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segunda-feira, 31 de maio de 2010

Dúvida


Aloísio acordou e foi arrebatado, quase instantaneamente, pelas lembranças da noite anterior. Tudo ficou muito claro á despeito da escuridão quase absoluta do lugar onde estava. Pensou em gastar algum tempo recriminando-se, mas não tinha certeza se valeria de alguma coisa, afinal, o que estava feito estava feito. O que deveria fazer? Elegeu rapidamente sua primeira prioridade ao perceber que estava nu. Precisava vestir-se. Sentou na cama com dificuldade, tentando manter o silêncio. Não fazia ideia de que horas poderiam ser. Levantou-se, e deu um passo, pisou em uma peça de roupa. Apanhou-a e reconheceu como sendo sua. Vestiu a peça sem respirar. Ele sentiu o tecido frio da camiseta sobre a pele quente dos ombros e dos braços. Ajeitou-se fazendo o mínimo ruído possível, passando a mão para desfazer o amarrotado da roupa. Procurou suas roupas de baixo tateando com cuidado a cama onde dormira, mas estava escuro, e ele não fazia ideia de onde a peça poderia estar.
Olhou no chão, abrindo bem os olhos para tentar superar a escuridão que inundava o cômodo, mas não logrou sucesso, mal conseguia distinguir as formas que percebia pelo chão. Chamou-lhe a atenção uma pequena peça amarfanhada, embolada perto do pé da cama, inclinou-se em silêncio e a apanhou, desenrolou a peça com cuidado, achando o toque do tecido algo estranho. Não era o que procurava, era uma calcinha. Largou-a rápido, não com nojo, mas acometido por uma súbita onda de recato.
Ele que, se não estava muito enganado, tivera aquela peça ínfima e íntima de roupa entre os dentes algumas horas atrás, agora achava que não era correto a ficar segurando.
Tateou o chão ao redor da cama, não usava calças e não se sentia bem agachando em demasia naquele estado. Encontrou suas calças. Vestiu-as rápido, e dirigiu-se, tão silenciosamente quanto possível à porta do quarto, entretanto, escuro que estava, deu uma topada violenta no pé de uma poltrona. Gritou em silêncio, soltando muito ar pela boca semi cerrada. Segurou a maçaneta da porta e começou a girá-la com o máximo cuidado, mas estacou.
Que rumo de açao era aquele que estava tomando? Fugindo feito um ladrão na madrugada (Ou, pelo menos ele achava que era de madrugada...) e deixando ela sozinha ali?
Ela, Roberta, á quem ele considerava tão especial á tanto tempo, e agora, depois de um deslize, um ótimo deslize, diga-se de passagem, ele colocaria toda a relação que partilhavam a tantos anos á perder por causa de sua covardia? Por causa de sua vergonha?
Não que houvesse nada de vergonhoso no que ele e Roberta haviam partilhado na noite anterior, de forma alguma. Eram ambos jovens, livres e desimpedidos, e não deviam nada á ninguém. Chegaram á casa de Roberta para assistir um filme e comer sorvete, alheios ao inverno inclemente que castigava Porto Alegre naquele mês de junho. Assistiram O Poderoso Chefão, objeto de culto de Aloísio, e pela qual Roberta nutria certa reticência, e comeram metade de um pote de sorvete sabor Alpino.
Após o filme, ligaram a TV e ficaram jogados nos almofadões do chão rindo e amaldiçoando a própria gula. Aloísio e Roberta eram amigos de longa data, já haviam feito aquilo mil vezes, mas, naquela noite, havia algo de diferente.
Aloísio não saberia explicar, talvez fosse um brilho diferente no vermelho dos cabelos de Roberta, talvez fosse a alvura de sua pele, o rosado de seus lábios, ou seus olhos estivessem mais encantadores do que de costume, ou talvez ele apenas tenha renegado a máscara de fingida distância que usava para disfarçar seu profundo apreço por ela, nutrido desde sempre.
Ele tomou a mão dela entre as suas e a beijou. Ela sorriu pra ele como quem sorri para um amigo, e ele, talvez por alguma forma tola de orgulho masculino ferido, sentiu-se diminuído, e tocou seu rosto, não como um amigo. E a beijou nos lábios. Roberta pareceu surpreendida no início, mas correspondeu. Ele a tomou nos braços e a levou para o quarto, despiram um ao outro, com pressa e em silêncio, ouvindo apenas o som das próprias respirações e os estalos dos beijos que trocavam.
Aloísio e Roberta fizeram amor. Não fora apenas sexo, não entre das pessoas que se conheciam á tanto tempo e confiavam tão profundamente uma na outra.
Aloísio sabia que fora muio mais do que sexo, e isso o assombrava. Assombrava por que Aloísio conhecia sua falta de jeito no tocante á relacionamentos, ele sabia, em seu íntimo, que era muito melhor amigo do que namorado,e isso que nem era um amigo tão bom assim. Em relacionamento Aloísio era tão emocionalmente retardado que fazia um esforço sobre-humano para não agir como seus instntos sugeriam, com iss, os relacionamentos de Aloísio eram exaustivos pra ele, tão exaustivos que ele perdia o ânimo em pouco tempo, e logo estava no dilema de voltar, ou não, á vida de solteiro.
E, sendo honesto como era, quase honesto demais (Mas apenas quase.), Aloísio logo terminava seus relacionamento que raramente eram duradouros.
E agora ali estava ele, sentindo-se o último dos homens enquanto executava uma slenciosa fuga. Ele estava apavorado, apavorado por que imaginava estar colocando á perder uma amizade que prezava como poucas, por que estava afastando alguém com quem tinha uma conexão que considerava especial, mas, ao mesmo tempo, apavorado por que a noite anterior fora perfeita. Excetuando-se a culpa decorrente, o medo de perder o que tinha, tudo havia sido ótimo. Bonito. Natural. Por que o que tinha com Roberta sempre foi mais do que amizade, sempre conviveram com uma cúmplice sombra de flerte que oxigenava a amizade, como se um desse ao outro sinais de que eram do sexo oposto, de que poderia haver mais ali. E Aloísio sempre percebia isso, fosse ao ouvir a risada cristalina dela, que tinha uma qualidade de risada infantil, fosse quando se perdia admirando seu perfil refinado, ou quando a olhasse nos olhos enquanto ela falava.
E agora, ali estava Aloísio, com o metal frio da maçaneta da porta do quarto de Roberta na mão, amaldiçoando sua própria conduta, seu jeito de ser. O que faria? O que faria? Como conseguiria trocar certo, a amizade duradoura e cúmplice que tinha com Roberta pelo duvidoso e um relacionamento? Ainda mais doloroso por que o "duvidoso" em questão era de responsabilidade sua, e sua apenas.
Roberta suspirou, um suspiro longo, revigorante. E Aloísio quis se virar. Tudo o que ele queria era se virar. Mas não sabia se devia.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Resenha Cinema: A Estrada


