estar em casa, pegar o filho no colo e esse tipo de coisa. Também não tivera uma relação das mais carinhosas com seu pai, o avô de Jofre, de forma que não tinha lá muita base para saber como se criava um filho. Dessa forma, Jofre cresceu sob alguma ausência de seu pai, sendo criado de forma muito mais participativa pela mãe, pela tia e pelas avós.
Jofre poderia ter crescido e se tornado uma rematada bichona, mas isso não aconteceu. Ele cresceu gostando de mulheres.
Ele poderia ter se tornado um revoltado, um desajustado, quiçá um criminoso em potencial, mas isso também não aconteceu. Em parte por que Jofre teve uma boa criação das mulheres de sua família, em parte graças á Stan Lee. Pois é, Jofre, desde cedo, gostava de quadrinhos. Capitão América, Homem-de-Ferro, Thor, Superman (OK, esse não foi criado pelo Lee, mas dá pra entender, certo?)... E esses ideais de heroísmo acabaram tendo papel fundamental na criação de Jofre e na formação de sua identidade. Claro, Jofre não cresceu achando que tinha super-poderes ou que iria enfrentar criminosos, tirando um pequeno acidente envolvendo uma roupa de super-herói aos seis anos (que resultou em um cicatriz que ainda resiste ao lado do nariz dele nos dias de hoje), Jofre não teve nenhum problema por conta dos gibis. E é grato á eles.
Enfim, talvez tenha sido a vontade de ser melhor, de ser mais parecido com seus ídolos de infância que tenham colocado o Jofre naquela zona de conforto. Ali, ele podia ser o mais neutro possível para ver o que se passava ao seu redor, tomar decisões e assumir lados. Era a vontade de ser alguém com quem se podia contar, e, claro, de se preservar um pouco de todo o sofrimento que as relações interpessoais inevitavelmente causam.
E Jofre, á seu modo, vinha se dando bem. Não era lá um grande modelo de comportamento nem nada que o valha, mas não era o mais vil dos homens. Agia com correção na maior parte do tempo, assumia suas responsabilidades, e aguardava pacientemente o tempo de poder trocar as responsabilidades daquele momento por outras.
Não tinha pressa.
Parte dessa paciência e dessa predestinação vinham, justamente, da tal zona de conforto, onde ele guardava seus sentimentos.
Mas aconteceu... Era inevitável. Jofre acabou gostando de alguém. Não de qualquer pessoa, mas alguém especial de fato, alguém com quem Jofre se importava, alguém com quem Jofre era capaz de se ver passando o resto da vida. Isso não era inteiramente uma novidade pro Jofre. Ele já estivera apaixonado antes. A questão foi que, mesmo já tendo estado apaixonado, Jofre ainda mantinha algumas portas fechadas, mantinha o dedo no buraco da represa. Conseguia guardar algumas coisas pra si, manter-se seguro, manter-se em sua zona privada, em seu perímetro de segurança. Até agora. Jofre deixou coisas transparecerem, vocalizou, com todas as letras, de todas as sílabas de todas as palavras como se sentia. E, ao fazer isso, abriu uma caixa de Pandora. Agora não param de sair coisas lá de dentro, e Jofre está confuso, não sabe ao certo como reagir, nunca foi a mais emocional das pessoas, e agora tem a sensação de que cada vez que abre a boca acaba revelando como se sente e desencadeando uma hecatombe de proporções bíblicas. Ele não sabe se está agindo diferente com as pessoas, se as pessoas estão agindo diferente com ele e nessa semana ele chegou a chorar assistindo Kill Bill.
Volume I!!!
Ele está desesperadamente tentando tapar aquele buraco de novo.
Mas fica cada vez mais difícil.
Alguém tem umas tábuas e pregos pra emprestar pro Jofre?

terça-feira, 21 de setembro de 2010

O Bom Sujeito


Leandro era a imagem do bom sujeito. Era um sujeito responsável, inteligente, educado.
Trabalhava muito, estudava com afinco, e mirava sempre em coisas boas para seu futuro. Leandro gostava de futebol, mas não era fanático, Leandro era católico, mas não era fanático, Leandro tinha um interesse saudável por coisas que não lhe faziam nenhum mal. Não fumava, não bebia em excesso, consumia pouco sal, lia dois livros por ano, pelo menos, gostava de cinema europeu, de teatro, de música clássica e de se exercitar ao ar livre. Leandro era asseado, não passava um dia sem tomar banho desde os sete anos de idade, passava talco nos sapatos depois de usar, escovava seus casacos e tinha gavetas separadas para as meias coloridas e as brancas.
Leandro era o genro que povoava os sonhos das amigas de sua mãe. Leandro, com sua gentileza, seu temperamento comedido, com sua boa postura, com seus cabelos cuidadosamente penteados e sua barba cuidadosamente feita sempre lembrando os aniversários de todos e dando parabéns ao mesmo tempo em que tecia um elogio ácerca da roupa, dos sapatos ou do novo corte de cabelos da interlocutora.
Era também o genro dos sonhos dos pais de seus amigos. Era respeitador, educado, trabalhador. Conversava sobre política econômica, mercado financeiro, futebol e religião, que eram temas espinhosos, mas sempre tratava todos os temas de maneira centrada e equilibrada, como se fosse neutro, de modo que os pais de seus amigos e os amigos de seus pais gostavam de debater com ele.
Leandro, ao contrário do que os mais maldosos diziam, não era gay. Ele era tão heterossexual quanto seus amigos, quiçá mais. Mas não tinha namorada desde os dezessete anos de idade.
"Por quê?" Se perguntavam seus amigos. "Por que?" se perguntavam suas colegas de faculdade. "Como pode?" se perguntavam em uníssono as mães e os pais de seus amigos e os amigos de sua mãe e de seu pai.
A resposta, invisível para eles, era incrivelmente visível para quem convivia com Leandro:
Ele era um chato. Para ser um chato de galochas não lhe faltavam nem as galochas, pois ele de fato as usava quando chovia.
Á despeito de todos os seus inegáveis predicados, Leandro era inacreditavelmente morno. Baunilha. Careta. Xaropão. Tanto que nenhuma das irmãs de seus amigos, nem das filhas das amigas de sua mãe e dos amigos de seu pai conseguiam ficar perto dele por muito tempo.
A solidão que a chatice rendeu à Leandro foi abraçada e disfarçada como introspecção. O fato de nenhuma mulher ser doida o suficiente pra querer passar tempo à seu lado foi igualmente abraçado e era encarado por todos como um indício de seriedade do sujeito que espera pela mulher certa, o que era um engodo. Leandro ainda acordava de madrugada após sonhar com sua namorada dos dezessete anos, Ruth, que o deixara por que ele era incapaz de tomar qualquer decisão que fizesse oposição á vontade de sua mãe, ou de seu pai, ou das convenções sociais. Leandro viu seu relacionamento com Ruth degringolar e foi incapaz de brigar, espernear ou lutar por ela. Foi incapaz de agarrá-la pelo braço e dizer que a amava ou de beijá-la de surpresa e prometer se esforçar para mudar. Leandro escolheu se recolher ao silêncio e observar enquanto a mulher da sua vida se afastava dele até não haver nenhum fio de esperança para o amor de ambos.
Claro, Leandro não morreria sozinho, eventualmente calçaria seu proverbial pé torto em um chinelo velho, mas até lá amargaria uma vida solitária e artificial cultivada ao redor de sua imagem de bom sujeito, feita para agradar à todos ao seu redor, reflexo de incertezas e inseguranças que o levaram a anular a própria personalidade em nome do que todos esperavam dele e de sua incontrolável vontade de agradar que o levou á agradar todo mundo, exceto, talvez, á quem ele mais quisera agradar em sua vida.

