Pesquisar este blog

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Salto


Não tem mistério - Ele pensou. -É só pular. Eu pulo e caio na água, afundo um pouco, claro, vou estar caindo, mas aí, o meu colete, que flutua, vai me puxar de volta á tona. Não tem mistério.
Ele pensou isso, mas continuou parado, com seus calções floreados, a camiseta justa na barriga flácida sob o colete salva-vidas laranja e verde-limão, encarando o rio com cara de quem não tinha lá muita certeza do que iria acontecer á seguir. Atrás dele o instrutor repetia o que ele havia acabado de dizer, em pensamento, á si mesmo.
-Aí tu vai afundar um pouco, é água, mas teu colete vai te puxar de volta pra superfície. Não tem mistério.
Ele virou parcialmente o rosto, sorriu amarelo pro instrutor e deu um passo pra trás, parecia que estava tomando impulso pra pular, mas estacou hesitando de novo. Na água seus amigos gritavam "Vem Castor, pula logo, rapaz.".
Castor. Era o seu apelido desde que ele era capaz de lembrar. Era uma combinação de bochechas generosas, lábio superior curto e dentes avantajados. Castor. Ele não ligava, na verdade até achava bacana ter apelido. Se chamava Cauby. Cauby Peixotto. Pois é. Explica-se aí por que ele gostava de ser chamado de Castor, passara por maus bocados na escola por conta desse nome. Sua mãe, dona Etelvina, era uma fã ardorosa e dedicada de Cauby Peixoto. Adorava o cantor, adorava os cabelos encaracolados e a voz dele, pra ela Roberto Carlos era um usurpador, o rei era o Cauby... Na verdade, Castor achava que sua mãe casara-se com seu pai apenas por ele ter o sobrenome Peixotto, o que lhe oportunizaria batizar seu rebento praticamente como um homônimo de seu grande ídolo.
A irmã mais velha do Castor se chamava Conceição. Outra homenagem velada ao ídolo de dona Etelvina. Mas Conceição não vivia no morro á sonhar com coisas que o mundo não tinha, Conceição era uma moça proativa, cheia de determinação e de ideais, saíra de casa bem antes de Castor para perseguir seus sonhos, tudo contra a vontade de dona Etelvina, que queria que a filha fosse uma moça mais recatada, mais prendada, que casasse e tivesse filhos com um homem de posição... Mas Conceição tinha seus planos, estudou medicina contra a vontade da mãe, uniu-se aos médicins sans frontiére, viajou pelo mundo e só parou depois de três anos em trânsito. Acabou morando em Brasília, e não se casou, morava com uma pessoa. Lúcia, sua namorada. Para desgosto de dona Etelvina Conceição era lésbica, algo que ela jamais poderia conceber. Castor não sabia como se sentia á respeito da irmã. Achava, na maior parte do tempo, que estava feliz por ela, mas ás vezes tinha dúvidas.
Esse sempre fora um problema da dona Etelvina, ela projetava os próprios desejos e vontades nos filhos. Conceição deveria casar com um homem de posição, isso se dava, talvez, por que a própria se casara com um homem de hábitos e pretensões simples. Oswaldo Peixotto era um homem sem grandes atrativos, era bem apessoado na juventude, e era honesto, essa honestidade, na verdade, poderia ser apenas um reflexo de sua falta de ambição, de sua falta de ânimo para tentar melhorar. Trabalhou a vida inteira no mesmo emprego, jamais recebeu nenhuma promoção que não fosse diretamente ligada á tempo de serviço, e, aparentemente, isso jamais o incomodou. Essa letargia, além do lábio superior curto e do sobrenome, Castor herdou do pai, ele sabia disso, mas não ficava bravo, assumia essa responsabilidade, e amava o pai, apesar de não demonstrar nunca.
Para desgosto de dona Etelvina, que certamente preferiria que seu filho fosse um grande homem, se não um artista, como seu homônimo famoso, um advogado, ou, quem sabe, um médico. O que Conceição acabou se tornando, embora não fosse bem do modo que dona Etelvina tivesse em mente, um consultório, um carro do ano, casa na cidade e de veraneio... Conceição vivia de aluguel, se mudava com frequência, e viajava mais pra África do que a maioria das pessoas viaja pro litoral norte.
De qualquer forma, Castor não se tornou médico, nem advogado, nada que lhe garantisse um "Doutor" antes do nome, Castor virou técnico em informática, emprego sem glamour e que dona Etelvina, francamente, nem sequer entendia ou achava minimamente relevante. E Castor, meio á contragosto, concordava com ela.
Castor não se tornou técnico em informática por que gostava de computadores, mas por que foi um curso fácil e que ele podia fazer perto de casa, além disso, abriria um leque interessante de oportunidade de emprego e estabilidade. Castor imaginou que em um mundo inundado de computadores por todos os lados, ele teria mais facilidade para encontrar um emprego se soubesse lidar com computadores. E foi o que fez. Não que fosse o que ele queria fazer. Castor queria mesmo era ser piloto de avião. Mas nem mesmo prestou serviço militar, na época do alistamento, chegou á pensar em surpreender a mãe e o pai e viajar até Canoas para tentar se juntar a FAB, mas acabou com preguiça, com receio de tomar aquela decisão, era mais cômodo ficar perto de casa, e se alistou no Exército, mesmo. Nos testes agiu com a sua modorrice habitual, o que garantiu sua dispensa. Ás vezes ele imaginava se a experiência do quartel não teria enriquecido sua vida de alguma forma, achava que sim, mas evitava pensar nisso. Evitava pensar em muitas coisas. Evitava pensar em Alícia, sua ex-namorada.
Fora ela quem primeiro notara a semelhança de Cauby com o roedor e o apelidara de Castor, o que começara como uma amizade divertida se tornou, com o tempo, um amor companheiro. Alícia amava Cauby, ele correspondia, era devotado, a amava muito á sua própria maneira. Não era um apaixonado dado á arroubos, a amava de forma silenciosa e contrita, com beijos e toques quase acidentais. Era seu modo. Ela não parecia se importar, durante três anos eles permaneceram juntos, e ele visualizava um futuro ao lado de Alícia, imaginava como seria ter filhos com ela. Filhos que tivessem de Alícia os cabelos louros, os olhos castanho-claros, o nariz bem construído, e dele... Bom, Castor ficava feliz que eles tivessem apenas seu sobrenome.
Mas Alícia conseguiu uma bolsa de estudos para fazer mestrado na Alemanha. E deu um ultimato á Castor. O amava, mas não iria desperdiçar aquela oportunidade. Queria que ele fosse com ela para a Alemanha. Ficariam juntos lá, talvez passassem por apertos, talvez sofressem dificuldades no início, mas teriam um ao outro, superariam e poderiam, quem sabe, até construir uma vida juntos, lá.
Mas Cauby refugou. Teve medo. Não sabia se queria passar por apertos e necessidades em um país estranho. Despediu-se de Alícia quatro dias antes de ela embarcar para Hannover. Ela chorava muito, deu um adeus entre soluços pra ele, que não disse nada. Castor não gostava de demonstrar emoções, pra ser franco, não tinha certeza se podia, se as sentia de maneira correta.
Ás vezes acordava de noite pensando em Alícia, mas ela foi se tornando uma imagem mais e mais pálida, e hoje ele não tinha nem certeza se ela era tão fantástica quanto ele se lembrava.
Quando visitava sua mãe, ela lhe dizia com frequência que se Alícia o havia abandonado, era por que não o amava o suficiente, que ela desfizera do amor que ele havia dedicado á ela e fora se aventurar "nas Europa", era a maneira de Etelvina proteger seu filho, fazendo pouco de quem o magoava. Castor não concordava. Castor não concordava com quase nada que a mãe fazia, mas no fundo acreditava que a amava, também. Á despeito do nome e tudo mais. Então ele não retrucava, na verdade, ás vezes tinha ânsias de concordar com ela. Adoraria que fosse verdade. Seria mais fácil de conviver com o rompimento se fosse daquele jeito. Mas Castor sabia que não era. Ele sabia que todas as mazelas de sua vida estavam ligadas á sua letargia, á sua falta de ânimo, á sua covardia na hora de dar um passo á frente ou de saltar.
Agora, ali estava ele encarando o lago, seus amigos o chamavam, o instrutor o incentivava, mas ele estava com medo.
Encarou o lago e respirou fundo:
-É agora ou nunca...