Há filmes que são injustiçados pela crítica, outros são injustiçados pelo público, e, há ainda o caso dos filmes injustiçados pelo circuito exibidor. Só esse fenômeno explica as salas de cinemas de Porto Alegre inundadas com Alices, Homens de Ferro, Titãs furiosos enquanto um filmão como A Estrada permanece á mais de um mês esquecido em três salas de circuito alternativo, com algumas em horário único.
Ontem fugi á minha regra, e aceitei um convite pra pegar uma matiné, sessão das cinco da tarde na Casa de Cultura Mário Quintana (Nunca sei qual sala é a Norberto Lubisco, qual é a Eduardo Hirtz e qual é a Paulo Amorim...), lar tradicional de filmes que já saíram de cartaz, ou que não têm público, mas testemunhas.
Já vi bons filmes lá, Gladiador, O Sexto Sentido, mas é uma sala acanhada, a tela pouco maior que uma televisão bem grandona, som meia boca, mas enfim, é uma sala físicamente confortável, onde se pode espichar as pernas e se recostar pra ver um bom filme. E foi exatamente o que, na companhia de umas outras dez testemunhas, vi ontem, um bom filme. Muito bom, até.
A Estrada narra a luta diária de um homem (Viggo Mortensen, cada vez mais entrando pro time dos maiores intérpretes de sua geração.) e seu filho (Kodi Smit-Macfee, o piá parece ter futuro) em um mundo que acabou.
Não temos muitas pistas de como o mundo acabou, mas temos a impressão que que eventos climáticos podem ter sido a causa do mundo frio, onde animais e plantas pereceram, a eletricidade não existe mais, e nem a civilização.
No cenário estéril e cinzento criado com maestria pelo fotógrafo Javier Aguirresarobe, pai e filho andam inexoravelmente em direção ao sul, á costa, onde esperam encontrar uma recompensa para sua tenacidade.
Não é uma jornada fácil para os personagens, que convivem com a ameaça da inanição, de uma natureza moribunda e, mais perigoso, dos demais sobreviventes da terra devastada, então habitada por canibais, ladrões e andarilhos.
O pai luta para manter o ânimo do menino contando histórias de coragem e bravura, prometendo que eles, pai e filho, são os bons sujeitos, os que carregam o fogo interno. A jornada, porém, é muito mais de teimosia do que de fé, e o objetivo, é apenas um pretexto para seguir caminhando, procurando por comida e abrigo, e não se entregarem á um destino cada vez mais obscuro.
Ao longo dessa jornada, o personagem de Mortensen se vê mais de uma vez em situações onde sua boa índole é colocada à prova, e ele tem que escolher entre manter a fachada de normalidade e decência com a qual tenta proteger seu rebento, e a necessidade de agir como um sobrevivente e garantir o amanhã do menino á qualquer custo, tudo isso enquanto se vê assombrado pelas lembranças de sua esposa e da vida que levava antes da tragédia que vitimou á ele e ao mundo (Flashbacks iluminados com uma luz dourada linda).
Não é uma jornada fácil para o público também. A atmosfera opressiva formada pela boa escolha das locações, da fotografia, da trilha sonora de Nick Cave (Excelente.), a direção segura de John Hillcoat e a atuação dos protagonistas e do elenco de coadjuvantes (Que traz nomes como Charlize Theron, Robert Duvall, ótimo, e Guy Pearce, se especializando em pontas), ás vezes se torna pesada, o que está longe de ser um defeito, na verdade é sinal da lição de casa bem feita pela equipe técnica.
No final das contas, A Estrada resulta em um filme excelente, que talvez não tenha o ritmo arrastado do livro de Cormack McCarthy, mas que não deve, de forma alguma, ofender aos fãs do autor, e ainda traz um olhar diferente ao batido tema do mundo pós-apocalíptico com uma história intimista galgada, não em sequências de ação avassaladoras, mas no amor de um pai por seu filho. Á despeito do tom pesado do filme, é um belo olhar.

"Se ele não é a palavra de Deus, Deus jamais falou..."

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Frankenstein


Ele se olhava no espelho e sabia exatamente o que estava vendo. Não quer dizer que gostava do que via. Pele demais, na própria opinião. Se fosse vaidoso ou burro, ou tivesse dinheiro sobrando, talvez pudesse cogitar fazer uma plástica. Remover o excesso de pele. Mas não era vaidoso, nem tinha dinheiro sobrando. Olhava o espelho e contabilizava as imperfeições. As sombrancelhas demasiado espessas, o nariz bobo, os olhos miúdos, os dentes em desalinho. Ele olhava aquele sujeito no espelho, e sabia exatamente quem ele era.
Era um bom sujeito. Pelo menos assim o considerava. Não era um sujeito fácil, podia ser muito teimoso, ás vezes, era uma pessoa de difícil convívio, não gostava muito de falar sobre certos assuntos, e sobre outros falava em excesso. Nem sempre estava disponível para os amigos. Talvez, seu maior defeito fosse esse. Ele gostava de estar só, por isso faltava á seus amigos quando eles o queriam por perto. Compensava isso tentando estar presente quando seus amigos precisavam, o que nem sempre conseguia, mas ao menos tentava, e achava que era justo.
Era avesso á conhecer pessoas novas, era tímido, cauteloso, sim, mas não covarde. Não tomava decisões impensadas e não arrastava ninguém para sua melancolia quando ela se apresentava. Era irônico, sardônico, sarcástico, debochado, mas não mau. Pelo menos não o tempo todo.
Aquele sujeito, no espelho, sabia quem era. Era fruto de seu ambiente e das mazelas de sua vida, claro, mas era, acima de tudo, um produto de escolhas próprias. Aquele sujeito era quem escolhera ser. Levara mais de vinte anos para ser aquela pessoa, e, com mil demônios, ele até que se orgulhava disso.
Não que fosse motivo de orgulho, todas as pessoas são assim, elas são fruto de seu ambiente e de sua tragédia pessoal, seja ela abissal ou microscópica (Embora a tragédia pessoal de cada um tenha a dimensão que cada um está disposto á outorgá-la.), mas acima de tudo, somos quem queremos ser. Somos frutos das escolhas que fazemos á cada encruzilhada da vida.
Aquele sujeito no espelho sabia disso, e abraçava a responsabilidade de ser o doutor Frankenstein de seu próprio monstro de retalhos. Aquele camarada de cabelo arredio e sorriso contido refletido ali estava ciente de ser quem era e de ser responsável por ser quem era. Ele ria com flagrante ironia daqueles que não sabiam quem eram, que ainda não haviam desenvolvido a própria identidade fosse por não se responsabilizar pelas próprias escolhas, fosse por puro descaso.
Aquele cara no espelho achava que todos tinham a obrigação para consigo mesmo de saber quem eram. E de se responsabilizar por quem eram e por como afetavam aqueles ao seu redor.
E ele, ao olhar o camarada refletido no espelho, não pôde se furtar o prazer de dizer:
"Está vivo!"