Pais X Filhos


Era domingo. Ele estava sentado no sofá, algo sonolento, vendo um GP de Fórmula Um quando o filho, uns oito, nove anos, entrou na sala, pé ante pé, parou ao seu lado, pigarreou e começou:
-Pai?
-Sim, filho?
-Por que eu me chamo Agamenon?
-Como assim "por que"? Por que foi o nome que a tua mãe e eu escolhemos...
-Tá, isso eu sei, mas por que vocês escolheram esse nome?
-Bom, isso foi por que nós queríamos um nome forte, que saísse do lugar comum, que fosse capaz de atrair coisas boas e importantes.
-Hmmm... E quem mais se chama Agamenon?
-Bom, teve esse rei grego, de Argos, eu acho, que foi um dos maiores reis de toda a Grécia. Ele se chamava Agamenon.
-E ele era bom?
-Era.
-Mas ele não era um político vil, um pai incestuoso e um manipulador que usou a tragédia do irmão pra tentar conquistar Tróia?
-Hã... Bom... Sim, mas... Mas ele era forte, era um rei guerreiro, e realizou muitos atos de bravura durante a guerra de Tróia...
-Mas ele não era um invejoso e um falastrão, e quase não colocou a campanha de Tróia à perder por ter insultado Aquiles, e por ter desonrado Crises?
-Crises? Mas quem é...
-Crises era um sacerdote de Apolo em uma vila perto de Tróia, Agamenon sequestrou a filha dele como espólio de guerra e se recusou á devolvê-la mesmo sob resgate, o que era uma grande desonra.
-Eu, hã, não acho que isso seja relevante... O comportamento do Agamenon é reprovável hoje em dia, mas naquela época era aceitável. Temos que ver as coisas sob essa perspectiva, agora vai brincar lá fora e deixa o papai ver a corrida.
-Tá... Só uma coisa... Eu entendi esse lance da perspectiva, mas se era pra eu ter um nome forte e que atraisse coisas boas, por que me deram o nome do cara que foi um político belicista, usurpador, arauto da guerra e que acabou assassinado pela esposa enquanto tomava banho porque tinha uma amante? Quer dizer, esse background não parece lá a melhor forma de atrair coisas boas pra minha vida, nem pra de ninguém. Tu e a mãe sentaram feio na graxa nessa, hein?
-Tá bem, parou, vai ficar três dias de castigo sem video game.
-Mas pai-
-Tá falado. Castigo! Irrevogável.
-OK, mas tu sabe que isso não vai me impedir de dizer pra Helena que o nome dela tá históricamente associado ao adultério e ao fomento de guerras.
-Opa, opa! Fica longe da tua irmã!
-Veremos... Tu trabalha de segunda à sexta. Em algum momento eu vou poder falar com ela.
-Tá, peraí... O que tu quer?
-Uma grana pra comprar o Blue-Ray do Homem de Ferro 2.
-Quanto é?
-Oitenta e nove e noventa.
-Reais?
-Claro que é reais, né, pai?
-Mas isso é um absurdo. Quase cem reais por um filme?
-Tem toneladas de material extra e comprando na pré-venda pela internet eu ganho uma camiseta de brinde.
-É muito caro. Fora de questão.
-Tudo bem... Vou ver se esqueço isso até amanhã quando a Helena chegar do colégio...
-Tá! Peraí... Toma. Mas eu quero ver o filme depois.
-Feito. Valeu, pai.
O pai se levantou e andou até a cozinha onde estava sua esposa, lendo o jornal e tomando café. Sentou perto dela e disse, segurando a sua mão:
-Aulas particulares de história, tu disse... um computador pra ele fazer os trabalhos, internet banda larga pra ele poder pesquisar, tu disse... Olha, me faz um favor: Me promete que se tivermos outro filho nos mudamos pra uma colônia amish pra criar ele...

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Rapidinhas do Capita


Leopoldo tinha um olho de vidro. Perdera seu olho de verdade em um acidente envolvendo um momento de descuido de sua mãe, um fervedor de leite e a curiosidade e audácia que permeia os atos de qualquer fedelho de sete anos de idade.
Perdeu o olho direito nesse acidente. Fora isso, quase sem cicatrizes. Vivia perfeitamente bem após se recuperar. Seu olho de vidro era bem feito. Do mesmo tamanho e cor do outro, apenas sem movimento e com um brilho ligeiramente diferente. Ninguém notava, exceto prestando muita atenção durante as conversas com Leopoldo, e ainda assim, tinham que estar perto.
Leopoldo, porém, cresceu com a impressão de que, o tempo todo, pelas suas costas, falavam de seus olho de vidro. Que o chamavam de nomes, que se referiam á ele como o esquisito caolho.
Uma vez quase teve uma séria altercação com o pai de um menino que cantarolava inocentemente "eu sou o pirata, da perna de pau, do olho de vidro, e da cara de mau" enquanto ele passava.
Leopoldo era assim... Desconfiado.
Quando conheceu Cláudia, e gostou dela, engrenou um quase namoro, que só se tornou namoro de fato após ele dizer pra ela, com todas as letras, que era caolho:
-Cláudia... Eu quero muito namorar contigo. Mas vou entender se tu não quiser por causa... Da minha deficiência.
-Deficiência?- Perguntou Cláudia.
-É... O meu olho.
-O que tem o teu olho?
-Ora, o que tem... Eu não tenho o olho direito... Esse da cicatriz. Eu perdi ele.
-Mas e... E esse aí? É postiço?
-Sim. Tu vai me dizer que não tinha percebido?
-Não... Sempre achei que fosse natural...
-Ah, não vem com essa Cláudia... Tu nunca reparou que ele é estático? Que eu olho pra um lado com o olho esquerdo mas o direito tá sempre virado pra frente?
-Nunca, juro...
-Não... Não precisa ser condescendente comigo, tá... Eu não sou tão complexado.
-Não tô sendo condescendente. Nunca tinha reparado, mesmo.
-Ah, pára com isso... Fala direito comigo...
Discutiram feio. Mas superaram. Cláudia disse que não ligava se o olho de Leopoldo era verdadeiro ou protético. Amava-o inteiro independentemente daquele detalhe.
Tornaram-se namorados... Depois noivos, depois marido e mulher, e então pais, eventualmente avós e até bisavós. Tiveram uma vida longa, repleta de felicidade, completude e geraram filhos que cresceram em lares de amor e paz e que, no seu tempo, construíram também lares de amor e paz para seus filhos crescerem.
Leopoldo morreu em casa, aos oitenta e seis anos de idade, dormindo em sua cama.
No funeral, enquanto recebia os pêsames de parentes de toda a parte, Cláudia confidenciou à filha mais velha:
-Teu pai era um homem maravilhoso, mas desde que o conheci aquele olho dele sempre me deu... sei lá... Uma agonia...
Pois é. Quem disse que amor baseado em uma mentira não gera frutos maravilhosos?
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Por que é tão difícil? Por qe as coisas não permanecem simples como já foram um dia? pensou ele.
Tempo bom, mas bom, mesmo, era aquele em que eu bateria na cabeça dela com uma clava, a arrastaria para a minha caverna e viveríamos felizes para sempre até eu morrer comido por um tigre dentes-de-sabre ou de velhice aos 37 anos de idade... Aquilo era a essência de uma relação bem sucedida baseada na simplicidade, ele concluiu.
Mas esse tempo acabou. Infelizmente, ele vive em tempos modernos repletos de tendências que mudam á cada vinte e quatro horas e onde o romantismo morreu pra maioria, mas ainda está ali, embalsamado na sala de outros e ninguém sabe ao certo como agir com relação á isso.
É por essas e por outras que ele anda desse jeito. É por não saber como agir.
Ou, pior ainda. Por saber como agir mas não poder. Ou por poder, mas não na totalidade de suas intenções. Por saber o que quer, achar que tem chance de fazer dar certo, mas não poder tentar.
E ele vai fazer o quê? Pedir extensão?
"Olha, me dá um tempo aí que eu prometo que engrena, valeu?"
Que tipo de verme desprezível faria isso? E ele vê, á cada dia mais palpável, o momento em que algo vai acontecer, a fila vai andar e ele vai desejar que ela seja feliz como sempre mereceu ser, e vai se amaldiçoar por não fazer parte disso.
E vai se tornar um velho sozinho que cria cobras, que se veste e fala como o imperador Palpatine, e que rasga a bola das crianças da vizinhança que caem em seu quintal e pendura elas como troféu no arame farpado sobre o muro de sua casa escura.
Será que é melhor sumir? Ele pensa...