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Resenha Cinema: O Lobisomem


Queria ver O Lobisomem.
Saí de casa nessa quarta-feira de cinzas e me dirigi ao cinema mais próximo para conferir um filme que, confesso, só queria ver por causa do elenco. Vendo o que se andou fazendo em matéria de monstros cinematográficos nos últimos anos, é difícil pra mim ir ao cinema ver um filme desse gênero com uma expectativa alta.
Desde que Hugh Jackman colocou o chapelão de Van Helsing e enfrentou Drácula, o lobisomem e o monstro de Frankenstein eu pensava nas desculpas que eram devidas á Peter Cushing, Christopher Lee, Lon Chaney e Boris Karloff.
Quando os vampiros e os lobisomens deixaram de ser criaturas assustadoras que povoam os pesadelos das pessoas e se tornaram rapazes saradinhos e com cara de boneca que se declaram vegetarianos, eu imaginei que estávamos, de fato, diante de um caminho que se estenderia inexoravelmente em direção á uma geração sem monstros no cinema.
Ficaríamos presos ao (bom) Cloverfield como única criatura cinematográfica capaz de arrancar mais do que risos da audiência, como fazem Freddy, Jason e Michael Mayers, que á muito tempo não metem medo em ninguém, ou, pior ainda, capaz apenas de arrancar gritinhos histéricos e lágrimas de coração partido de adolescentes microcéfalas como os meninos delicados da Saga Crepúsculo.
As notícias antes do lançamento do filme não serviram em nada para aumentar as minhas expectativas, o diretor originalmente contratado para o trabalho, Mark Romanek, saltou do barco com duas semanas de pré-produção, deixando o trabalho nas mãos de Joe Johnston, cujo currículo não chega á ser animador (Mar de Fogo, Jurassic Park 3, Jumanji, Rocketeer...).
O compositor Danny Elfman, responsável pela música do filme, também saiu antes da conclusão do trabalho, após a conclusão das filmagens o elenco foi chamado de volta para refazer cenas, o que adiou mais de uma vez a data de estréia, além das brigas da equipe de produção com o estúdio na ilha de edição (Rumores dizem que o filme chegou á ter cinco editores diferentes picotando o filme, entre eles Walter Murch, de Apocalypse Now.), dá pra imaginar que, de modo geral, esse tipo de problemas não resulta em grandes filmes, vide o sofrível O Exorcista - O Início.
Dito isso, fui ao cinema ver O Lobisomem como alguém que não gosta de filmes de terror, que não tem paciência pra "slashers" formulaicos, mas adora cinema, e é um fã declarado de Benicio Del Toro, Hugo Weaving e, claro, Sir Anthony Hopkins.
Sentado na escuridão de uma sala parcialmente vazia (Não devia haver mais do que quinze pessoas no cinema, se tanto, reflexos do carnaval.), abri minhas balas de morango, minha soda limonada e relaxei.
O ano é 1891, Lawrence Talbot (Benicio Del Toro, emprestando nuances e mais nuances ao personagem.), bem sucedido ator de teatro nos Estados Unidos retorna á Inglaterra para uma turnê em Londres.
Ele recebe uma carta de Gwen (Emily Blunt, um acessório, bonita mas sem nenhuma relevância para o filme.), sua futura cunhada, informando o desaparecimento de seu irmão e pedindo sua ajuda.
Ao chegar na mansão de seu pai, sir John Talbot (Anthony Hopkins, brilhantemente macabro.), Lawrence descobre que seu irmão morreu, e decide investigar as circunstâncias misteriosas e sua morte.
Ao tentar obter informações de ciganos na região, Lawrence testemunha o violento ataque de uma terrível criatura, e acaba sendo atacado pelo monstro, e amaldiçoado.
Ele próprio torna-se um lobisomem, além de alvo principal da investigação da Scotland Yard, que envia o inspetor Francis Aberline (Hugo Weaving, bacana como de costume.) á Blackmoore para descobrir o que está acontecendo.
É um filme muito bacana, se eu fosse de dar notas á filmes daria, sem medo de estar sendo excesivamente generoso, um 7,5 ou 8. Muito da qualidade do filme está no elenco, claro, tanto Benicio Del Toro, que carrega Talbot com uma nobreza arruinada e algo relutante durante todas as suas cenas, quanto Hugo Weaving que enche Aberline com uma obstinação fria, mostrando que aquele é o mesmo personagem que não conseguiu capturar Jack O Estripador, anos antes e, especialmente Anthony Hopkins, cuja interpretação de John Talbot flutua entre uma ternura distante e uma malevolência cruel seriam suficientes pra segurar qualquer filme nas costas, mas há ainda um bom roteiro, que presta um tributo ao filme da década de 40 sem esquecer que há uma nova geração de frequentadores de cinema na frente da tela, misturando um pouco do banho de sangue carniceiro que algumas audiências preferem com referências fidelíssimas ao mito da licantropia (Lua cheia, acônito, balas de prata, está tudo lá, nada de adulterações fantasiadas de liberdade poética.), alguns sustos gratuitos, sem jamais deixar desvanecer a tensão entre os personagens principais.
Claro, todas essas qualidades não seriam de grande valia sem um monstro convincente, e, com mil demônios, o monstro criado com maquigem prática pelo mago Ricky Baker (Homens de Preto, O Grynch.) é muito convincente, mais que isso, é genial.
O visual do lobisomem evoca a aparência da criatura dos anos quarenta com focinho achatado e presas inferiores saltando para fora da boca, mas lhe confere mais agilidade e força, o monstro corre sobre quatro patas, como um animal, mas caminha e luta sobre duas, como um homem. Ele joga os braços pra trás e estufa o peito para uivar vestindo os farrapos dos trajes de Talbot, vamos combinar, a criatura esfarrapada se lamentando ou regozijando contra a lua é sempre uma imagem maneiraça.
O filme é perfeito? Não, claro, tem seus defeitos, como a personagem de Emily Blunt, que jamais diz á que veio, ou o final algo aberto, sugerindo uma continuação (Hollywood anda em uma fase criativa tão negra que tudo pode virar franquia...), mas são defeitinhos, pormenores que não tiram o brilho e muito menos a diversão que a experiência de O Lobisomem pode proporcionar. Vá ao cinema e divirta-se. Eu, que não gosto de filmes de terror me diverti muito.

"Coisas terríveis. Você fez coisas terríveis, Lawrence."