Miau?


Ela era uma sombra, uma presença felina e abstrata, quase como aquele bichano que, vez por outra aparece nos fundos da sua casa, e você alimenta, e afaga e recebe um pouco de atenção em troca, mas apenas brevemente, pois aquela criatura é demasiado livre, ou demasiado desconfiada, ou ambos, e some na noite outra vez. E aí, o que você tem sempre, por interessantes que sejam, são apenas vestígios.
Um suspiro, um sorriso, uma saudade
Fragmentos, nunca inteira de verdade
E, também, tu nem sequer tem o direito de reclamar, afinal, o que foi que tu ofereceu de concreto? Muito pouco. Claro, tu estava ali, quando era conveniente, e isso é quase nada. Mecanismos de defesa excessivamente funcionais de parte á parte. A relação de ambos é como devem ser os abraços entre dois autistas.
Um pé, os olhos, os lábios, nariz, a mão
As pequenas gotas de uma grande abstração
Tão longe um do outro, quem sabe, um pequeno passo á cada dia, doze séculos pra cumprir toda a distância, mas quem estaria disposto á dar o salto? Esperaria-se que a felina o fizesse, afinal, os gatos têm o dom da agilidade e do equilíbrio. Mas ainda não... Ainda não...
Embrulhos, alôs, mexendo com minha cabeça
Presentes adoráveis e ela uma não-presença
Paciência, diriam, alguns, é virtude dos sábios, tu é paciente, pra não dizerem que nada tem em comum com os sábios. Mas vez que outra, te pega pensando, e se?
Palavras cálidas ao telefone, verdadeiras mas distantes, como atrair essa felina, tirá-la de sua toca?
Atiçar sua curiosidade? Ela é cautelosa em demasia.
Ela é uma gata escaldada, eu uma banheira de água fria.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Humano Demais.


Isabela se aproximou e emaranhou o cabelo de Otávio. Assim como adultos fazem quando veem uma criança fofucha que merece um afago. Ele passava do lado dela e ela se inclinou pro lado, como se pra olhá-lo bem, por inteiro, e sorriu, ato contínuo, esfregou a mão espalmada sobre a cabeça de Otávio, escabelando-o. Ainda sorrindo, piscou-lhe o olho esquerdo, e passou a mão em seu ombro enquanto seguia sem caminho.
Otávio sentiu como se tivessem lhe chutado as gônadas e cuspido em sua cara.
Ela, a Isabela, para Otávio, a guria mais gata do terceiro ano, lhe tratava como se trata ao primo retardado que se vê no Natal.
E ele era louco por ela. Ela... Linda, quase um metro e oitenta de altura, esguia, mas não uma tábua, os cabelos castanho-escuros lisos emoldurando-lhe o rosto de feições distintas para então caírem sobre os ombros repletos de sardas, o sorriso franco, os olhos, um capítulo á parte, com aquela dobrinha sob a pálpebra inferior, dando uma aparência mais franca ao sorriso, e fazendo com que os olhos sorrissem com facilidade. Ah, a Isabela.
O Otávio era apaixonado por ela desde o sexto ano do ensino fundamental. Haviam feito alguns trabalhos juntos ao longo dos últimos anos. Ele lembrava de todos. Artes na sexta série. Ele desenhou, ela pintou e apresentou. Matemática na sétima série, ela fez tudo, e foi amável o suficiente pra deixar ele assinar o nome na capa e garantir as nota que lhe salvaria o bimestre. Na oitava, Português, um grupo grande ela e ele mal se falaram, e Biologia, ele fez tudo, ela só fez a apresentação, que Otávio tinha vergonha de fazer, e tirou nota mais alta que ele, que nem se importou, na verdade, achou muito justo. Ele até mencionou o fato numa conversa no ano seguinte, mas ela não lembrava, apenas sorriu, arrancando-lhe um suspiro.
No primeiro ano do Ensino Médio não fizeram nada juntos, mas no segundo trabalharam juntos em Química, trabalho em dupla, ambos sentados côxa á côxa nas classes duplas do laboratório, Otávio fazendo esforço de monge zen-budista pra prestar atenção ás fórmulas das experiências quando as intermináveis pernas de Isabela estavam ali, ALI(!), tão perto, ao alcance da mão, e ao mesmo tempo, tão inatingíveis.
Isabela não era apenas atraente. Na verdade, era bem provável que, se fizessem uma pesquisa entre os alunos do colégio baseada em opinião aleatória, Isabela não estaria entre as dez meninas mais votadas no quesito beleza. Mas, se perguntasse "Isabela é bonita?" a imensa maioria diria que sim. Ela era bonita, quem olhava por un instante e prestava atenção percebia isso claramente, entretanto, ela, á despeito da altura, não tinha o tipo de beleza que saltava aos olhos. Não era uma beleza óbvia, era uma beleza que requeria admiração aos detalhes. Bastava olhar e eles estariam ali, todos os pequenos detalhes que faziam de Isabela uma menina tão bonita.
E Otávio tinha a dedicação necessária. Embora não houvesse, em primeiro lugar, se apaixonado pela aparência de Isabela. Foi pela personalidade dela. Ela era dessas gurias legais que, em algum momento da adolescência, todo o guri quer ter como melhor amiga, ou, com muita sorte, como namorada. Tinha personalidade forte, era expansiva, não era do tipo fadinha, patricinha, praticava esportes, tinha resposta pra qualquer insulto na ponta da língua, ria de piadas e assistia seriados e filmes maneiros, e não as porcarias que as outras gurias gostavam. Isabela era ideal. Era perfeita.
O problema é que Otávio não era.
Otávio era tão na média, mas tão na média, mas tão na média, que em uma enciclopédia de respeito, ao lado do verbete medíocre, poderia, sem nenhuma injustiça, haver uma foto de Otávio.
Ele tinha estatura média, peso médio, calçava 41, o tamanho médio do pé dos guris de sua idade, branco, cabelos e olhos castanhos, tirava notas médias, enfim, Otávio era uma ode ambulante á mediocridade. A única coisa em que Otávio se sentia, de fato, fora da média, era nos esportes, em que era particularmente ruim, e seu gosto musical, que ele considerava particularmente bom. O problema é que Otávio não via, em nenhum desses pontos, um que pudesse destacá-lo em meio á multidão. E Otávio tinha para si que, se não se destacasse em nada, Isabela jamais o veria como nada além daquele cara com quem ela fizera alguns trabalhos entre o ensino fundamental e o médio, e essa era uma perspectiva dolorosa. Não que Otávio fizesse drama á respeito. Ele gostava de Isabela, claro, mas não era um desses adolescentes deslumbrados que pensa que a sua namorada do ensino médio será o amor de sua vida até o final de seus dias, não, ele tinha a saudável consciência de que, um namoro do ensino médio é um namoro do ensino médio, e estava OK com essa perspectiva, a perspectiva que o assombrava era a de não ter oportunidade de tentar engrenar um relacionamento, por curto que fosse, com a menina de seus sonhos pelos últimos oito anos, mas como obter tal oportunidade quando se é tímido como era Otávio, quando se era tão repleto de insegurança que qualquer interação social que envolvesse mais de três pessoas lhe parecia um sacrifício e qualquer demonstração pública de seus sentimentos representava quase dor física?
Otávio não tinha ideia. E se sentia desolado por conta disso, por que o terceiro ano estava acabando, e, Otávio via se afastarem as possibilidades de ter uma chance de expôr seus sentimentos á Isabela se não tomasse uma atitude. Estaria relegado á emaranhadas no cabelo e sorrisos amigáveis, porém distantes, até a faculdade.
O que ele poderia fazer?
Uma declaração pública de amor, no meio do corredor. Se ajoelharia aos pés de Isabela e pegaria a mão delicada dela entre as suas e diria em bom tom, que a amava, que não conseguia pensar em outra coisa senão no amor que carregava por ela em seu peito.
Seria mentira, ele pensava em várias outras coisas. Além disso, baseado em sua experiência prévia, que não era lá das mais vastas, ele não poderia ter muita certeza de que aquilo que sentia por Isabela era, de fato, amor. Vá saber... Além disso, essa abordagem abria margem pra uma qualidade praticamente absoluta de humilhação pública, coisa com a qual Otávio não poderia arcar.
Ele poderia tentar algo como conversar com ela, mostrar que tinham vários interesses em comum, e então, chamá-la pra sair, como fazem as pessoas normais. Entretanto, em seu íntimo, ele tinha a impressão que que esse tempo havia passado lá pela oitava série, quando ele entrara em uma zona inóqua que não era nem a dos interesses amorosos nem a dos amigos, mas a dos colegas. Não, Otávio não podia mais dar-se ao luxo de abordagens normais. Era tudo ou nada, matar ou morrer.
E Otávio morreria.
Morreria pois era demasiado tímido, demasiado acomodado com as mazelas da vida para tomar uma atitude. Otávio fazia parte de uma geração de homens criados pela mãe, que cresceram sem exemplos masculinos válidos e presentes, e que temia tanto o fracasso que se abstinha de fazer qualquer tipo de tentativa.
Otávio sonhava com feitos simples que, em sua mente, ganhavam contornos épicos, mas que ele não tinha coragem de tentar, ele jamais se sentiria á vontade com o papel ao qual fora relegado nas afeições de Isabela, mas ao mesmo tempo, jamais se sentiria inconformado o suficiente para tomar uma atitude á respeito.
Otávio manteria sua postura amigável, sem grandes arroubos, e, vez que outra, teria seus cabelos emaranhados por Isabela, e, no futuro, talvez por outra moça que ele tornaria igualmente inatingível.
Otávio se conformaria não por não ser capaz de vencer as lutas, mas por ser incapaz de lutá-las.
Otávio era ridiculamente humano, e, de vez em quando, pensaria no que estava perdendo.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Maturidade.