Resenha Cinema: Karatê Kid


Sou cria dos anos oitenta. Desculpem. Cresci, mesmo, em uma época onde era maneiro usar blazer de ombreira, cores cítricas, mullets e essas coisas. Onde cinema conbinava com mulheres de seios desnudos, fortões ultra-violentos e solos intermináveis de saxofone. Mas não era só isso. Nos anos oitenta, vimos, entre outras coisas muito boas, alguns dos melhores filmes com temática teen (E não me refiro ao refrigerante de limão.) da história.
Estavam todos lá: Os Goonies, O Clube dos Cinco, A Garota de Rosa Shocking, Conta Comigo, o soberano Curtindo a Vida Adoidado... Todos filmes que mostravam diferentes fases e facetas da adolescência dos gringos, mas com dilemas dramas e outras viadagens tão caras á essa fase da vida em praticamente qualquer lugar do mundo.
Entre os filmes adolescentes memoráveis dos anos oitenta está um que não tinha as melhores atuações, nem a melhor produção, nem a melhor história, que podia ser sintetizada em "Adolescente encontra a saída de seus problemas na violência".
Era Karatê Kid, de 1984, que mostrava o jovem de ascendência italiana Daniel Larusso (Ralph Macchio) chegando à uma nova cidade, sendo surrado por karatecas chinelões liderados por Johnny Lawrence (William Zabka, um rapaz problema, depois de ser um bully do colegial em Karatê Kid ele foi pra faculdade incomodar o filho do senhor Mellon Rodney Dangerfield em Back to School), que recebe o treinamento do insuspeito senhor Miyagi (Pat Morita, gênio.) e se transforma em campeão de karatê.
Como hollywood passa pela grande crise criativa de sua história, uma fase em que o que se não é adaptação é remake, parecia questão de tempo até Karatê Kid receber o seu remake. Era natural. Quase obrigatório.
E, nesse ano de 2010, eis que surge um remodelado Karatê Kid.
As notícias iniciais não foram das mais animadoras:
No lugar de um adolescente da costa oeste se mudando pra califórnia, teríamos uma criança se mudando pra china (!?).
O Daniel-San da vez seria Jaden Smith, filho de Will Smith, e, ao invés de um nipônico velhinho senhor Miyagi, teríamos um mestre de kung-fu chinês interpretado pelo Jackye Chan.
... Sério. Não tinha como parecer pior á primeira vista.
Enfim, ainda sou fã de Jackie Chan, e confesso que fiquei curioso pra descobrir como seria a abordagem do filme ao trocar o adolescente vítima por um molequinho mais novo. Talvez fosse curiosidade mórbida, admito, mas ainda assim, cresci com Karatê Kid, e precisava ver com meus próprios olhos. E foi o que fiz ontem. E, após ver o filme, tenho que dizer:
Ficou ótimo. É melhor do que o original. E é muito difícil ouvir isso em se tratando de um remake, especialmente de alguém que, como eu, cresceu vendo o filme de 84.
Mas é verdade.
O Karatê Kid de 2010, que substitui Daniel-San por "Shyao" Dre Parker conta a mesma história, mas oferece algumas belas novidades.
Primeiro, claro, o básico, a história foi atualizada. A mãe de Dre precisa se mudar de Detroit para a China por conta da crise financeira que fechou a fábrica onde ela trabalhava. Dre é um menino negro vivendo na china, além da geografia existe a barreira da língua, da aparência física, toda a sua transição se torna mais pesada do que a do filme original.
O senhor Han de Jackie Chan tem uma carga dramática maior do que o sensei original, o filme, de certo modo, oferece á ele uma forma de redenção para o passado que o assombra.
A mãe, Sherry Parker, vivida com a competência habitual por Taraji P. Henson também tem mais peso, além de uma participação maior na história, e, com o perdão dos karatecas de plantão, vamos combinar que kung-fu é muito mais cool do que karatê.
De resto, está tudo lá. O treinamento não convencional (Sai encerar
á esquerda, encerar á direita, e entra tire a jaqueta. Pendure a jaqueta. Pegue a jaqueta. Vista a jaqueta.), belas paisagens, um interesse pseudo-romântico pro moleque, o mestre de kung-fu malvado que eu torço pra ver levar uma coça um uma eventual sequência, e o campeonato de kung-fu onde um golpe lindo fecha a conta.
Jaden Smith é um ator mirim esforçado (Já tem um espectro de emoções maior do que Keanu Reeves e Mark Whalberg, por exemplo.), e não compromete, Jackie Chan dá seu showzinho costumeiro, e o filme até arranca algumas lágrimas além de boas risadas, duas horas de diversão descompromissada e homenagens discretas ao filme original.
Em algum lugar, Pat Morita está sorrindo.

"-Então... Quantos alunos o senhor teve?
-Incluindo Dre?
-Sim...
-Um."