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

O carnaval do Amadeu



O som de bumbos, tambores e tamborins enchia a cabeça de Amadeu. Entrava por seus ouvidos e reverberava dentro de sua caixa craniana ecoando e fazendo sua cabeça latejar.
Pior era quando os gritos se misturavam e invadiam os pensamentos de Amadeu junto com aquela música.
Ele tentou erguer os olhos mas eles se recusaram a abrir. Ele pensou consigo mesmo que aquele baile de carnaval não estava sendo o que ele esperava.
Amadeu não era afeito ao carnaval enquanto festa do samba. Amadeu não gostava de samba, Amadeu, à bem da verdade, não era um grande fã de música de modo geral. Ele preferia o silêncio. Entretanto, o carnaval tinha um elemento que agradava muito ao Amadeu, um elemento que fazia com que o carnaval fosse a época do ano preferida para ele:
Sexo.
Era incrível, Amadeu pensava, como aqueles dias e aquela música tornavam as mulheres tão fáceis.
Ele achava fabuloso.
Amadeu não era um sujeito de grande lábia, não era bonito, nem tampouco charmoso. Amadeu era a figura da mediocridade. E tinha uma consciência bastante realista disso. Durante o ano inteiro ele tinha um radar ajustado, e andava com mulheres que eram, como ele, pessoas de aparência média, ou até menos. Era uma escolha consciente e calculada. Ele sabia quando uma mulher era areia demais para o seu caminhãozinho, e evitava essas mulheres poupando-se de eventuais foras desnecessários.
No carnaval, porém, ah, no carnaval era tudo diferente, no carnaval as mulheres estavam inebriadas, se não com álcool, com a própria atmosfera sensual do carnaval, com a promessa quase palpável de que os pecados ali cometidos seriam esquecidos ou perdoados, de que as falhas, as pequenas incontinências, as pequenas traições cometidas naqueles três dias de samba suor e cerveja seriam ali esquecidos e jamais lembrados exceto, talvez anos mais tarde quando, por alguma razão, houvesse uma oportunidade pra lembrar daquele verão e alguém diria "Lembra daquele carnaval?" e tudo, ou quase tudo dependendo do estrago que o álcool ingerido houvesse feito àqueles neurônios, voltaria à mente como uma lembrança distante e sem importância, era como se o carnaval fosse uma zona neutra onde havia um passe entregue a todos para que agissem de maneiras totalmente opostas aos seus instintos e crenças comuns.
E Amadeu sabia, e Amadeu usava isso com maestria.
Ele, naqueles dias da festa de Momo, se lavava em corpos lisos e perfeitos, perfumados de suor de dança e música ruim, desprovidos de culpa ou senso crítico.
Amadeu aproveitava o que a sociedade e a mídia vendiam às pessoas, em especial a pós-adolescentes interessadas em festejar como se não houvesse amanhã. No carnaval Amadeu estava feliz no seu ambiente. Mesmo não gostando da música, mesmo sendo um dançarino, no mínimo, ruim, mesmo com sua aparência nada além de mediana, Amadeu era o mestre do Carnaval, ou, pelo menos, assim se sentia.
E tinha razões para tanto.
Perdera as contas de quantas vezes desfrutara prazeres de alcova com mulheres belas que veria tão distantes quanto o Santo Graal em qualquer outro dia do ano, e tudo por que era, afinal de contas, carnaval.
Amadeu ás vezes, se sentia culpado pela própria habilidade, em especial quando acordava ao lado de uma jovem muito bonita e constrangida que só não havia ido embora por que ainda não encontrara toda a roupa, e o olhava com alguma reserva como se estivesse perguntando a si mesma se, de fato, fizera o que parecia que fizera. Mas essa culpa durava pouco.
Amadeu sabia que logo, logo ela estaria de volta à sua rotina, à faculdade, aos pais, ou algo que o valha, e ele seria apenas um eco pálido de um feriadão anos atrás, um fantasma de um carnaval passado, e pra ele estava tudo bem, ele tinha o que fora buscar, e, afinal de contas, os pecados do carnaval eram perdoados.
Com a aproximação de fevereiro Amadeu já começava a traçar seus planos, as festas e os bailes que frequentaria em cada um dos dias, se iria para o interior, se iria para a praia ou se ficaria na capital, ele tinha tudo calculado com, pelo menos, duas semanas de antecedência, era, afinal, a época, como o próprio chamava, de "tirar a barriga da miséria".
E ali estava Amadeu, no meio do baile, confetes, serpentinas, música alta, mulheres em trajes sumários de um lado e outro, casais dançando de maneira provocante e ele ali, olhando ao redor, procurando a mulher que seria nada senão perfeita. Amadeu procurava com olhos de lince pela mulher inacessível que, alcoolizada e no espírito de carnaval, se tornaria acessível, ele vasculhava o salão onde se aglomeravam, pelo menos, mil pessoas, quiçá mais, belas mulheres passavam por ele enquanto ele andava com pés macios, quase como um grande felino, esquadrinhando todas as mulheres que entravam em seu raio de visão, Amadeu sentia seus corpos deslizando de encontro ao dele enquanto andava, algumas, lânguidas, lançavam-lhe olhares sensuais fingindo reprovação, eram quase quatro e meia da manhã, o momento crítico, as meninas já estavam bêbadas o bastante, soltas o bastante, as que não ficaram até aquele ponto não ficariam mais, haviam moças que chegavam a enlaçar o pescoço de Amadeu com os braços alvos, mas ele não queria uma mulher que o enlaçasse com o braço, parte da graça da forma de Amadeu encontrar parceiras nos bailes de carnaval era, justamente, conquistar mulheres inconquistáveis, elas deveriam ser lindas, perfeitas, perfeita como a morena escultural que dançava com os braços parcialmente dobrados à frente do belo rosto e hipnotizou Amadeu com o movimento de seus quadris generosos.
Não só dos quadris, o corpo inteiro dela dançava, ela jogava os cabelos longos para cima em pequenos saltos, os olhos semi cerrados, os lábios entreabertos, suada, a blusa de lurex colada ao corpo, a calça jeans preta tentando inutilmente tolher os movimentos das coxas musculosas, os pés delicados avermelhados dentro das sandálias transparentes no movimento frenético ao ritmo daquela música quase primitiva.
"É ela."
Foi o que pensou Amadeu.
Aquela mulher era a perfeição que Amadeu almejara desde o primeiro baile, desde que a compreensão do que significava o carnaval para aqueles que, como ele eram práticos e tinham a clareza necessária, aquela mulher eras tudo o que ele queria do carnaval.
Amadeu se aproximou por trás dela sorrateiramente e, num movimento audacioso, enlaçou-a pela cintura enquanto a virava de frente para si. Ele olhou para ele por uma fração de segundo, como se medindo-o.
Amadeu sorriu satisfeito, se ela estava medindo ele, certamente não o achara demasiado repelente, estava no papo, a felicidade tomou conta de Amadeu. Ele anteviu as proezas eróticas que realizaria com aquela bela e incauta morena. Se inclinou para a frente, visando os lábios cobertos de brilho da moça. Antes, porém, que os seus lábios encontrassem os dela, Amadeu sentiu um cutucão no ombro, seguido de uma pergunta:
-Tu perdeu a noção do perigo, velho?
Ao se virar, Amadeu quase não teve tempo de ver os contornos do homenzarrão que se avolumava à sua frente, um golpe violento e certeiro atingiu-o no olho.
Amadeu quase caiu, mas se chocou com outros foliões atrás de si, o que o manteve de pé. Outro golpe atingiu Amadeu, no outro olho. As pessoas atrás dele gritaram e o mundo girou.
É quando chegamos ao ponto lá do início:
Ele tentou erguer os olhos mas eles se recusaram a abrir. Ele pensou consigo mesmo que aquele baile de carnaval não estava sendo o que ele esperava.
Amadeu tentou erguer os braços pra proteger a cabeça, porém, foi atingido novamente, nas costelas e na barriga. Um chute violento no joelho o derrubou no chão feito um saco de batatas, e mais dois chutes, um nas costas e outro na cabeça o mergulharam em um torpor doloroso do qual ele só despertaria horas mais tarde, no hospital.
Duas costelas fraturadas, além de uma concussão foi o saldo daquela noite. O restante daquele carnaval seria de dor e leito para Amadeu. No tempo em que ficou deitado, em que até se virar na cama doía, Amadeu se pegou amargo. Ele se pegou odiando a própria burrice. A própria impulsividade, por que não ficara um pouco mais de tempo observando a moça. Por que agira como um adolescente idiota e ansioso? Era responsável pelo próprio infortúnio.
Bem, ele e o bruto que lhe arrebentara, ainda que, na medida do possível, não guardasse mágoas do sujeito. Punha-se em seu lugar e percebera que a reação dele havia sido plenamente justificada.
Enfim. Amadeu concluiu que o que houvera causado sua ruína fora o carnaval.
Sim, o carnaval.
Na mesma medida em que a festa de Momo tornava as mulheres mais desfrutáveis, mais soltas e inconsequentes, ela também o tornara um quase tarado. Um viciado em sexo imparável até, ou concluir o coito, ou ser violentamente surrado.
Eram aqueles tambores primevos. Era aquela atmosfera quase palpável de sensualidade, a promessa de sexo que escorria pelos corpos das mulheres junto com o suor. Sim, foi aquilo. O carnaval causara todos os problemas dele.
Amadeu viraria cento e oitenta graus em suas crenças e preferências. Agora detestaria o carnaval. Teria alergia a tambores, teria pânico de tamborins, atravessaria a rua se visse uma mulher deliciosa em trajes sumários repleta de purpurina na pele suada enquanto arrastava os pés ao som de samba. Assim, pensava ele, se pouparia de infortúnios semelhantes.
Amadeu passou o domingo inteiro amaldiçoando o carnaval e trocando o canal da TV do quarto do hospital enquanto as redes mostravam a festa por todo o Brasil. Foi na madrugada de domingo pra segunda que ela chegou. Uma moça loura, bonita e atraente. Vestia uma camiseta regata branca justa e um short jeans quase pornográfico. Sua perna esquerda estava engessada até a altura do joelho.
Quebrada. Foi no carnaval de rua, ela contou. Uma briga causara alvoroço e correria, ela caiu e acabou pisoteada.
Chamava-se Thaís. Adorava carnaval, não pudera viajar porque trabalharia na segunda-feira à tarde, agora, embora perdesse o final da festa, ganhara a segunda-feira de folga forçada. Sorriu para Amadeu, que sorriu de volta.
Antes que raiasse o dia eles haviam praticado um sexo delicioso, entrecortado de gemidos de dor e de prazer.
No dia seguinte ela foi embora, o convidou para jantar na noite de terça, podiam ver os desfiles pela TV e comer uma pizza. Amadeu precisou negar, ficaria mais um dia em observação devido á concussão, mas pegou o número de Thaís.
Imaginando como seria a noite de terça com uma bela mulher parcialmente imobilizada amaldiçoou a própria sorte. Entretanto,repensou sua posição a respeito do Carnaval.
Continuava não gostando de samba, nem vendo nenhuma importância na celebração desse ritmo.
Mas voltara, rapidamente, a gostar da festa.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Pés na areia