Solange soluçou. Ela sentiu as contas do colar que usava balançarem e tocarem seu pescoço ao soluçar. Levou, instintivamente a mão ao peito, e fez com que o colar parasse de pender. Esfregou a mão direita na face, secando as lágrimas que escorriam abundantes de seu rosto.
Esfregou a mão molhada na colcha sobre a cama, e soluçou novamente. Levantou-se, foi até o banheiro. Olhou-se no espelho, a face vermelha, inchada, úmida de choro, não fazia justiça á beleza de Solange. Solange, com seus longos cabelos castanho-escuros desgrenhados após quase meia hora de choro na cama, mirou-se no espelho e sentiu raiva. Raiva de si mesma. Raiva da prórpria ingenuidade, raiva por ter-se entregado justamente á Ramiro. Agora, ali estava ela, sozinha no apartamento, colhendo os frutos amargos que ela mesma plantara ao fazer uma escolha errada.
Ramiro e ela se conheceram na faculdade. Ela fazendo Letras e ele Educação Física, partilharam uma cadeira de Antropologia Filosófica, sentavam perto um do outro, ele era bonito, atlético, usava uma barba por fazer, tinha cabelos castanhos sedosos, olhos risonhos, e era cativante, divertido, expansivo. Monopolizava as conversas, parecia se sentir bem sendo o centro das atenções, parecia se sentir seguro nessas situações. Á princípio, nada disso agradou á Solange, exceto a parte de ele ser bonito e atlético, o resto todo, ela achou bastante dispensável, repelente, até.
Solange admirava sua privacidade, era discreta e escolhia com extremo cuidado suas amizades.
Mas o destino é um gozador, e Ramiro, apesar de Solange parecer imune á seu charme, ou talvez por causa disso, tornou-a alvo de suas investidas. Ela fez pouco caso, tratou o fato como nada além de orgulho de um sujeito bonito que percebeu que uma mulher "ousara" não estar interessada nele. Mas as investidas de Ramiro prosseguiram, e, ela tinha de admitir, eram boas. Flores, poemas, livros, palavras gentis... Ele sabia o que estava fazendo.
Solange, ainda um pouco desconfiada, achou que não faria mal aproveitar um pouco, afinal, era solteira, estava livre e desimpedida, e não faria mal ceder um pouco á pressão de seus hormônios.
Resolveu aceitar um convite de Ramiro para sair.
Jantaram fora e foram á uma danceteria. Aconteceram os beijos, os amassos, mas não foi exatamnente como Solange esperava.
Ramiro tinha uma qualidade que Solange não esperava dele. Uma ternura inesperada, e ela gostou. Gostou tanto que, turbinada por boas doses de vinho, se entregou á Ramiro ainda naquela noite, algo que jamais imaginou que faria. Na manhã seguinte, sem o peso do álcool ou da inesperada amabilidade de Ramiro na cabeça, colou os pés no chão, dizendo á si mesma que fora apenas um deslize, nada de grave, nada para se arrepender até o fim de seus dias, e que seria melhor não ver mais Ramiro depois daquilo.
Entretanto, uma vez mais, Ramiro a surpreendeu, servindo-lhe café na cama, colocando uma flor em seu cabelo, e levando-a até o serviço.
Solange, ignorando todos os alarmes pessoais anteriores, apaixonou-se por Ramiro.
O encontro virou namoro, o namoro virou noivado, e dois anos após se formarem, Ramiro e Solange estavam se casando.
Durante todo aquele período, Solange jamais se arrependeu de ter aceitado o convite de Ramiro para sair. Ele seguia sendo amável, seguia sendo gentil, maduro, bonito e atlético. Ainda gostava de ser o centro das atenções, mas ela passou a achar até bonitinho.
Nos primeiros anos do casamento a vida de Solange foi um mar de rosas. Ela levava a vida que sonhava, casada com um marido atencioso e apaixonado, trabalhavam duro, mas conquistavam pequenos confortos passo á passo, e eram felizes.
Porém, o tempo passou, e Ramiro foi tornando-se distante. Á princípio Solange achou que poderia ser cansaço, ela sabia que a vida que levavam era cansativa, ela própria se sentia terrivelmente cansada de quando em quando, por isso relevou.
Mas o distanciamento foi aumentando, e mudando Ramiro. Ele deixara de ser gentil, ainda era educado, mas cada vez mais frio, agia como um hóspede na própria casa, tratava Solange com frieza, afastando-a.
Essa frieza mudou, transformando-se em indiferença, e por fim, em falta de educação pura e simples. Ramiro destratava Solange, não respondia á suas perguntas, não lhe dava as devidas satisfações, passava o dia todo fora de casa chegando só de madrugada.
A situação tornou-se insustentável. Solange chamou Ramiro para que tivessem uma conversa, pedido ao qual ele atendeu de má vontade. Ela falou muito, ele olhou para os lados de braços cruzados como um moleque que tomava uma carraspana.
Quando Solange terminou, muito brava, de explanar como se sentia e como percebia o andamento daquele casamento, perguntou para Ramiro como ele se sentia. E ele disse apenas uma palavra. E aquela única palavra foi suficiente.
Ele disse que estava entediado.
Solange olhou incrédula para Ramiro. E ele continuou, disse que o casamento não era o que ele esperava, que as coisas estavam muito paradas, que ele abrira mão de muitas coisas ás quais prezava em nome daquela relação e não se sentia recompensado.
Solange, sentindo um punhal atravessado em suas costas, perguntou calmamente se ele queria se separar, ele, ainda de braços cruzados, afundado em uma poltrona como um moleque indolente, disse que tanto fazia.
Aquilo arrancou a explosão de Solange, foi o "Tanto faz." proferido por Ramiro sentado no sofá. As palavras aliadas á sua imagem de fedelho á contragosto formaram a imagem que deixou Solangem cheia de desgosto.
Ela disse que queria se separar. Que não queria levar aquilo adiante e que era melhor que ele saísse, e que permanecesse fora até que resolvessem tudo.
Foi depois disso que Solange passou meia hora chorando.
Foi depois de perceber que, não importa o quanto um homem seja seguro, o quanto seja bonito, atlético e cativante, ou o quanto ele goste de ser o centro das atenções, ou o quão galante ele seja, ele jamais deixa de ser um moleque. É o estado natural dos homens.
Não é que nós, homens, amadureçamos mais devagar do que as mulheres, é que nosso amadurecimento tem um nível que dificilmente é superado, e amadurecemos em alguns campos, e em outros não.
Os homens sempre terão um campo no qual serão tão maduros quanto um moleque de seis anos de idade, pode ser emocional, na sua relação com o time do coração, com gibis, com filmes... Sempre haverá um campo no qual o homem não será maduro o bastante.
Escolha o menos pior. Eu diria que gibis e video games são boas escolhas.
Feliz dia do Orgulho Nerd.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Resenha cinema: Robin Hood