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Rapidinhas do Capita


Você pensava que daria certo... Achou que, se fizesse a sua parte, independente dos demais, que se tivesse firmeza de propósito e que se fosse o mais dedicado que podia ser naquele momento específico, e fosse preparando o terreno para ser mais e melhor no futuro, as coisas se encaminhariam naturalmente. Que as situações iriam se desenrolar sem pressa, mas rumando de maneira inexorável em direção á um bom desfecho, pois ese era o caminho que você pavimentava com esforço e com dedicação...
Acreditava que, não importavam os obstáculos no caminho, você seguraria a mão da pessoa amada e juntos, vocês superariam as mazelas vindouras...
Você acreditou que o amor supera á tudo, e que se uma pessoa lhe completa, você também completará á ela, e vocês, á despeito de todas as chances, irão convergir para um único destino, que é um ao lado do outro... Você acreditou em tudo isso por um única razão...
Você é um idiota.

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Fabiana e Ulisses estavam namorando sério haviam seis meses. No princípio tudo era festa. Ele e ela gostavam das mesmas músicas, dos mesmos filmes, não eram baladeiros, mas saíam eventualmente, em geral para ir á barzinhos e conversar com os amigos degustando petiscos e bebericando chopes cremosos e gelados.
Não tinha nenhuma esquisitice aguda, ele apesar de já ter trinta anos, gostava de jogar video game, e investia algum dinheiro nisso, uma esquisitice moderada.
Ela, apesar de ter só vinte e sete, colecionava bibelôs. Tinha vários em casa. Outra esquisitice moderada.
Se davam bem. Após algumas semanas quem os conhecia dizia que acabariam se casando, tamanha eram as afinidades entre os dois e a naturalidade com que pareciam se complemetar.
Mas algo aconteceu... Foi numa tarde nublada de sábado, os dois estavam sentados confortavelmente no sofá da sala do apartamento da Fabi assistindo Chuck na TV á cabo, quando Ulisses se levantou para pegar a pipoca que apitava no microondas, e acidentalmente derrubou um bibelô que estava sobre a mesinha de centro.
Ele se desculpou, e, preocupado, começou a juntar os cacos fazendo cara de enterro.
Fabi se levantou, também, ajudando-o, e disse que não havia problema, que era só um enfeitezinho.
Foi quando Ulisses, com a cabeça do tal bibelô na mão, disse, sorrindo:
-Pelo menos era o enfeite mais feio dessa tua coleçãozinha doida.
Fabiana sorriu sem dizer nada. E Ulisses foi apanhar a pipoca. Enquanto rasgava o pacote para colocar as pipocas em uma tigela, ouviu um ruído atrás de si. Ao se virar, deparou-se com Fabi, segurando uma faca.
Foi o cheiro que alertou os vizinhos, várias semanas mais tarde, de que algo estava errado na casa de Fabi.
A polícia levou quase duas semanas para achar todos os pedaços de Ulisses, espalhados pelo apartamento inteiro.
Ela foi presa, todas as evidências apontavam para ela, mas ela jamais admitiu o crime.
Ninguém soube, mas não fora o fato de Ulisses ter quebrado seu bibelô favorito, tampouco a ofensa dele á peça, foi a expressão "dessa tua coleçãozinha doida".
Naquele momento, Fabi, que sempre supôs ser compreendida por Ulisses, percebeu que não era. Percebeu que enquanto ela achava perfeitamente normal ele jogar video game, apesar da idade, ele apenas tolerava a maluquice dela com relação aos bibelôs.
Aquele choque de realidade, aquela quebra tão abrupta de confiança, foi o que transformou a Fabi.
E, analizando friamente, ela meio que teve razão.
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-Iuri, tu me ama?
-Que pergunta é essa, minha coelhinha?
-Eu quero saber, ué...
-Sua boba... Tu sabe a resposta...
-Não sei não, fofucho... Diz pra mim... Tu me ama?
-Ora, meu anjinho, minha lindinha... Tu sabe a resposta...
-Fala pra mim, pituquinho... Eu quero ouvir...
-Sua bobinha linda... Eu não preciso dizer.
-Precisa, sim, amô-or... Diz pra mim... Tu me ama?
-Que fofura... Que amorzinho que tu é...
-Pára de enrolar, Iuri... Tu me ama, ou não?
-Amo, sim, senhora.
Autoridade: O segredo de uma boa relação.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