Suzana caminhava pela praia sentindo a areia molhada entre os dedos dos pés. Quando em quando, uma onda se esticava além das demais e molhava seus tornozelos brancos arrancando-lhe pequenos suspiros entre dentes por conta da temperatura da água, incrivelmente gelada. Não havia sequer uma nuvem no céu naquele dia, e o sol impunha sua presença de maneira escandalosa jogando a temperatura á estratosféricos 39 graus.
Suzana não era a mais entusiasmada frequentadora da praia. Na verdade, Suzana apostava que não figuraria em nenhuma lista de entusiasmados frequentadores de praias. Ela não gostava de sol. Não gostava de areia. Não gostava de aglomerações ou de calor. A água, porém, era interessante para Suzana. Ela sempre gostara de água. Fizera natação quando pequena, abandonada apenas pelo medo, na puberdade, de ganhar contornos de Rebeca Guzmão, de ganhar costas e ombros largos e quadris estreitos... Suzana abandonou a natação com medo de ficar com um corpo masculino, mas jamais abandonou o gosto pela água, o gosto pelo contato molhado com ela, fosse em lagos, rios, piscinas ou chuveiros. E, se ela estava ali, sentindo a eficácia de seu protetor se desvanescer á cada gosta de suor que o calor arrancava de seus poros, era unica e exclusivamente por amor á água.
Bom, por amor á água e por que o Carnaval não oferecera nenhuma outra opção. Houvessem convidado Suzana para um passeio na serra, para fazer rafting, ou trabalho voluntário, ela teria ido sem pestanejar, qualquer coisa para evitar Porto Alegre e o Carnaval.
A opção oferecida fora o litoral norte. Longe de ser o lugar preferido de Suzana, pra começar por que lá o carnaval era um elemento criador de aglomerações, e, como já foi citado, Suzana as detestava. De qualquer forma, ela pesou prós e contras e supôs que era melhor cozinhar viva e ouvir o som dos tamborins pela TV na praia do que seria fazê-lo em Porto Alegre, onde o calor seria consideravelmente mais forte e as possibilidades de fuga mais remotas.
Era, então, exatamente o que Suzana fazia naquele momento, em que as ondas do mar lambiam sua pele delicada á cada avanço. Ela fugia.
Fora á praia, pra casa da família á convite de um tio que levara a filha. Suzana esperava paz e sossego, quem sabe ler na varanda, ou no pátio dos fundos da casa? Tomar um suco, ouvir musica... Era o que ela tinha em mente.
Mas as coisas raramente, pra não dizer nunca, saíam como Suzana planejava, após chegar e se instalar, Suzana descobriu que a sua prima, com quem tivera pouco ou nenhum contato, era uma criança hiperativa na idade mais crítica da das crianças hiperativas. Aos sete anos a menina era incapaz de se manter quieta em uma atividade por mais do que dez minutos. O pai superprotetor a proibia de brincar na rua, de modo que todas as atividades de Suzana foram partilhadas, contra a sua vontade, com a criança.
Suzana fugiu de casa ao constatar que se ouvisse mais um "Que tu tá fazendo?" seria presa por duplo homicídio. Ela visualizara a cena, policiais entrando na casa após arrombar o portão, elertados por vizinhos que ouviriam os gritos primevos que Suzana urraria enquanto esmagasse a traquéia da prima com as mãos nuas, e triturasse o crânio do tio com uma pá.
Embora o sol ainda estivesse alto demais para o gosto de Suzana, ela achou que era melhor encarar o calor do que a família, de modo que ali estava ela, caminhando á beira-mar como uma dessas pessoas que adoram a praia.
Ao sentir a musculatura sobre os joelhos endurecer após um passo Suzana diminuiu o ritmo. Sentou um pouco e contemplou o mar. Viu as pessoas ao redor, pais, filhos, esposas. Ela estava ás vésperas de completar vinte e nove anos, com essa idade sua mãe já tinha três filhos, ela, porém, sequer tinha um namorado.
As pessoas perguntavam o por quê. E Suzana respondia que, se era pra namorar apenas por namorar, sem gostar de verdade de alguém, ela preferia estar sozinha. De vez em quando ela até conhecia pessoas, pessoas que a atraiam fisicamente, e com quem se divertia, porém, era apenas isso. Diversão. Suzana não se apaixonou por ninguém, e achava injusto prender alguém á si sem amar essa pessoa. Da mesma forma, a vida de Suzana não era simples. Ela tinha seus problemas, suas dúvidas e atribulações, ela era uma pessoa complicada a prova estava ali, ela acabara de se torturar andando á esmo pelo sol escaldante por não suportar ficar na mesma casa que a prima e o tio. Suzana tinha essas coisas, ela não gostava de contato excessivo, ela não gostava de estar com pessoas sem um plano B, sem um backup. Suzana precisava, pelo menos, da perspectiva de fuga. Não que ela fosse escapulir de qualqur pessoa que surgisse em seu caminho, na verdade, ela tinha a impressão de já ter conhecido pessoas que prefeririam fugir dela. Mas isso fora quando ela era bem mais jovem, agora ela se considerava madura o bastante para não grudar em ninguém, e preferia não ter ninguém grudado nela, mas havia pessoas com quem ela gostava de estar, ainda que fossem poucas, mas mesmo dessas pessoas que ela considerava especiais, Suzana ainda precisava de um espaço, uma pequena distância, um perímetro de segurança.
Ás vezes ela se perguntava se havia algo de errado com ela. Será que ela havia crescido assim, afugentando as pessoas, por causa da falta de privacidade em sua casa na infância e adolescência? Sua mãe criara uma inescapável "política de portas abertas" em casa. O único lugar onde havia privacidade era o banheiro, e ainda assim, após o tempo considerado "razoável", alguém batia na porta perguntando se estava tudo bem... Suzana detestava aquilo, ela tinha horror daquilo, talvez por isso passasse tanto tempo na casa da avó. Era onde ela podia trancar a porta do quarto e onde sua privacidade era respeitada, mas sempre havia a volta pra casa e pras portas eternamente abertas.
Talvez por ter tido pouco acesso á privacidade enquanto crescia Suzana a prezasse tanto agora que estava adulta.
Mas queria ter uma família, alguém com quem dividir o tempo, talvez filhos... Se perguntava se estaria preparada. Achava que sim. Pelo menos em termos de maturidade, ela estava pronta.
Ela se perguntava se já era hora de voltar, não tinha certeza de quanto tempo caminhara, e queria chegar em casa sem estar moída de cansaço, porém, lembrou do tio e da prima e resolveu esticar um pouco mais o tempo na areia. Além disso, o sol começava á se deitar atrás dela, o que diminuía consideravelmente o calor na orla. Suzana olhou as pessoas juntando suas coisas, fechando guarda-sóis e esteiras e toalhas, crianças resmungando por querer ficar mais um pouco, mães juntando os dejetos do dia na praia em sacolinhas plásticas... Suzana suspirou. Estava pronta para ter uma família. Mas iria preferir esperar um pouco. Ainda achava privacidade muito importante.
Se levantou, bateu a areia que grudara em seu maiô, sorriu, e seguiu caminhando.
No sentido oposto ao de sua casa...

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Resenha Game: Call of Duty - Modern Warfare 2


Caraca! Na semana passada peguei os caraminguás do meu adiantamento de férias e fui até a Saraiva Mega Store comprar um jogo de video game novo. Estava na ânsia de jogar um first Person Shooter, aqueles tradicionais jogos em que se tem a perspectiva de que a arma está na sua mão, era, eu acho, algum tipo de abstinência, o último que havia jogado e gostado, tinha sido o Perfect Dark, do hoje pré-histórico Nintendo 64.
Enquanto namorava vários títulos, meu irmão parou ao meu lado e disse que se eu estava procurando um jogo de ação tinha que tentar um de guerra. Me deu duas opções, não lembro qual era a primeira, mas lembro que era bem mais barata. Enfim, acabei ficando com o segundo, que era esse Call of Duty - Modern Warfare 2.
Não sabia bem o que esperar, já conhecia, de nome, a série Call of Duty, eram jogos de tiro em primeira pessoa baseados em grandes batalhas da Segunda Guerra Mundial, porém, o "Modern Warfare" do título me dizia que dificilmente eu iria experimentar a sensação de ser um aliado ou um soldado do EIXO, naquele jogo. De qualquer forma, como ainda estava sob a influência do ótimo Guerra ao Terror, relaxei, peguei meu joystick, e fui, literalmente, á luta.
Pouco mais de sete horas depois (Sete horas divididas em várias sessões de jogo, que fique claro.), posso garantir que o jogo é excelente.
O fato de ter passado longe do jogo anterior, do qual esse é uma sequência direta, jamais pesa ou impede que o jogador se sinta imerso na história.
Vamos á ela, um terrorista russo, Wladimir Makarov é o pivô da trama, ele inicia uma série de atentados terroristas numa campanha contra a Europa, infiltrado no grupo de Makarov, Joseph Allen, um soldado americano trabalhando para a CIA participa de um massacre de civis no aeroporto internacional Zakhaev, em Moscou, onde ele acaba morto e sendo exposto como cidadão norte-americano, o que leva as autoridades russas á imaginarem que a CIA estivesse por trás do massacre e reagirem com um massivo ataque surpresa aos EUA.
Á partir de então, a linha narrativa se divide em dois, hora mostrando a luta dos Rangers para combater os russos em território americano, hora acompanhando a Força-Tarefa 141, que procura desesperadamente por evidências capazes de apontar Makarov como o verdadeiro mentor dos ataques em solo russo.
Á despeito de o vai e vem da trama atrapalhar um pouco a formação daquela saudável conexão entre o player e os personagens, o jogo impressiona e gruda a gente em frente á TV, a excelente trilha sonora, os gráficos beirando a perfeição e a ação que em um momento nos jogar em batalhas colossais onde devemos correr, atirar e nos proteger, para depois nos envolver em ações furtivas onde finesse e silêncio são fundamentais pra o sucesso são mais que suficientes para garantir a imersão no jogo, que leva o jogador á um tour que passa pelo Afeganistão, por Moscou, Rio de Janeiro (Numa retratação perfeita das favelas e dos morros cariocas.), Eurásia, Petroplavlovsk, Washington (irreconhecível e assustadoramente realista após o ataque da Rússia.), e Virgínia, sempre com a mesma competente recriação dos ambientes.
Claro, de nada adiantaria o game ter ambientes ricamente criados, uma boa história, bom som e trilha sonora não oferecer o que os jogadores querem: Tiroteios realistas e sanguinolentos em profusão.
Bem, Modern Warfare 2 oferece isso em grande estilo.
O prazer primevo de pegar sua arma e dizimar os inimigos, de fazer um rapel silencioso e faquear seu inimigo na garganta, de pegar seu rifle sniper e mandar os atiradores inimigos lá pra Casa do capita sorrateiramente, não tem preço. Bom, na verdade tem, R$249,90.
Bote a mão no bolso e divirta-se.