Ridley Scott é um dos meus diretores preferidos não é de hoje. O cara tem no currículo filmes tão diversos como Alien - O Oitavo Passageiro, Os Duelistas, Blade Runner - O Caçador de Andróides, Thelma & Louise e Gladiador. Ele entende do riscado.
Toda a vez que ele acena com um filme novo, eu me coço e fico na espera, e raramente é em vão. Desde que foi anunciado que ele reimaginaria Robin Hood em um filme que tinha o nome de trabalho Nottingham, e que se reuniria á um de seus colaboradores mais costumazes, Russel Crowe, com quem já havia feito Gladiador, Um Bom Ano, O Gângster, e Rede de Mentiras eu estava imaginando que tipo de abordagem Scott usaria em uma nova encarnação do mito do herói que roubava dos ricos para dar aos pobres. Ontem, finalmente descobri, e gostei muito.
No século XII, o rei Ricardo Coração de Leão (Danny Huston) retorna da terceira Cruzada falido, e, acompanhado de seu exército, saqueia tudo em seu caminho até a Inglaterra. No seu exército está Robin de Longstride (Crowe), um hábil arqueiro, homem corajoso e honesto, honesto demais para seu próprio bem, que, junto dos amigos Allan A'Dalley (Alan Doyle), Will Scarlet (Scott Grimes) e Little John (Kevin Durand) acaba preso por falar demais na presença do rei Ricardo em pessoa.
Após a morte de Ricardo durante o cerco á um castelo na França, Robin e seus amigos fogem, apenas para, poucos dias depois, se depararem com uma emboscada liderada por Sir Godfrey (Mark Strong), nobre inglês aliado do rei francês Felipe, á Robert Loxley e um grupo de cavaleiros que levavam a coroa de Ricardo de volta á Londres.
Loxley, ferido mortalmente, incumbe Robin de devolver a espada de seu pai, Walter, em Nottingham. Longstride aceita a tarefa, e, com seus amigos, assume as identidades de Loxley e dos demais cavaleiros mortos, o que lhes garantirá o retorno á Inglaterra, onde a coroa de Ricardo passará á seu irmão mais novo, John (Oscar Isaac), um nobre irresponsável arrogante e burro, que faz ouvidos moucos ás advertências do conselheiro William Marshall (William Hurt) e abre as portas da côrte á Godfrey, que, sob as ordens de Felipe da França, planeja enfraquecer a Inglaterra com guerra civil para então, tomá-la.
De volta á Inglaterra, Longstride chega á Nottingham, onde conhece o pai de Robert, Walter Loxley (Max Von Sidow, brilhante.) e sua nora, a bela e destemida Marion(Cate Blanchett, eu amo essa mulher), falidos, endividados e acossados pelos cobradores da coroa britânica. Ele devolve a espada á Walter e é convencido por este á permanecer em Nottingham, onde desempenhará um importante papel na conspiração que se segue.
Pois é, não parece lá muito com o Robin Hood ao qual estamos acostumados. Onde estão os homens felizes? Onde está o frei Tuk? Cadê roubar dos ricos pra dar aos pobres? O xerife de Nottingham, a floresta de Sherwood, os órfãos?
Acredite, ao longo da projeção tudo estará lá, se não da forma como conhecemos, de maneira mais seminal. O Robin Hood de Scott é uma história de origem, um prequel da lenda clássica que todo mundo conhece, equilibrado sobre algum lastro histórico. No final das contas é um produto muito divertido, visualmente maneiraço, com ótimas sequências de ação e atuações seguras de seus atores principais.
Tem lá seus furos, como a quantidade generosa de coincidências felizes ou a presença de Marion na batalha final, mas é uma aventura épica sólida e agrada aos fãs do gênero, afinal, é Ridley Scott, cara.