O Plano


O Carlinhos passou conversando animadamente com a Lourdes para espanto do Sávio e do Eduardo.
O Carlinhos, um metro e sessenta e três de altura, cabelo cortado á faca, óculos fundo de garrafa, bermuda xadrez, camiseta com o símbolo do Flash no peito carregando um calhamaço de livros. A cara repleta de espinhas, e um daqueles bigodes que lembram jogo de vôlei, com meia dúzia de fios pra cada lado.
A Lourdes, não era uma adolescente qualquer, era um conglomerado. Podia-se picar a Lourdes em pedacinhos e fazer duas meninas interessantíssimas. E a Lourdes não era uma gorducha, não. Ela tinha volume acumulado nas regiões certas. Quadris, busto, coxas. Era, como já foi dito, um conglomerado. Entre os rapazs dizia-se que Lourdes não tinha carteira de identidade, mas escritura. Seus cabelos ruivos e seus olhos verde-escuros casavam com seu corpo gloriosos criando uma imagem que fazia moleques nos calor da ebulição de seus hormônios chorarem antes de dormir.
E lá estava Lourdes, praticamente uma ode á beleza e ao desejo, andando alegremente ao lado do Carlinhos. O Carlinhos... Uma ode á... Á palidez e ás bibliotecas do mundo, talvez, daí a surpresa de Sávio e Eduardo, que não puderam crêr no que acabaram de ver. Fosse época de provas e fosse uma outra gostosona, talvez eles pudessem acreditar que tratava-se de um embuste. Que a moça em questão estivesse seduzindo o ingênuo Carlinhos para que ele lhe prestasse serviços intelectuais. Não era, porém, o caso ali.
Primeiro por que Lourdes, á despeito de sua gloriosa estampa, não era uma biscate burra, ou uma preguiçosa. Ela era, na verdade, uma aluna acima da média, que colecionava notas nove e dez e que ficava preocupada quando recebia um oito, logo, não precisava se valer desse tipo de expediente.
Segundo por que Carlinhos era, de fato, um nerd. Na acepção da palavra. Carlinhos devorava quadrinhos e livros em quantidades industriais, sabia tudo de computadores, colecionava praticamente tudo que havia pra colecionar, era anti-social, tímido, o mais próximo que chegava de praticar esportes era jogando boliche ou golfe no Nintendo Wii (Baseball e tênis ele achava cansativos demais.), enfim ele era, sim, um nerd, mas estava á quilômetros de distância de ser ingênuo. Longe disso. Carlinhos não era mau, claro, mas possuía uma malícia e um sarcasmo todos particulares e dos quais sabia fazer uso.
Não era, então, sujeito de ser feito de marionete por, bem, por uma biscate preguiçosa e burra.
Mas, ao mesmo tempo, Carlinhos não tinha predicados físicos que justificassem o interesse de Lourdes nele. Sávio e Eduardo conheciam Carlinhos, ele era um sujeito legal se tu é um moleque de dezesseis anos, mas sua persoinalidade também não era lá das mais atraentes, especialmente pra alguém que, como Lourdes, tinha oitenta e sete por cento dos representantes do gênero masculino em idade reprodutiva da escola babando por ela.
Simplesmente não fazia sentido. Sávio e Eduardo não conseguiam entender o que se passava. As coisas só pioraram quando, na saída da aula, o Carlinhos deixou o colégio DE MÃOS DADAS COM A LOURDES!
Imediatamente Sávio e Eduardo correram para contar aos amigos o que havia acontecido, e, após muito tempo de confabulação, chegaram á uma teoria que lhes servia:
Lourdes estava namorando com Carlinhos, sim. Mas era por interesse.
Sendo a moça prática e inteligente que era, Lourdes resolvera que já era momento, aos dezesseis anos, de começar a planejar seu futuro. Ela queria estudar e ter um bom emprego, claro, mas seria ainda melhor se ela estivesse casada com um homem que fosse ser tão bem sucedido quanto ela. Um sujeito que pudesse ser o próximo Bill Gates, ou o próximo Steve Jobbs, um nerd desprovido de carisma, mas inteligente pra danar e que certamente fosse realizar alguma coisa de sua vida ao invés de morar no porão da irmã mais velha enquanto tentava a carreira de lutador de Vale Tudo.
Era óbvio. Lourdes estava pensando em evitar um futuro apocalíptico ao estilo Idiocracy, procriando com um sujeito que era inteiro cérebro e que lhe daria rebentos que seriam, também, inteligentes pra caramba.
Era um plano diabólicamente perfeito, o da Lourdes. Mas tinha uma falha que imediatamente Sávio, Eduardo e os outros perceberam:
Steve Jobbs e Bill Gates ficaram milionários após uma adolescência e início de idade adulta onde, como bons nerds que eram, provavelmente não viram nem sombra de mulher, especilmente de uma do calibre de Lourdes. Foi a abstinência sexual e a falta de amor e afeto românticos que transformou os nerds adolescentes em gênios. Isso não aconteceria com Carlinhos, pois ele seria bombardeado com o amor, o afeto e, (Bastardo sortudo.) com o sexo de Lourdes, e isso o desviaria do caminho, e ele seria apenas outro otário quando ficasse mais velho.
Lourdes talvez percebesse isso á tempo de desmanchar a relação funcional com Carlinhos, talvez não. E, se ela não percebesse até ser tarde demais, o que aconteceria?
Bem, os conspiradores chegaram á conclusão de que ela provavelmente perceberia o problema antes de engravidar do nerd fracassado, e que então se divorciaria dele e procuraria outro homem que pudesse ser bem sucedido. Talvez alguém que ela conhecesse... Talvez um ex-colega de escola.
Todos abraçaram essa teoria. Lourdes estava com Carlinhos por interesse. O plano dela não daria certo. E, talvez, um ex-colega igualmente inteligente e bem sucedido pudesse colher os frutos do fracasso do plano da musa.
Todos começaram á se dedicar com afinco aos estudos. Não por que quisessem ficar com Lourdes depois que ela se separasse de Carlinhos, não (Pelo menos não todos.), mas talvez, quem sabe, uma outra menina igualmente deliciosa pudesse ter uma ideia semelhante á de Lourdes. Se fosse o caso, era bom estar no caminho certo. Talvez não se tornassem novos Bill Gates ou Steve Jobbs, mas, quem sabe novos Sílvio Santos, ou algo que o valha? Não custava tentar.
Alheios á tudo isso, Carlinhos e Lourdes continuaram saindo juntos, e eventualmente namorando, e casando. O que nenhum dos moleques jamais ficou sabendo, foi que o afeto de Lourdes por Carlinhos era genuíno, e não motivado por interesses excusos, e que ele, á despeito de ser um nerd anti-social e sem lá muito carisma, era romântico e dedicado como só aqueles que não se apaixonam uma vez por semana sabem ser.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Curtinha: Family Guy Something Something Something Dark Side


Ontem assisti no canal FX o último episódio da oitava temporada de Family Guy, ou Uma Família da Pesada, o desenho que mostra o cotidiano dos Griffin, uma família que faz os Simpsons parecerem normais.
O episódio final desse oitavo ano foi uma sátira ao segundo episódio da saga Star Wars, O Império Contra-Ataca intitulado Something Something Something Dark Side, pra quem não sabe de que se trata, esse episódio, á exemplo do que já havia acontecido na sexta temporada, no especial The Blue Harvest (que reproduzia Star Wars- Episódio IV: Uma Nova Esperança), faz parte dos especiais de uma hora de duração onde os Griffin assumem o papel dos personagens das trilogia de George Lucas, com isso temos o filho do meio, Chris assumindo o papel de Luke Skywalker, Peter, o patriarca se torna Han Solo, Lois, a esposa, vira a princesa Léia Organa, o cão Brian se torna Chewbacca e o bebê esquisitão Stewye enverga o manto de Darth Vader, mostrando, de fato, a história da saga Star Wars, mas recheando a aventura espacial com o humor non-sense (e por vezes ofensivo para os mais sensíveis) e as inúmeras referências á cultura pop que se tornaram algumas das marcas registradas do desenho.
No episódio de ontem, por exemplo, o treino de Luke (Chris) com Yoda no sistema Dagobah foi intercalado com imagens do treinamento de Ivan Drago (Dolph Lundgren) em Rocky IV, emprestando, inclusive a trilha do longa do boxeador.
Sobra pra todo mundo, de George Lucas e o velado racismo da trilogia Star Wars (Lando Calrisian é o único cara negro da galáxia.), até Tom Selleck e sua participação super-especial, passando por De Volta Para o Futuro.
Seth McFarlane, produtor do desenho e voz de Peter, Stewye e Brian é fã de Star Wars, isso fica evidente para quem acompanha o desenho, e o ator Seth Green, dublador de Chris também, como já demonstrou no programa Frango Robô, então é bacana ver o carinho que eles têm pelos filmes nesses episódios que, apesar de homenagens, não abrem nenhum precedente, nem poupam o Império Galáctico de Lucas de todas as piadas que fazem o sucesso da série.
A oitava temporada de Family Guy terminou ontem, o que significa que será inteira repetida á partir do próximo domingo, então, em alguns meses, Something Something Something Dark Side irá ser reprisado.
Se você não tem o canal FX na sua TV á cabo nem paciência pra esperar a Globobo passar o episódio, alugue na sua locadora, se você curte Family Guy é obrigatório, se você curte Star Wars é obrigatório, se não curte nenhum dos dois procure um médico.

"-Oh, vamos lá, Luke, venha para o Lado Sombrio, é bem legal.
-Bem, eu não sei... Quem está nele?
-Bem, um... Tem eu, o Imperador, esse cara o Scott, você vai conhecê-lo, ele é demais!"