"O que diabos nós vamos fazer agora, cara? Os russos estão em maior número, as merdas estão caindo do céu, estamos fodidos, cara! Estamos totalmente-
-Cale-se! Recomponha-se, soldado. Nossas armas ainda funcionam, o que significa que ainda podemos chutar alguns rabos."

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A única que havia.


Se havia nesse mundo alguém gente boa, esse alguém era o Oberon. O Oberon era muito gente boa. Na verdade, havia amigos do Oberon que achavam que, se procurasse pelo verbete "gente boa" na enciclopédia Basca, encontraria, ao lado da definição, a foto do Oberon.
As definições que as pessoas davam de Oberon variavam sempre dentro de "Muito gente boa.", "Gente finíssima", "Cara legal", "ótima pessoa", nunca menos do que isso, embora, entre as pesoas de seu convívio mais próximo houvessem arroubos como "Melhor pessoa do mundo", "A terra seria um lugar melhor se houvessem mais Oberons", "Meu melhor amigo.".
Nem era uma coisa que Oberon fizesse questão de cultivar, era uma característica inata, Oberon era gente boa por que era a sua personalidade, e nada além disso. Era seu estado natural. Quando conhecia novas pessoas Oberon era algo tímido, mas depois que se soltava, as pessoas passavam á gostar muito dele. Oberon poderia, inclusive, ter muito mais amigos se cultivasse todas as amizades que surgiam em seu caminho de vida. Mas Oberon gostava de se dedicar com mais afinco á uns poucos amigos que considerava especiais do que de puverizar sua dedicação entre inúmeras pequenas amizades. De modo que os conhecidos de Oberon o consideravam muito gente boa, e seus amigos íntimos o amavam de forma fraternal.
Oberon era igualmente bem quisto no trabalho, era professor de literatura, sabia controlar sua turma, seus alunos o adoravam, os outros professores o admiravam por saber ser amigo dos estudantes sem jamais perder o respeito dos discentes, por sua dedicação ao trabalho, e por seus vastos conhecimentos.
Oberon gostava de esportes, corria de segunda á quinta-feira, jogava futebol com os amigos toda sexta-feira, depois fazia um churrasquinho com os camaradas, por volta de meia-noite estava de volta em casa, e na manhã de sábado fazia trabalho voluntário em uma cooperativa de educação de jovens e adultos em um bairro carente da cidade, onde lecionava aulas de reforço de Português e História.
Todos gostavam de Oberon, ele não era exatamente bonito, mas era agradável, simpático, inteligente, e até, com boa vontade, algo charmoso. O que ninguém entendia é como Oberon, com todo seu vasto arsenal de qualidades, permanecia solteiro.
Alguém arriscou que ele poderia ser celibatário. Talvez Oberon guardasse todas as suas energias para seus estudos e seu trabalho, e o tempo que passava com os amigos. Não haveria nada de religioso no celibato de Oberon, era uma filosofia totalmente agnóstica de vida, desprovida de qualquer fé, apenas voltada para a lógica de que ele estaria mais apto á vida de modo geral se abdicasse do sexo e o ignorasse totalmente.
Mas o comportamento de Oberon entre os amigos, suas viradas de pescoço ao ver uma mulher com um belo corpo passando na rua, ou os sons que fazia ao ver Juliana Paes, Carol Castro e Jessica Biel com pouca roupa na TV não eram características de alguém que ignorasse o sexo.
Houve quem aventasse a possibilidade de o bom Oberon ser gay. Mas logo perceberam que não, dadas as suas já citadas opiniões á respeito de Juliana Paes, Carol Castro e Jessica Biel, ele não parecia alguém que gostasse de homem. Talvez fosse um tremendo enrustido, mas será que não seria perceptível? Todos descartaram uma eventual homossexualidade de Oberon, dizendo para si mesmos que, se fosse o caso, não haveria nada de errado (mentira, claro que haveria.), mas ainda assim, decartaram essa possibilidade quando um amigo mais antigo mencionou que Oberon quando ia á clubes noturnos e danceterias alguns anos atrás, sempre acabava "ficando" com alguma menina. Também namorara firme na faculdade com uma estudante de História. Logo, Oberon não era gay.
Mas o mistério permanecia, se Oberon não era gay, se Oberon não era celibatário, uma vez que já ficara com mulheres e já namorara firme, por que alguém que era visto como um cara tão legal, tão cheio de predicados permanecia solteiro sem sequer namorar?
A teoria vigente que ganhou vulto ente os conhecidos de Oberon foi a de que ele era um sujeito de padrões de beleza excessivamente altos. Irrealmente altos. De que, pra ele se envolver com uma mulher ela teria que ter medidas ainda mais exigentes do que as da candidatas á Miss Universo. Se a moça em questão tivesse um milímetro á mais de quadril do que rezava a cartilha de Oberon, ele sequer lhe dirigiria o olhar. Se ela tivesse um resquício de celulite, Oberon atravessaria a rua para não passar ao lado dela.
Se ela tivesse um fio de cabelo arrebentado, se o tom de pele dela fosse mais claro ou escuro do que ele considerava perfeito, se ela usasse maquiagem demais ou de menos, se ela tivese espinhas ou qualquer imperfeição, Oberon a lançaria á imensa galeria de mulheres que não se enquadravam no perfil demandado pela Cartilha de Oberon.
Aliás, essa teoria ganhou tanto peso que entre os amigos de Oberon, surgiu até uma expresão: A Cartilha de Oberon. Que eles usavam quando queriam espressar o quanto uma mulher era espetacular. Aí eles diziam:
"Vi uma loira hoje que entrava, certo, na Cartilha do Oberon."
E os outros duvidavam, mas ainda assim imaginavam com olhar perdido uma loira esplendorosa que pudesse almejar um posto nas páginas da cartilha do Oberon.
O que ninguém jamais soube é que Oberon não tinha idealizações surreais de beleza, ele tampouco era gay, ou celibatário. Oberon gostava de mulheres bonitas, claro, ele não gostava de homens, e era, como quase qualquer homem saudável, interessado em sexo.
O que poucas pessoas entenderiam é que Oberon gostava de uma mulher e uma mulher apenas. Ela estava, naquele momento, longe de Oberon, e, embora ele tivesse sempre a perspectiva de que, em algum momento ela voltasse, ele não tinha certeza de como seriam as coisas se eles se aproximassem novamente. Mas ele preferia viver com aquela perspectiva, com aquela possibilidade, pois ela, naquele momento, o bastava.
Oberon gostava do sexo oposto, mas para ele, o sexo oposto tinha uma única representante.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Resenha DVD: Guerra ao Terror