"Ergam-se, e ergam-se de novo, até que os cordeiros tornem-se leões!"

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Mocotó


Romão conheceu Agatha, pasmem, na internet. Logo Romão, que parecia alérgico á inovações e tecnologias de qualquer espécie, Romão, que achava telefone celular um troço de outro mundo, tecnologia de Jornada nas Estrelas. Pois é. Romão, numa madrugada insône, seguiu os conselhos de seu amigo Mauro, e foi para um chat da internet.
Desde que Romão terminara seu namoro com Cleyde ele andava cabisbaixo, não demonstrava interesse por nada, por ninguém, parecia alheio á tudo e á todos Além de ser triste ver um sujeito divertido como Romão naquela fossa, ele já estava começando á ficar chato, afinal, o rompimento fora á mais de dois anos, pelo amor de Deus. O cadáver daquele namoro não tinha só esfriado, já tinha putrefado e sido comido pelos bichos. Que Romão passasse pra próxima, que fosse á luta. Era um sujeito bacana, poderia encontrar alguém com quem se relacionar. Mas precisava fazer algum movimento.
As idas á bares foram infrutíferas, programas sociais, de modo geral, não eram o forte de Romão, ele sentava e ficava encarando o infinito respondendo á quem falava com ele por monossílabos.
Mauro sugeriu o chat.
Disse á Romão que, se ele não encontrasse a mulher da vida dele na internet, pelo menos poderia encontrar uma mulher desfrutável que lhe aliviasse a solidão por duas horas que fosse.
E Romão, que não se sentia assim tão solitário, nem tão melancólico aceitou a sugestão. Aceitou mais pra que, quando lhe cobrasse no futuro pudesse dizer "Mas eu tentei e não adiantou.".
Escolheu uma sala de sua cidade, um nick entre o descolado e o misterioso, e lá se foi, procurar alguém com quem trocar umas mensagens durante a noite.
Notou o nick logo que ela entrou "Agatha". Ele achou bacana, interessante. Pelo menos mais interessante do que os "Morena gostosa", "Rabuda", e "Solitária com Tesão" que infestavam o chat.
Clicou sobre o nome dela e preencheu o campo de mensagens com um descolado "Christie?"
Menos de um minuto depois a resposta dela "Quem me dera".
Encarreiraram uma longa conversa. Ambos gostavam de romances policiais, embora ela curtisse livros de Stephen King e ele detestasse, gostavam de blockbusters, de House e Lei & Ordem, e gostavam de rock. Mais que apenas isso. Eram fãs de Bowie, de Beatles, Stones e Metallica. Ainda mais que apenas isso. Eram fãs de Led Zeppelin, Rush, Jethro Tull e Creedence.
Migraram rapidamente para o MSN, trocaram músicas, ele a achou linda, ela não o achou feio, na verdade o achou agradável, culto, educado e disse que seu cavanhaque lembrava o de James Hetfield, o que ele achou muito lisonjeiro, era o segundo melhor elogio que ouvira na vida, tirando quando alguém muito especial lhe disse, certa vez, que ele era como o Batman, aquele era o elogio definitivo, mas a comparação á Hetfield era muito legal, também.
Agatha, que se chamava Agatha em homenagem á Christie, mesmo, era muito legal, também. Era alguns anos mais jovem que Romão, nada grave, era do Rio de Janeiro, e morava no Rio Grande á pouco tempo, detestava frio, que Romão adorava, mas também, nada de grave.
A química entre eles foi ótima. Conversaram pelo messenger mais algumas vezes, depois trocaram telefones, ligaram-se várias vezes e tiveram longas e divertidas conversas.
A vida retornou á Romão. Ele parou de chatear seus amigos, parou com a melancolia e a tristeza. Romão parecia disposto, após mais de dois anos, a arriscar um pouco em um namoro, ele parecia, de fato, disposto á tentar viver novamente.
Havia apenas um detalhe, uma prova para que Romão se comprometesse, de fato, á dar um salto de fé.
O mocotó.
Mulher para Romão, podia ter todas as frescurites do mundo. Podia não querer acampar, não querer abraçá-lo quando ele estivesse suado depois do futebol, sair da cama se ele flatulasse sob as cobertas, não deixar que ele entrasse no banheiro quando ela estivesse no chuveiro, podia preferir ficar em casa fazendo as unhas á ir ao cinema, e ver Sex and the City ao invés de Rambo IV, Romão relevava, na verdade, ele até achava bonitinho, sexy, feminino.
Mas havia uma frescurite que Romão não admitia. E era que mulher entortasse o nariz pra um mocotó.
Mocotó de verdade, não sopa de dobradinha com azeitona e feijão branco. Mocotó, mesmo, daqueles feito com pata, mondongo, cualheira, tripas finas e grossas, linguiça e ovo picado. Daquele que depois de tomar o vivente fica com os lábios superior e inferior grudentos, daquele que se tu deixa esfriar no prato dá pra cortar com faca e comer em cubinhos. Mocotó á moda campeira.
A Cleyde adorava Mocotó. Á despeito de toda a sua delicadeza de princesinha, de seu jeito patricinha cor-de-rosa de ser, ela adorava mocotó, e, depois de sorver com gosto uma colherada generosa de mocotó, ela gostava de espremer os lábios um no outro ruidosamente e dizer "Tá de colar os beiços!".
Romão adorava aquilo. Aquela contradição da moça magra, pálida e delicada sendo capaz de comer um pratarrão de mocotó com gosto e mencionar a qualidade "gruda beiço" do prato.
Romão, entre várias outras coisas, se apaixonara por aquilo. E agora, inclinado á deixar as coisas acontecerem e se entregar á um eventual relacionamento com Agatha, tinha medo.
E se ela não gostasse de mocotó?

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Identidade.