Saída de Cinema


O Jorge sentou no McDonald's cm sua namorada, a Dyrce. Haviam acabado de assistir Star Wars: Episódio I - A Ameaça Fantasma. Ele parecia um moleque faceiro, carregava um brinde do Mc-Lanche em forma de Jar-Jar Binks. Ela parecia meio sonolenta.
-E aí, amor? Gostou? -Ele perguntou, empolgado.
-Arram, legal... - Ela respondeu sem lá muita convicção.
-Que bom que tu gostou... Sabe, quando eu tinha, sei lá, uns quinze, dezesseis anos, vi Guerra nas Estrelas no cinema...
-Que que é Guerra nas Estrelas?
-Como o que que é? É isso que a gente acabou de ver, ué.
-Mas isso não é Star Wars?
-É a mesma coisa... Star Wars é Guerra nas Estrelas em inglês, entendeu?
-Ah...
-É... Fiquei de boca aberta quando vi o Episódio IV.
-Mas como que tu viu o episódio quatro quando era moleque se a gente viu o episódio um agora?
-Hã... É que assim: O diretor dos filmes não tinha como contar a história do episódio I, II e III com a tecnologia dos anos setenta, então, contou a história dos episódios IV, V e VI, que já podiam ser contadas com o recurso que tinha disponível naquele tempo.
-Mas peraí, peraí... Tu era adolescente nos anos setenta?
-Eu? Não, né, mulher? Nasci em 81, como é que eu ia ser adolescente nos anos setenta, criatura?
-Mas tu disse que viu Star Wars no cinema quando tinha dezesseis anos, pombas.
-Foram versões remasterizadas, amor. Em 97 o George Lucas lançou versões com áudio e imagem aprimoradas dos filmes dos anos setenta. Acrescentou alguns efeitos digitais melhorados e mudou umas coisinhas...
-Ah... E esse Jorge Lucas é o cara que-
-George Lucas, G-E-O-R-G-E. - Corrigiu ele.
-Tá, esse Lucas aí, é que é o cara que dirigiu os filmes dos anos setenta e agora vai continuar a história?
-Continuar, não. Ele contou as três últimas partes nos anos setenta, e agora ele está contando as três primeiras.
-Ah... Então, quer dizer que depois de ver esse, e mais dois, eu ainda vou ter que ver outros três?
-Tu não "tem" que fazer nada. Tu vê se tu quiser.
-Ah, fácil pra ti falar. Agora eu já comecei á ver, tenho que saber como termina, ora, bolas.
-Eu ainda não acredito que tu nunca tenha visto Guerra nas Estrelas...
-Visto o quê?
-Star Wars, Dyrce, eu não acredito que tu nunca tenha assistido Star Wars.
-Pois é... De repente até vi e não lembro...
-É cheio de personagens icônicos. Alguns tu até já viu nesse de hoje... Mestre Yoda, Obi-Wan Kenobi... Também tem o Boba Fett, o Han Solo, o Darth Vader...
-Ah, esse eu acho que sei qual é! Um homem de preto, com cara de caveira e que parece que tem asma?
-É... Eu não colocaria nesses termos exatamente, mas acho que dá pra dizer que é isso...
-Ah, eu sei qual é... Era horrível...
-Quê?
-É, uns efeitos medonhos, uma princesa feia, não tinha o Harrison Ford?
-Tinha...
-É... Ele até que era bonitão quando era jovem, mas ainda assim, filminho horroroso. Ainda bem que lembrei, imagina ter que ver de novo...
-Hm...
-Dá pra acreditar na quantidade de gente que tinha no cinema? Pra ver isso? Filme horroroso. A Natalie Portman perdida naquele roteirinho sem vergonha, coisinha espacial com navezinha e espadinha de laser e ...
Enquanto Dyrce falava, o Jorge ergueu a mão direita acima do nível da mesa, mais ou menos na altura do ombro e começou á fechá-la lentamente enquanto olhava pra Dyrce sem expressão no rosto.
-Jorge? Que é isso?
-Não, não, nada. É que, ás vezes, a tua falta de fé me perturba...