Ontem eu resolvi, finalmente, ceder ao meu lado mais volúvel e, após vários e vários meses olhando o filme na prateleira sem coragem de alugá-lo, resolvi pegar Guerra Ao Terror (The Hurt Locker), filme que desbancou Avatar em duas premiações (SAG e DGA)e assumiu a dianteira na corrida gringa pelo Oscar.
Confesso que peguei o filme com os dois pés atrás. Tenho, de modo geral, restrições á filmes de guerra americanos, afinal, eles têm essa tendência á endeusar á si mesmos na maior parte das vezes (Há exceções, como Soldado Anônimo, por exemplo.), e essa é uma tendência que não me agrada.
De qualquer forma, como estava resolvido á ver o filme, optei por lhe dar uma chance de me surpreender, então, me despi o melhor possível de preconceitos quanto á esse gênero.
Muito bem, visto o filme, posso dizer que, em termos dramáticos, de criação de personagens, Guerra ao Terror é o melhor dos concorrentes ao Oscar que eu assisti.
Ele não tem o espetáculo visual de Avatar, nem o hype de Bastardos Inglórios, ou a ternura franca de UP - Altas Aventuras, mas é o filme com o personagem mais humano que eu assisti.
O Sargento William James de Jeremy Renner (Genial.) chega à Bagdá faltando pouco mais de um mês para sua dispensa. Sua função é, provavelmente uma das mais ingratas no exército: Ele desarma bombas abandonadas em áreas civis.
James é bom no que faz. Mais do que isso. É obstinado. É viciado naquilo. Em princípio podemos, como seus colegas de pelotão, imaginar que ele é um caipira burro e viciado em adrenalina que não liga se vive ou morre, mas conforme a história se desenrola e o conhecemos, vamos percebendo que, de fato, ele é um viciado na guerra, mas na dignidade quase palpável que ela oferece ao homem comum.
A possibilidade de, mesmo em uma guerra sem sentido como a do Iraque, ser um herói, de fazer a diferença através de esforço e de atos deliberados.
Quando James entra em um carro apinhado de explosivos e fuça em todo o veículo procurando pelo sistema que ativa a bomba ele não está apenas satisfazendo sua necessidade de emoção, ele está vencendo um inimigo á quem ele admira, anotando mais uma vitória em seu histórico de batalhas.
Quando o vemos em casa, brincando com o filho, consertando coisas e ajudando nos afazeres domésticos percebemos a falta que lhe faz a perspectiva de grandeza e, por que, não? De identidade.
Sua expressão no corredor do mercado com gôndolas apinhadas de tantos e tantos e tantos cereais de marcas diferentes é a quintessência da sensação de deslocamento naquele mundo frívolo onde ele não é ninguém.
Quando veste o traje protetor que usa para desarmar bombas (O armário da dor), porém, James está em seu ambiente, ele é o líder do pelotão, ele comanda de maneira serena o espetáculo de vida e morte quase diário das paragens desérticas do Iraque.
E, embora eventualmente tome más decisões, e cometa enganos que poderiam resultar em graves consequências, James ainda encontra na guerra satisfação que a vida comum não lhe oferece.
No final das contas, o armário da dor que o personagem deseja evitar é a perspectiva modorrenta da vida civil.

"-Qual a melhor maneira de desarmar uma bomba, sargento?
-Aquela em que não se morre, senhor."

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Resenha Cinema: O Fim da Escuridão


Demorou mas ele voltou.
Mel Gibson que curtia uma boa carreira de diretor (Coração Valente, A Paixão de Cristo, e Apocalypto) voltou á aparecer diante das telas após hiato de oito anos, seu último filme como ator havia sido o ótimo Sinais, de 2002, para estrelar esse O Fim da Escuridão, filme que adapta a mini-série de mesmo nome da TV inglesa.
E ele volta, meio enxovalhado (Sim, os anos passam até mesmo para o Mad Mel.) no papel de Thomas Craven, policial viúvo que mora sozinho em Boston e está todo faceiro com a possibilidade de receber uma visita da filha, Emma (Bojana Novakovic), que vem visitá-lo na folga de seu trabalho.
Durante a visita Emma passa mal, e, quando se prepara para levá-la ao hospital, Tom é surpreendido por um mascarado que grita seu sobrenome e alveja sua filha, que morre em seus braços. Todos os indícios apontam para a morte de Emma como um ataque á Tom que saiu errado, porém, conforme investiga o caso, Craven vai descobrindo que sua filha não era tão inocente quanto imaginava, e podia, até mesmo, ser o alvo original do atentado.
Daí em diante o filme, que prometia bastante se transforma em uma daquelas manjadas fitas de pai vingativo, sem grandes inovações desde que Paul Kersey saiu pelas ruas de Nova York com seu 38, ou de quando Liam Neeson foi à Paris dar tiros até na esposa de um amigo.
Não quero parecer injusto, O Fim da Escuridão não é, nem de longe, um filme ruim, pelo contrário, é um bom filme de pai vingativo, tem um roteiro interessante, e que, apesar de mastigar e regurgitar muito rapidamente suas viradas e tramóias (É o efeito de se condensar seis horas de mini-série em duas de filme.) é bem amarrado.
Vale destacar a boa mão do diretor Martin Campbell ( de 007 Cassino Royale) que sabe gerar uma dose maneiraça de tensão (Incrível como tomei mais sustos vendo esse filme do que qualquer filme de "terror" das últimas décadas.) e a presença de Ray Winstone, ótimo no papel de Jedburgh, inglês especializado em "consertar coisas", há também Danny Huston, sempre interessante no papel de vilão, mas não tem jeito. O filme se equilibra, mesmo, nos ombros de Mel Gibson.
Ali está ele, mais velho, é verdade, mas fazendo as mesmas coisas que fez em Máquina Mortífera, em Sinais, em Coração Valente, e em todos os outros filmes que protagonizou, ele engole em seco, olha para cima, balança a cabeça, e voilá, nós caímos nessa de novo. Estamos com ele outra vez.
Não me entenda mal, Gibson é um ator com suas limitações, mas é desses atores limitados que nos convencem e que todos adoramos.
É bom tê-lo de volta, Mel.

"Lá no fundo, você sabe que merece isso."

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Romeu e Julietta.