Alfredo conhecia as regras da convivência e da etiqueta. Sabia se portar á mesa, segurava a porta para os vizinhos, deixava que as moças e as pessoas mais velhas passassem primeiro... Todas essas pequenas gentilezas diárias, Alfredo dominava e cultivava. Á primeira vista, Alfredo poderia ser considerado uma pessoa agradável, uma pessoa gentil, um bom sujeito. Na verdade, era assim que as pessoas lembravam de Alfredo. Raramente ele deixava uma impressão longeva nas pessoas, elas conversavam com ele, absorviam sua gentileza mundana por alguns minutos, e logo o esqueciam, depois, quando, por alguma eventualidade queriam se referir á ele diziam "Aquele cara... Pô, super gente-boa, como era o nome dele? Um de cabelo preto...". Era assim. A impressão que Alfredo deixava nas pessoas, em sua maioria, era uma impressão fast-food, ela tinha um bom sabor enquanto era experimentada, mas pouco depois, já não era mais lembrada.
Alfredo não ligava. Á despeito de ser gentil, polido e agradável, Alfredo nutria uma profunda indiferença para com as outras pessoas. Alfredo as olhava com condescendência, como um velho sábio olha um jovem imaturo. Não que Alfredo de considerasse um sábio, longe disso, ele apenas desconsiderava solenemente a opinião alheia.
Alfredo desprezava o senso comum, jamais pedia conselhos e tomava decisões baseado única e exclusivamente nas próprias crenças e vontades. Alfredo, á despeito de não se pautar pelo que os outros consideravam correto, era correto. Ele não tentava tirar vantagem de ninguém, não queria invadir o espaço alheio, nem nada do gênero. Ele apenas não usava parâmetros alheios para se decidir no que dizia respeito á ele individualmente. Alfredo não era uma pessoa de fácil convívio, ele tinha uma postura bastante rígida com relação á certo e errado em quase tudo, não acreditava em praticamente nada, e, embora acreditasse que todos tinham direito de discordar dele, discutia até a morte quando se opunham á suas ideias de maneira ríspida.
Alfredo não era unanimidade nem entre os familiares, muitos o viam como um acomodado preguiçoso, como um tolo, como um burro. Outros o enxergavam como se fosse um frio e calculista gênio do mal. Nenhuma das teorias estava certa, Alfredo não estava nem tanto ao céu nem tanto ao mar, ele era uma pessoa comum, talvez com um senso de responsabilidade e de individualidade um pouco acima da média, nada de tão fantástico. E, no final das contas, não lhe fazia nenhuma diferença, pois ele continuava não ligando pra o que os outros pensavam.
O caminho escolhido por Alfredo era um pouco solitário, muitas vezes as pessoas se cansavam de Alfredo antes de conseguirem entendê-lo o que, ele sabia, ás vezes podia tomar tempo, e nem sempre era garantia de que gostariam do resultado. Mas Alfredo, ainda assim, preferia se abraçar ás próprias crenças, e fazer o seu melhor de acordo com seus parâmetros particulares. Ele podia ser feliz ou infeliz fazendo isso. Poderia alcançar sucesso ou fracasso. Mas fosse qual fosse o resultado, Alfredo estaria em paz consigo mesmo. Por isso Alfredo vai torcer pelo Dunga e pela Seleção na Copa do Mundo, por que Alfredo sabe exatamente como Dunga se sente.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Sensatez