Open-Bar


Ele olhava para ela, do outro lado do bar. Ela, linda. Cabelos pretos, longos, escorridos por cima de ombros arredondados e costas de aparência flexível. De olhos felinamente castanhos e de lábios grandes e convidativos. Ela com sua blusa de lurex prata e suas calças negras combinando com as sandálias de salto obscenamente alto, ali, parada no bar, sugando do canudinho mais sortudo do mundo um drinque carnavalescamente colorido que seria centro das atenções não estivesse empalidecendo diante da beleza de sua companheira de balcão, linda, produzida e atraindo os olhares gulosos de homens por todo o ambiente.
E ele não tirava os olhos dela. Ele, com seus cabelos escuros, barba de alguns dias, óculos de grau e camiseta com a efígie do Boba Fett sob um blazer escuro e meio surrado, calças jeans e tênis. Bebia direto da lata uma Coca-Cola que nem diet, nem light, nem enriquecida com vitaminas era. Lata tradicional, vermelha. Ele e seu refrigerante eram o oposto dela, totalmente sem produção, totalmente comum. Quiçá algo repelente, especialmente para uma mulher linda como ela.
Ele a observara durante as últimas duas, talvez três horas daquela noite. Por alguma razão ele tinha a impressão de que ela, assim como ele, de maneiras diferentes, eram estranhos naquela festa. Era o lançamento de um programa de TV, um reality show.
Ele caíra ali por acaso. Trabalhava em uma empresa que fornecera equipamentos para algumas das provas humilhantes pelas quais os participantes do show teriam de passar, a empresa ganhara convites para o lançamento, e eles foram sorteados entre os funcionários. Acabou que ele, abstêmio de carteirinha, acabou a sexta-feira com um cobiçado convite para uma festa onde lia-se "Open Bar". Jamais gostara desse tipo de festa. Pra ele fetas "Open Bar" eram bocas-livre que atendiam unicamente aos anseios de eventuais bebuns mão-de-vaca e alcoólatras declarados. Pra ele, "Open Bar" era ambiente de mulheres desfrutáveis e homens sem moral onde era praticamente impossível conhecer uma pessoa interessante, e, mesmo se, por um inimaginável acaso, isso acontecesse, provavelmente a pessoa em questão seria interessante apenas quando alcoolizada, e sóbria seria uma tremenda chata.
Enfim, acabou indo à festa por por mórbida curiosidade acadêmica e dever profissional de representar a empresa onde ganhava seu sustento.
Desde que chegara á tal festa, encostara-se no balcão, onde sentia-se menos deslocado do que no meio da pista de dança ou nas mesas onde fotógrafos produtores e pseudo-celebridades circulavam tentando obter algum holofote. Ele escorou-se pacientemente e pediu o refrigerante que patrocinava o evento, e foi então que ele a viu. Do outro lado do balcão, dona de uma sobriedade e discrição que destoavam de todo o alarde e artificialidade do evento, a moça linda lá do início.
Ficou ali, confortavelmente, a observando com curiosidade e gosto, estudando seus movimentos comedidos e admirando sua graça.
Viu, divertido, ela se desvencilhar de um sujeito rude, que se aproximou como se fosse o dono da festa e passou o braço por sobre seus ombros nus. Percebeu a decisão de seus gestos quando removeu a mão do intrometido de sobre sua pele e pediu que ele se afastasse dizendo que não estava interessada.
Gostou também quando um distinto sujeito grisalho ofereceu-lhe um drinque, que ela recusou de forma circunspecta e educada.
Viu um jovem se aproximar hesitante e tentar puxar conversa, perguntando se ela sugeria algo para ele beber, e riu ao ouvi-la dizer que seria mais conveniente ele perguntar ao bartender.
Chegou á sentir uma ponta de desapontamento quando um sujeito vestindo uma camisa de seda amarela brilhante aberta até quase o umbigo, calças jeans rasgadas e botas de caubói conversou com ela durante quase cinco minutos, mas sorriu com certo alívio quando ela se desculpou pedindo licença para ir ao toilette e só voltou depois de o sujeito ir embora.
Chegou a pensar que talvez ela e ele tivessem mais em comum do que a escolha do lugar onde se sentaram e a esnação de inadequação que ambos passavam de maneiras distintas. Pensou que, quem sabe, ela, como ele, se sentisse um pouco deslocada em meio á multidões. Que fosse algo melancólica, mas nem por isso mal-humorada ou depressiva, e que apreciasse estar só de vez em quando, mas não fosse uma solitária, e que talvez, apenas talvez, ela pudesse se interessar por alguém que, á primeira vista, não parecesse lá muito interessante.
Imaginou essa possibilidade e sorriu enquanto pensava nela. Mas logo foi trazido á tona por uma verdade que, de seu ponto de vista, parecia inatacável:
Ela era uma moça linda, que brilhava á tona de toda a mediocridade daquela festividade idiota e tola. E ele era apenas um nerd de aparência ligeiramente abaixo da média que se divertia colocando os DVDs, gibis e CDs em ordem alfabética enquanto planejava que filme veria no cinema naquela semana. Nada tinham em comum, pensou resignado.
Levantou-se para ir embora, já passava das onze e meia e ele poderia nadar no refrigerante que bebera até ali. Remexeu os bolsos pra apanhar a carteira e depositar algum dinheiro no jarro de gorjetas dos garçons e bartenders.
Enquanto colocava uma modesta nota de dez no jarro, percebeu que, do outro lado do balcão, o alvo de suas atenções a noite toda, fazia o mesmo. De pé, colocava uma nota de dez no jarro do lado onde estava.
Ele sorriu balançando a cabeça.
Dirigiu-se á saída, distraidamente, parou para olhar um pôster do programa que motivara a festa, e, quando virou-se, esbarrou com ela.
A morena linda do outro lado do balcão. Com o choque, a bolsa dela caiu de suas mãos, mas ele, em um gesto rápido, agachou-se e aparou o objeto enquanto dizia um tímido "opa", ao mesmo tempo em que derrubava as próprias chaves e carteira.
Endireitou-se timidamente, devolvendo a bolsa e se desculpando.
-Desculpa, desculpa, mesmo. Foi sem querer, eu sou um desastrado completo.
Agachou-se para apanhar seus pertences do chão, sentindo o rosto aquecer-se de vergonha.
-Não tem problema. -Ela respondeu candidamente, também agachando-se e o ajudando á recolher suas coisas.
Entregou-lhe a carteira, ambos se levantaram.
Ele olhou pra ela por um instante, como se procurando algo sagaz para dizer, mas ela foi mais rápida:
-Boa noite. Que a Força esteja com você. -Ela disse dando uma piscadela, para então andar em direção à saída, não sem antes virar a cabeça e dar-lhe um sorriso doce.
Ele levou uma fração de segundo para entender a alusão dela, quando entendeu, iluminou-se! Ela reconhecera o Boba Fett em sua camiseta como personagem de Star Wars.
Ao pegar a carteira para guardar no bolso, percebeu, sob ela, um cartão.
No cartão lia-se o nome Edith, e tinha dois telefones impressos e mais um escrito á caneta com uma caligrafia segura.
Naquele instante ele soube. Por um desses inomináveis acasos do destino, conhecera a mulher de sua vida em uma festa "Open Bar".

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

No ônibus.


Dois amigos conversando entraram no ônibus. Jovens, falavam alto, alheios aos demais passageiros. Sentaram e seguiram no papo que haviam começado fora do veículo.
-Então tu nunca... Sabe? Nunca?
-Não.
-Putz...
-Nah... Nem é tão ruim. Não foi falta de oportunidade, nem nada. Só... Sei lá.
-Mas nunca... Nem uma vezinha?
-Nem.
-Caraca... Mas como que... Como que tu faz quando...
-Ah, tem outras formas. Eu saio, corro, leio um livro.
-Mas não é a mesma coisa.
-Ah, claro que não... Quer dizer... Acho que não. Não sei.

Olhares maliciosos dos passageiros próximos. Comentários cochichados.

-Cara, sério. Não sei como tu consegue. Eu, se passo, sei lá, uma semana sem, na sexta-feira tô me remoendo inteiro, fico até trêmulo.
-Ah, ah, ah, ah. Pô, tanto assim?
-Claro. É uma das melhores coisas da vida. Não tem... Pô, tem pouca coisa melhor.
-É... Parece bom, mesmo. Já vi outros fazendo e-
-Mas não é a mesma coisa. Ver é bom, mas estar lá, se envolver... Putz. É coisa de louco.
-É... Pelo que eu ouço deve ser.
-E tu nunca nem teve vontade?
-Ah, claro que tive, né? Na puberdade, nossa, muita vontade. Todos os meus amigos lá, o tempo todo, alardeando como era bom, como eram bons nisso... Mas sei lá... Superei.
-Puxa... Tá aí uma coisa que eu jamais iria querer superar. Tu nunca nem chegou perto de...
-Cheguei, claro. Mais de uma vez. Uma vez tava começando com um primo, mas a tia chamou a gente pra almoçar e não rolou.

Risinhos contidos daqui e dali, uma velhinha se remexeu incomodada em seu assento.

-Bom, se tu quiser, a gente pode tentar.
-Sério?
-Claro.
-Mas tipo... E se eu for muito ruim?
-Olha, não vou te mentir. Nas primeiras vezes tu vai ser péssimo. Talvez não goste. Mas tem que insistir. Eu vou estar lá, vou ser paciente contigo e a gente se entende.
-Bom... Acho que eu não posso morrer sem experimentar, né?
-Não pode e não deve.
-Então tá. Quando?
-Sexta, pode ser?
-Pode.
-Tá, vou preparar tudo.
-Preciso... Sei lá. Levar alguma coisa?
-Não, não, eu me encarrego de tudo, só relaxa e descansa, que na sexta o pessoal e eu vamos te deixar de língua de fora.

A velhinha incomodada soltou um "barbaridade." bem audível.

-Credo.
-Sério, não acredito que tu nunca jogou futebol.
-Pois é...