Romeu pisou em uma enorme pilha de excremento de cachorro. O que disse, foi precisamente o nome do que acabara de pisar:
-Merda!
Queria cortar caminho, estava atrasado para o trabalho, e pensou em economizar uns minutos de caminhada atalhando pelo parque. Esquecera, porém, das velhinhas e velhinhos aparentemente inocentes que levam seus medonhos cães poodle, Yorkshire e Chihuaua e Pequinês para passear na grama das praças e parques sem, no entanto, recolher os dejetos dos bichos conforme reza a lei.
Era pensando nisso que Romeu percebia que o estrago fora ainda maior do que ele imaginava. Havia placas daquela gosma amarelada até nos cadarços de seu tênis branco e azul. Romeu correu até um banco, descalçou o sapato imundo e o esfregou na grama com vigor. O resultado não foi dos melhores. Espalhou a sujeira pela lateral do corpo do tênis e acentuou o mau-cheiro. Acentuou muito.
Romeu saltou num pé só até um bebedouro próximo, onde, ignorando a insalubridade do que fazia para futuros usuários do aparato, lavou o tênis de forma algo rudimentar.
Agora, se estava com um pé de tênis molhado e com uma mancha esverdeada suspeita na lateral, pelo menos não fedia, nem carregava consigo evidências muito vívidas do relaxamento de outrem.
Andou mais rápido, tentando ser veloz o suficiente para recuperar os minutos perdidos, mas não tanto á ponto de suar.
Romeu suava demais. Ele suava muito, mesmo, suava á ponto de escorrer suor de sua testa, se acumular em suas espessas sombrancelhas e respingar em seus olhos quando ele menos esperava fazendo-os lacrimejar por conta da ardência.
E, á despeito do esforço dele, era o que ocorria naquele momento. Romeu andava rápido para cobrir no menor tempo possível as duas quadras que o separavam do local onde trabalhava. Uma empresa de consultoria empresarial. E, enquanto corria para evitar um novo atraso, suava abundantemente, em especial nas costas, na testa e nas axilas.
Quando entrou no prédio da empresa consultou o relógio e ficoi aliviado ao constatar que ainda faltavam quinze minutos para as oito da noite, horário em que se iniciaria seu plantão.
Cumprimentou o porteiro, Waldir, cumprimentou a telefonista Vanessa, e se acomodou em sua cadeira, diante de dois monitores onde, durante a madrugada assistiria filmes, leria e-mails, veria episódios baixados ilegalmente de séries que gostava, e, se fosse o caso, atenderia á algum cliente que passasse por dificuldades técnicas.
Romeu gostava dos plantões. Eram doze horas de trabalho que rendiam três dias de folga, e raramente havia trabalho de verdade á fazer. Geralmente seu trabalho se limitava á orientar o imbecil do outro lado da linha á reiniciar o computador, ou reconfigurar os firewalls, ridiculamente simples.
Além disso, rendiam doze horas de privacidade no escritório, onde a conexão á intenet era mais rápida que em sua casa, onde havia café á vontade, ao lado de duas lanchonetes de boa qualidade, ali ele ouviria música de seu MP-3 e esperaria um eventual contato de Vanessa, a telefonista.
As primeiras quatro horas seguiram sem problemas, até que, perto das onze da noite, Vanessa ligou avisando que tinha uma chamada.
Romeu vestiu os fones, tirou o volume da música e deu pause no video pornô que assistia no rebtube, pigarreou:
-Suporte técnico, Romeu, boa noite?
A voz do outro lado da linha era macia. Uma mulher, ela parecia ansiosa, não se apresentou, mal respondeu ao boa-noite de Romeu, e foi logo despejando os problemas técnicos pelos quais passava. Não parecia nada de muito complicado, ela tinha problemas para obter conexão com a internet, precisava enviar cinco relatórios ainda naquela noite ou teria problemas.
Romeu começou com o básico, sugeriu que ela reiniciase o computador, o que ela fez meio á contra-gosto e entre resmungos. Foi rápido, ela disse que funcionara e agradeceu desligando.
Romeu gostou da voz da mulher. Era uma bela voz.
"Certo que é uma gordona." pensou ele.
Retomou as atividades, não terminou de assistir o video, a pornografia não estava lhe agradando, muito gráfica. Achou que um filminho erótico com história seria mais legal. Pensou em Os Sonhadores, mas desistiu, muito gay. Tocou Transformers 2 no PC e assistiu sem desgrudar os olhos da tela nem para ir ao banheiro.
Duas horas depois, desceu até a rua, conversou rapidamente com Waldir, o porteiro, correu do outro lado da rua, comprou um chesse coração, dois bom-bons e uma fanta dois litros, voltou para o escritório, e, ainda nem tinha sentado quando o telefone tocou, Vanessa e outra ligação.
-Suporte técnico, Romeu, boa noite?
Era, de novo, a mulher de antes. Ela respondeu a saudação de Romeu, e disse que a internet funcionava mas ela não conseguia acessar seu e-mail. Precisava dele para trabalhar, tinha muito o que fazer... Estava exasperada, mas não foi grossa, sorte dela, quando os clientes eram grosseiros Romeu pedia-lhes que aguardassem um minuto e ia fazer alguma coisa. Ia ao banheiro, lia uma revista, assistia um pouco de um filme, ou ouvia música. Dava um tempo ao grosseiro, ou grosseira para que se acalmasse. Ali, porém, não faria isso. Pediu algumas informações, avaliou as alternativas e sugeriu que ela mexesse nas configurações da internet. A orientou, ela seguiu suas instruções e, ao final, logrou sucesso.
Ela agradeceu novamente e desligou.
Romeu ouvira mais da voz dela nessa ligação... Mais que isso, ouvira respiração dela enquanto seguia suas instruções sem dizer nada. Suspiros, inspiraçoes e expirações intercalados por "E agora?", "Apareceu uma caixa de texto.", "é assim?". Romeu gostou. Fora quase... Ele pensou "erótico", mas se corrigiu para "romântico" antes de pensar em toda a sentença. Romeu corrigia os próprios pensamentos como se fossem monitorados, era um de seus hábitos.
Ele seguiu com sua rotina, comeu o lanche e bebeu muito refrigerante enquanto assistia em sequência dois episódios de Smallville, mijou feito um cavalo quando finalmente foi ao banheiro.
Logo depois, Vanessa ligou, nova chamada. Por um instante ele desejou que fosse a sua interlocutora das últimas duas vezes, mas não era, era um sujeito com problemas para abrir arquivos recebidos por e-mail, Romeu solucionou o problema rapidamente.
Ás três e meia, quando se decidia se veria outro video pornô ou Máquina Mortífera 4 outra ligação, ele respirou fundo e disparou:
-Suporte técnico, Romeu, boa noite?
Era a mulher de antes. Parecia mais aliviada, menos tensa. Perguntou do outro lado da linha se era o mesmo rapaz com quem ela falara antes, Romeu sentiu um pouco de desapontamento, ela sequer lembrava de seu nome ou voz? Mas se resignou rapidamente. Ele era um sujeito pouco notável mesmo ao vivo. Estatura mediana, cabelos e olhos castanhos, rosto comum, pés tamanho 41... Romeu não era alguém que se destacasse na multidão.
Ele confirmou que sim, era o mesmo técnico das vezes anteriores.
A mulher do outro lado da linha agradeceu com sua voz agradável, mais agradável agora, que ela não estava envolvida com os afazeres do trabalho. Ela disse que era bom saber que podia contar com a ajuda da empresa de Romeu, e que era melhor ir pra casa dormir agora, ás quatro da manhã do que ainda mais tarde, afinal, ela teria que trabalhar na manhã seguinte e qualquer forma.
Romeu disse que ela não precisava agradecer, que ele apenas fizera seu trabalho, ajudando-a a fazer o dela. Disse que se sentia bem em saber que ela conseguira terminar o serviço e poderia voltar pra casa e curtir o resto da noite com o marido ou namorado. Essa parte ele fizera questão e incluir, sentia necessidade de sondar sua interlocutora para descobrir se ela era comprometida. Ela, porém, era muito discreta, e apenas agradeceu novamente, desejando á Romeu uma boa noite e um bom trabalho.
Antes de se despedir, Romeu perguntou:
-Qual o seu nome?
A voz maviosa da mulher irrompeu do outro lado da linha:
-Julieta. Tchau.
Ela desligou antes que Romeu fizesse a associação óbvia, que levou alguns segundos.
Durante algum tempo ele imaginou se não seria uma brincadeira a mulher. Ela fora discreta até no agradecimento, talvez estivesse apenas querendo encurtar a conversa com o que parecia uma boa piada.
Romeu tentou seguir assistindo seriados ou ouvindo música, mas
àquela altura, tornou-se impossível.
Foi até a sala de Vanessa, e inventando um pretexto, conseguiu o nome e telefone da empresa da última chamada.
Voltou à sua sala e vasculhou os arquivos da empresa atrás de informações.
Era uma butique, vendia roupas, acessórios e velas aromáticas, chamava-se Canto chique, o que deixou Romeu algo desgostoso, a proprietária, porém, não se chamava Julieta, e sim Erotildes Gomide Rêgo. Romeu entendeu que alguém com aquele nome preferisse escondê-lo. Estava prestes á abandonar aquele surto de curiosidade quando encontrou o arquivo digital com as informações de Erotildes, ela era uma mulher de certa idade, 56 anos. A voz que Romeu ouvira era, sem sombra de dúvida, de alguém bem mais jovem.
Ele vasculhou o arquivo de empregados do Canto Chique, e ali encontrou, Julietta Veroneze Farias, assim mesmo, com dois "T". Procurou as informações dela, vinte e sete anos, um á mais do que Romeu. Tinha uma foto, 3x4, mas nítida. Ela tinha cabelos pretos compridos, olhos castanho claros, era bonita. Magra. Seria casada? Não havia ese tipo de informação nos arquivos de funcionários. Ele não assistiu mais nada, nem ouviu música.
Julietta fora tão gentil quando ligara pela última vez. Ligara específicamente para falar com ele, agradecê-lo.
Estaria ela, de algum modo, interessada por ele? Por sua voz, por sua eficiência...? Ou ela era apenas uma dessas raríssimas pessoas muito legais que conhecemos de vez em quando? Essas que dão "bom dia" pra qualquer porteiro ou guarda e agradecem por serviços ou ajuda com mais que um "brigado" rápido enquanto vão embora?
Romeu pensava nisso.
Estava sozinho á bastante tempo. Tinha muitas obrigações, não sabia se era, de fato, o momento de se envolver com alguém. Além do mais, ele não era a pessoa mais feliz do mundo com a própria aparência. Aprendera á conviver consigo, o que é bem diferente de ter uma auto-imagem saudável, de qualquer forma, era como Romeu se sentia.
Mas refreou-se. Estava mantendo relacionamentos imaginários sem sequer saber se Julietta tinha algum interesse nele ou era apenas uma pessoa gentil.
Tentou pensar em outra coisa. Assistiu Lost, mas não fazia sentido, tentou Máquina Mortífera 4, mas não funcionou. O problema era ele, era Romeu. Ele não parava de pensar naquela estranha.
Seu plantão terminou. De manhã ele se despediu de Waldir, e caminhou com Vanessa até o ponto de ônibus falando amenidades. Quando o ônibus dela chegou se despediram.
Romeu andou até o parque onde tivera seu pequeno acidente na noite anterior. Chegou a tomar o rumo de casa, mas estacou. Lembrava do endereço da Canto Chique. Seria uma caminhada de meia hora até lá. Depois, poderia pegar um ônibus, ir pra casa e dormir. Naquele momento precisava, ao menos, saciar a curiosidade.
Andou pelas ruas, imaginando se seria um momento mágico ou cósmico quando encontrasse Julietta, se ela, ao olhá-lo nos olhos saberia quem ele era, se ela reconheceria sua voz se falasse. Andou criando fantasias, de como seria se ele tivesse muito dinheiro, se pudesse levá-la para jantar em um restaurante sofisticado, ou se fosse mais bonito, e ela, ao olhá-lo, mesmo sem reconhecê-lo, o desejasse.
Imerso nesses devaneios caminhou sem perceber até o Canto Chique. Ao chegar, deparou-se com a loja aberta. Olhou na vitrine procurando por Julietta, mas viu apenas os produtos que a loja vendia. Entrou fingindo desinteresse e olhando ao redor até ver, atrás do balcão, aquela moça. Quase da mesma altura que Romeu, os cabelos pretos escorridos por cima dos ombros, os olhos castanhos, algo inchados, provavelmente por dormir pouco. Mas a foto 3x4 não lhe fazia justiça, Julietta era muito bonita, tinha lábios bem desenhados, um nariz arrebitado de bem ajustado em seu rosto, e era, de fato, gentil. Ao pousar os olhos sobre Romeu, sorriu, um sorriso lindo, como se ele fosse um amigo que ela não via á muito tempo. E lhe desejou bom dia com a mesma voz canora que ele ouvira ao telefone.
Romeu, porém, congelou. Ao perceber a dimensão da beleza de Julietta, ele não conseguiu dizer nada, sorriu sem jeito e saiu pedindo desculpas num sussurro.
Passou meses pensando nela. Torcendo para que ela telefonasse num de seus plantões. Mas isso não aconteceu. Nem ele tinha coragem de voltar ao Canto Chique depois do papelão que fizera na primeira incursão. Deixou aquilo de lado. Aprendeu a conviver com o vexame e apenas com a possibilidade.
Mal sabia ele que, por muito tempo, dois pensamentos se dividiram na mente de Julietta. Aquele técnico em informática que a atendia no suporte técnico da consultoria empresarial e se chamava, imagine, Romeu. Ela ligou várias outras vezes para o suporte técnico esperando ouvir sua voz de novo, mas isso jamais aconteceu, e ela imaginou que, talvez, os técnicos fossem de uma empresa terceirizada que não trabalhasse mais para a consultora, de modo que ela jamais o ouviria de novo.
Outro pensamento recorrente era o daquele jovem que, na manhã seguinte ás desventuras de Julietta na internet e seus breves diálogos com Romeu, entrou na loja de manhã, e a encarou como se ela fosse a mulher de sua vida por breves instantes para então, sair pela porta.
Julietta pensava com frequência, também, naquele homem, mas superou isso, e aprendeu a viver apenas com a possibilidade.
Romeu e Julietta moravam á oito quarteirões um do outro, mas jamais se cruzavam devido aos horários. Eram, inclusive, frequentadores do mesmo supermercado e da mesma locadora. Um dia, Romeu devolveu um DVD alugado na manhã seguinte por Julietta. Mas eles jamais se viram ou ouviram novamente.
Em algum lugar William Shakespeare certamente balançava a cabeça de desgosto ao vê-los.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Velho amor... Novo amor...