Alívio geral no coletivo.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Rapidinhas do Capita


Pensamentos de um fã de Kevin Spacey:
Ruim, mas ruim mesmo, é pensar em como seria bom ser Verbal Kint / Kaiser Soze, ser capaz de se passar por um looser completo mas ser, na verdade, um sujeito á ser temido. Mas ter, em seu íntimo, a certeza de que de David Gale tu não passa, sabe como é? Aquela sensação de que tu pode ser alguém com alguma pequena vocação pra grandeza, mas com tantas falhas de caráter que só pode alcançar o papel de mártir.
Aí, pra acabar contigo, alguém que tu ama te diz sem palavras que tu é o Quoyle, um capacho emocional dos mais surrados e desprovidos de perspectiva.
Mas tudo nessa vida tem um lado bom:
Tu ainda pode usar todo o teu dom de ficar fulo e se transformar em Lester Burnham. Ah, ela que espere só pra ver...

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Tu passou aquela semana inteira curtindo lembranças juvenis, pensando em como era bom no teu tempo de guri, mas aí, te olhou no espelho e pensou "Por Deus! Eu ainda sou jovem! Não posso ficar agindo como se fosse um velho, pois não sou!"
Comprou um uniforme de futebol inteiro da Adidas, tudo bonito, combinando. Flamantes e novas chuteiras douradas, e foi pro parque bater uma bolinha.
O vento soprou no teu rosto enquanto tu andava com decisão até o parque. Tu não demorou á se enturmar com outros sujeitos mais ou menos da tua idade que esperavam ter número o bastante pra começar uma partida.
Participou ativamente da escolha dos times e identificou-se orgulhosamente como "terceiro homem de meio de campo" quando perguntaram a tua posição.
Choveu, mas ninguém ligou. Tu, muito menos, correu com galhardia pelo campo embarrado enquanto agradecia aos céus pela chuva que te molhava os cabelos e te batizava novamente.
Era um jovem, um guri de vinte anos! Correu, chutou, deu carrinhos e trombadas nos adversários. Comemorou o gol que o avante fez com um lançamento teu com os indicadores apontados para a chuva que caia como se fosse um Kaká mais raçudo.
Rejuvenescera, teve certeza.
Rejuvenescera tanto que, depois do jogo foi pra casa, no caminho comeu um generoso cachorro quente com tudo á que tinha direito. Chegou, tomou banho e saiu para a noite. Não queria se apegar em ninguém, apenas olhar o movimento, ver as moças bonitas e encher a cara como se tivesse dezessete anos.
Chegou em casa ás quatro e meia da manhã, despiu-se e dormiu de cuecas, parcialmente coberto por um lençol fino. Rejuvenescera. Dizia para si mesmo antes de ser acolhido pelo cálido abraço do sono. Rejuvenescera.
A manhã seguinte o desmentiu. Talvez tu não tivesse, de fato, remoçado.
As dores muculares do esforço excessivo confundiam-se com as da gripe. A dor de cabeça tanto podia ser um sintoma de um resfriado quanto da ressaca.
Acordou-se encolhido, enjoado, enrolado no lençol que usara para cobrir uma das pernas na noite anterior, saltou da cama, correu em direção ao banheiro e vomitou. Pensou em tomar um chá, mas não tinha nenhum em casa. O que faria? Sairia para comprar algo no estado lamentável em que se encontrava?
Tu ligou pra tua mãe e pediu que ela fosse cuidar de ti por que estava doente.
Ela foi. Te deu canja de galinha e guaraná fora do gelo. Te deu um beijo na testa e te cobriu com um edredon quando tu dormiu lá pelas sete da noite.
Com mil diabos, tu não estava errado, de fato rejuvenescera... Rejuvenescera demais, voltara a ter onze anos.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Resenha DVD: Fúria de Titãs


Foi na semana passada, na sexta-feira, que eu finalmente assisti Fúria de Titãs, remake do clássico britânico de 1981 repleto de stop-motion e que alegrou muito moleque, incluindo eu, em tardes regadas á toddynho e biscoito champagne.
Foi apenas por falta de tempo que eu perdi o filme quando ele esteve nos cinemas, curto mitologia em geral, especialmente a grega, e sabia que tinha alguns nomes legais no elenco do filme.
O Perseu da vez seria Sam Worthington, o Jake Sully de Avatar, que eu ainda acho que vai ser o Schwarzellone (Meio Schwarzenegger, meio Stallone) de uma geração, Mads Mikkelsen, o Le Chifre de 007-Cassino Royale, além de Ralph Fiennes e Liam Neeson, e seria dirigido por Louis Leterrier, o mesmo dos bacanas Cão de Briga e O Incrível Hulk.
Então, tínhamos um bom elenco, um diretor com boa mão pra ação, e uma premissa bacana que mudava vagamente a história do filme de 81.
Nessa nova versão temos Perseu, uma criança encontrada pelo pescador Spyros (Pete Postlethwaite) em um esquife jogado no mar junto ao cadáver de sua mãe. Spyros adota o menino e o cria como seu filho. Já adulto, Perseu vê, impotente, o deus Hades matar sua família adotiva, é recolhido por soldados de Argos e levado ao rei da cidade, que declarou "guerra" aos deuses do Olimpo.
O desrespeito dos nobres coloca Argos na mira de Hades, que convence Zeus á lhes dar uma prova de força na forma do Kraken, o último Titã.
Hades ordena, então, que Argos escolha entre sacrificar a princesa Andrômeda, cuja beleza é comparada à dos deuses, ou sofrer a fúria do Kraken, ao mesmo tempo em que identifica Perseu como filho bastardo de Zeus.
Perseu, então, se dispõe á encontrar um modo de derrotar o Kraken, junta um grupo de soldados e caçadores e parte rumo ás bruxas estigeanas, que após uma negociação meio brusca, contam que a única forma de acabar com a ameaça é usando a górgona Medusa, monstro cujo olhar transforma tudo em pedra, e que vive além do rio Styx. Entre uma parada e outra, o grupo ainda tem que lidar com Calybos (Jason Flemyng), antigo rei transformado em monstro por desonrar Zeus, escorpiões gigantes, harpias e outros monstros.
Pois, então, parecia que não podia dar errado, não é?
É... Mas não rolou.
Começando pelo roteiro, que tem mais furos que uma rede, passando pelo elenco, péssimo no filme, e terminando em Leterrier, diretor que parece focar na ação e esperar que o elenco se dirija sozinho, Fúria de Titãs taxia pela pista mas jamais decola, mostrando um protagonista meio frouxo no papel de herói relutante, com um grupo de companheiros que parece aceitar qualquer um que for idiota o bastante para querer ir junto (Sério, o modo como membros vão se unindo ao grupo de Perseu é constrangedor) em uma missão que, á certa altura, nós até esquecemos pra que era mesmo.
O único coadjuvante com algum peso é o Draco de Mikkelsen, os demais estão ali apenas pra morrer, e, como têm pouco tempo de tela, não deixam saudades, nem a homenagem discreta ao filme original na forma de corujinha mecânica Bubo, perdida em um baú de armas ajuda.
No final das contas temos um filme de ação com efeitos especiais legais uma ou duas tiradas engraçadas e algumas lutinhas bem coreografadas que desperdiça o talento de um elenco de primeira e uma oportunidade como poucas de criar um novo clássico.
No caso desse remake, a bolacha champagne e o toddynho são melhores do que o filme.

"Deixe que eles saibam que homens fizeram isso."