Será que sabemos? Será que percebemos quando o amor acaba?
Pois o amor, igual á tudo na vida tem seu início, algum momento especial que nenhum de nós percebe quando acontece. Quando percebemos, estamos apaixonados. Não sabemos desde quando, não sabemos quando aquela excitação, aquela sensação na boca do estômago, aquele turbilhão de novidades que se manifestam nos cinco sentidos, um movimento captado pela visão, um timbre diferente durante uma brincadeira, a temperatura da pele durante um abaço, um cheiro enquanto se acariciam, ou o sabor de um beijo, tudo isso... Não temos nem a mais remota ideia de quando isso se tornou amor.
Sabemos porém, precisamente quando o amor acaba. Temos o instante exato. Um momento de definição, uma fronteira ou divisa que o amor não consegue superar. Pode ser o tom de voz em um comentário. Um gesto feito com desdém... Na verdade, é igualmente difícil saber quando o amor acaba, mas é fácil lembrar quando percebemos isso pela primeira vez...
Ele sabia qual era esse momento. Estava apaixonado haviam mais de dois anos. Obviamente não sabia quando o amor começara. Fora um namoro nascido à fórceps. Todos insistiam, todos lhe avisavam, a guria mais bonita da rua estava "na dele", ele, de certa forma, já sabia. Conversava com ela com fingido desinteresse, á despeito de seus braços, nariz, cabelos, e todo o resto, á despeito das sardas, dos dentes assimétricos de forma simétrica na arcada inferior, ele mantinha uma distância algo cavalheiresca, algo desinteressada. Era proposital, era o jeito dele flertar. Alguns eram gentis demais, outros gentis de menos. Ele se mantinha entre a educação e o desdém, tentando de forma intuitiva não exagerar nem pra um lado nem para o outro. Mas sabia que ela gostava dele, fosse e outro modo ela não ligaria pra sua casa todo dia de noite pra que se encontrassem em frente ao prédio e conversassem, então, á despeito da imagem de inocente que ele lutava pra passar aos seus amigos, ele sabia.
Duas coisas o impediam de tomar uma atitude mais drástica: Primeiro, ele ainda não havia escolhido um momento para seu "ataque", embora não gostasse de chamar assim. E, mais imortante: Ele era muito, muito, muito tímido.
De modo que as coisas seguiram em banho maria até que ela tomou uma atitude e finalmente a relação alçou voo.
Foi um namoro de altos e baixos. Ele, imediatamente passou a tratar a relação como um namoro. Ela, por outro lado, pareceu precisar da "aprovação" de vários amigos, e amigas e parentes. Como se ele, por si só, não justificasse a atração que ela lhe dirigia, e ela precisasse da confirmação de outrem.
Ele não se magoou. Ali ainda não a amava. Era apenas uma garota bonita, pouco mais que um símbolo de status. Além do que, ela o afastava, o repelia, de modo que ele não tinha certeza se as coisas engrenariam. Ela o tratava de um modo que parecia que era interessante estar com ele em certos momentos, e não tanto em outros.
Ela tinha muitos amigos, muitos compromissos, muitos programas, ele era fechado, sisudo, ensimesmado... E ele sabia, era alguém de convívio difícil.
Mas, á despeito disso, fosse por que sentimentos iam sendo nutridos naquela toada torta, fosse por que o namoro deles era conveniente, as coisas seguiram seu rumo.
Seguiram juntos, subitamente o relacionamento virou namoro, nem tudo melhorou, o sexo, por exemplo, era complicado, ele não fazia ideia do porque, saíra, pouco antes, de um relacionamento onde o sexo era fácil e aparentemente satisfatório para a outra parte, e cósmico para ele. No recém nascido novo namoro, porém, faltava entendimento, faltava diálogo, faltava interesse mútuo, de certa forma. Mas uma relação se baseia em mais do que atividades de alcova, e o namoro seguiu.
Ele aprendeu á admirar as qualidades dela, ela, aparentemente, aprendeu á conviver com os defeitos dele.
Haviam brigas, discussões, ela ficava furiosa, ele se vestia com tanta ironia e sarcasmo que ela provavelmente o mataria se estivesse armada... Mas, por estranho que pareça, áquela altura, eles se amavam. Ele, pelo menos, a amava muito. Tivera chances de traí-la, de encontrar a satisfação física que aquela relação não lhe trazia (exceto uma vez, em que ambos fizeram amor de comum acordo num quarto na casa da praia. Aquela vez fora sublime, e tudo que ele queria que fossem todas as manhãs.), mas sepre optara por ser fiel, embora nem sempre fosse honesto, afinal, não verbalizava suas frustrações, nem tentava conversar á respeito.
Seguiria naquela vida pra sempre, se imaginava casado, se imaginava pai dos filhos dela, e, por estranho que pareça, era um pensamento agradável.
Ele não sabia quando começara, mas a amava, e amava, como já foi dito, muito.
Uma vez, porém, estava na aula, se preparava para o vestibular, não estudava muito, estava estudando mais para manter a proximidade com o ambiente acadêmico, sabia que passaria nas provas. Ainda era fiel, embora nem sempre fosse devotado, e os problemas da relação persistissem. Ele ainda a amava.
Eis que houve um dia, um dia em que chegou á sala de aula uma moça. Ela era linda, era atraente. Era diferente.
Ele se encantou com ela. Claro, a primeira coisa que vemos é o físico, e foi isso que o atraiu primeiro. Ela sentava á sua frente, um pouco mais á direita, e durante as aulas mais chatas, tudo á que ele prestava atenção era à sua cabeleira ruiva na fileira ádiante. Ele queria se aproximar, gostava de desfrutar da companhia de uma bela mulher, podia ser amigo de uma, já o fora diversas vezes na vida.
A proximação não foi fácil, na primeira vez em que tentara contato, agira sem pensar, e percebeu que ela não gostara.
Mas insistiu, estava curioso, gostava dela, de seu jeito. Ela era tão diferente das mulheres que conhecia.
Entretanto, conforme aprendia sobre aquela estranha, e ela se tornava uma amiga familiar, ele foi percebendo o quanto ela o atraía, e não só fisicamente. O quanto ansiava pelas ligações dela, por vê-la novamente no dia seguinte, e o quanto desejava estar perto dela, e não via nada de errado nisso.
Foi nesse instante, quando percebeu que estar perto dela parecia certo, que ele notou que o amor antigo acabara.
Ele não sabia se o que sentia naquela hora era amor, por Deus, ele sequer sabia o que aconteceria á seguir, ela tinha namorado, parecia amá-lo muito, ele tinha apenas uma certeza em seu mar de dúvidas. Se ele se sentia daquela forma, o antigo amor acabara.
Foi com o coação partido que ele terminou o namoro que vivia já haviam dois anos, á despeito da proposta de um "tempo", ele achou que não seria justo deixar alguém com quem se importava na reserva de suas afeições enquanto esperava pelo que considerava algo melhor.
Ele a deixou, com o coração partido, com a alma em farrapos, mas feliz, feliz pois ela estava livre pra encontrar alguém que amasse de fato, e ele estava livre, senão para ser amado por aquela nova e admirável mulher, ao menos para amá-la, em silêncio se fosse o caso.
Ele não sabia quando seu amor acabara, mas sabia quando percebeu isso:
Foi quando sentiu outro aflorar.