Enquanto Francisco empilhava as suas roupas na bolsa de viagem e ouvia os gritos de Cecília na sala. Ela, de quando em quando, surgia na porta do quarto, e despejava uma pequena, porém bastante variada, série de impropérios e insultos, cerca de seis ou sete xingamentos bastante contundentes. De início, Francisco contou, esperando que ela repetisse algum, porém, após a quinta série sem nenhuma reprise, ele desistiu.
Abriu a gaveta do guarda-roupa e a encarou com tristeza. Como separar as suas meias soquete brancas das de Cecília? Não compravam meias por número, por tamanho, apenas compravam, e as partilhavam depois. Estavam juntos á tanto tempo, partilhavam tanta coisa, que as meias eram irrelevantes. Meias brancas, de usar com tênis, claro, eles tinha meias que eram apenas de um ou de outro, as meias sociais que ela insitia em chamar de "carpim", que ele usava com sapatos quando ia trabalhar, ou os meiões de futebol que ele usava com chuteiras, ela tinha suas meias longas de ginástica, que ele insitia em chamar de "pulligan", as meias-calça, de usar com saia e salto-alto, e meias elásticas que iam até pouco abaixo do joelho e que melhoravam a circulação.
Mas as meias brancas, as meias soquete, essas estavam todas juntas numa mesma gaveta.
Francisco poderia começar a contar as meias, e pegar metade dos pares. Mas a verdade é que não estava com vontade de fazer isso. Pegou cinco pares, jogou na bolsa, e partiu pra próxima gaveta. Apanhou suas cuecas, nem sabia que tinha tantas, Umas quinze cuecas. Por que raios precisaria de quinze cuecas? Poderia perfeitamente sobreviver com três. Imaginava se "Dirty" Harry Calahan, o personagem imortalizado por Clint Eastwood no cinema, teria uma gaveta com quinze cuecas. Claro que não. No máximo uma meia-dúzia. William Munny, então? Ou Blondie? Esses deveriam ter uma cueca. Duas, no máximo. Três, vá lá. Uma no corpo, outra no varal, e a terceira de back-up. Homens sensatos não precisam de mais de três cuecas. A quarta cueca é um símbolo de insensatez, de insegurança. Francisco largou novamente as cuecas no fundo da gaveta. Elas eram um símbolo de insensatez.
Assim como era Sofia.
Sofia era a causa da gritaria de Cecília, era a razão pela qual Francisco estava fazendo as malas. Sofia era a amante de Francisco. Quer dizer... Amante é um exagero. Amante evoca a ideia de uma teúda e manteúda sustentada por Francisco e que á qualquer momento poderia ter um filho dele. Não era o caso. Sofia era uma amiga de Francisco. Uma amiga antiga, de antes de Francisco conhecer Cecília. Sofia era loira, bonita, magrinha e baixinha demais pra o gosto de Francisco, que se sentia atraído por mulheres mais fartas, fornidas, por assim dizer. Francisco gostava de ter carne onde enfiar os dentes. Talvez por isso, na juventude, quando conheceu Sofia, jamais tentou levar as fronteiras do relacionamento de ambos para além da amizade. Era uma amizade divertida. Sofia era divertida. Haviam perdido contato após a faculdade, quando Sofia foi viajar para a Europa pra passar um tempo lá.
"Coisa de americano", como dizia Francisco, que após se formar imediatamente foi trabalhar na empresa de engenharia de um amigo do pai.
Lá conheceu Cecília. Cecília, com quase um metro e oitenta, cabelos castanho-escuros longos e lisos, e volume acumulado nos lugares certos imediatamente chamara a atenção de Francisco.
Ele a cortejou, ela aceitou, e logo estavam namorando. Eram muito diferentes, mas, apesar diso, se davam bem. Mantinham acordos tácitos, de abrir precedentes. Ele abria precedentes para programas de Cecília, Cecília abria precedentes para programas de Francisco, e assim iam.
Um dia jantavam fora e iam ao cinema, ou ao teatro, programas que agradavam á Francisco, em outro iam á um bar, ou fazer compras, programas de Cecília.
Entretanto, conforme o tempo foi passando, Francisco foi se tornando a parte que abria mais e mais precedentes, enquanto Cecília abria menos e menos precedentes.
Aquela situação incomodava Francisco, o fato de Cecília fazer o possível e o impossível para não atender aos programas que lhe cabiam, e, ao mesmo tempo, fazer um escândalo cada vez que ele tentava, de algum modo, escapulir dos programas dela.
O relacionamento se tornou um jogo de empurra, e foi, aos poucos, afastando Francisco de Cecília.
Cecília, que via todas as suas vontades prevalecerem, sequer notou o que acontecia, mas Francisco foi perdendo o interesse na relação, a identificação, e foi vendo seus sentimentos por Cecília empalidecerem. Talvez ele devesse ter deixado Cecília e seguido seu caminho. Teria sido mais honesto. Mais correto. Mas Francisco era demasiado acomodado. Pra ele parecia, á despeito da estagnação de seu relacionamento com Cecília, mais cômodo aguentar as pontas do que ter todo o trabalho de acabar um relacionamento, ou passar pelo estresse de sentar com Cecília e falar de suas aflições como seria mais sensato. Então, á despeito de a situação estar longe de ser a ideal. Ele foi levando com a barriga.
Eis que, por acaso, numa tarde após escapulir do trabalho para comer um pastel de palmito da pastelaria do Japonês, Francisco encontrou Sofia.
Ela havia morado fora do Brasil por 8 anos, vivera na Grécia, no Marrocos, na Espanha, mas voltara, não só por estar com saudades de casa, mas também por que sua mãe estava doente e carecia de cuidados.
Acabaram comendo juntos na pastelaria. Sofia continuava agradável, continuava divertida e bonita.
E estava de volta á vida de Francisco. Retomaram a antiga amizade, saíam juntos, iam ao cinema, ao teatro, eis que, em um momento de fraqueza, suas mãos se tocaram, o toque involuntário levou á toques voluntários, carícias, beijos, até que estavam ambos nus, suados e resfolegantes no carro de Francisco.
Um deslize. Conversaram, perceberam que fora um erro. Francisco era casado, Sofia ainda estava buscando estabilidade, não podiam seguir com aquilo, nem queriam, estragaria sua amizade, fora um momento de fraqueza, de insensatez.
Entretanto, á despeito de terem combinado que as coisas permaneceriam como estavam, que seguiriam sendo amigos, o imponderável surgiu em meio ao acordo de Sofia e Francisco.
Cecília e Franscisco estavam indo ao mercado fazer compras, quando Cecília se esgueirou pra apanhar o brilho labial que derrubara, e, sob o banco do carona, encontrou um sutiã.
O sutiã de Sofia.
Ele ergueu a peça e a olhou por longos minutos, sob uma expressão aturdida de Francisco. Então lhe mostrou á peça rendada e perguntou:
-O que é isso?
Ele não sabia o que responder. O que diria? Que o sutiã pertencia á Cecília e ela não lembrava? Que era melhor ela não tocar pois podia ser macumba?
Francisco, tomado por uma coragem inédita, contou a verdade. Era de Sofia.
De quem? Sofia, sua amiga, patati, patatá, contou tudo.
Cecília mandou levá-la de volta pra casa. Foram em silêncio todo o caminho.
Ao chegarem á garagem do prédio, Cecília sentenciou:
-Arruma tuas coisas e some.
Agora ali estava Francisco, pagando pela própria irresponsabilidade, pela própria covardia, pela própria insensatez.
Encarou a gaveta de cuecas com uma expressão torta.
Enquanto Cecília, com o rosto molhado de lágrimas e vermelho de raiva, encarava a TV desligada, Francisco passou em direção á porta.
Ele olhou para a mulher com quem dividira a vida por anos, e se amaldiçoou por não ter falado com ela antes. Pensou em se despedir, mas desistiu. Saiu sem dizer nada.
Cecília foi ao quarto, as gavetas do armário abertas, numa delas, vários pares de meias soquete brancas, na outra, uma dúzia de cuecas.
Enquanto o elevador levava Francisco ao térreo, ele apalpou as três cuecas no bolso da mochila.
Ligaria para um hotel, depois ligaria para Sofia. Contaria tudo o que acontecera pra ela, diria tudo pra ela. Falaria de suas aspirações, vontades e desejos.
Dali em diante, seu mote seria sensatez.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Resenha Cinema: Alice no País das Maravilhas.


No último sábado fui ao cinema, pelo segundo final de semana consecutivo, tentar assistir Alice no País das Maravilhas, releitura de Tim Burton do clássico de Lewis Carrol, e, ao contrário da semana anterior, quando, por conta da lotação de Alice, acabei revendo Homem de Ferro 2, consegui sentar a minha carcaça na sala 1 do Cinesystem do shopping Total, e ver o filme. Talvez por minhas expectativas serem baixas, não achei mau filme, não, pelo contrário, até achei bacana.
O filme é uma releitura/sequência do Alice no País das Maravilhas original, e de Através do Espelho (E o que Alice Encontrou Por Lá), ambos de Carrol. Nele encontramos Alice (Mia Wasikowska, pálida, bonita/estranha, bem ao gosto de Burton), aos dezessete anos, a menina, prestes á ser pedida em casamento por um jovem aristocrata com cara de flatulência, não tem memórias de suas viagens anteriores ao País das Maravilhas, imaginando que as estranhas figuras que povoam seus sonhos e pesadelos não são mais do que fruto de sua imaginação.
Porém, durante sua "festa de noivado", ela é atraída pelo coelho branco que a leva de volta para o Mundo Subterrâneo (Underland, Wonderland, sacaram?), onde as coisas não vão bem.
A Rainha Vermelha (Helena Bonham-Carter, divertidíssima na melhor atuação do filme.) domina o mundo com mão de ferro, cortando as cabeças de quem se opõe à ela, sem sofrer represálias por ter nas suas tropas o Valete de Copas (Crispin Glover, esquisito como sempre.) e, principalmente, o terrível Jabberwocky, que só pode ser vencido pela espada Vorpal, também em poder da Rainha Vermelha.
Alice, pensando estar em um sonho, deixa-se levar pelas criaturas estranhas como os gêmeos Tweedledee e Tweedledun (Matt Lucas), o rato e o gato risonho (Stephen Fry, maneiraço.), o Chapeleiro Louco (Johnny Depp, fazendo uma performance meio Willy Wonka, meio Sweeney Todd), a Lebre de Março, e a Rainha Branca (Anne Hathaway, que, como Amy Adams, nasceu pra interpretar princesinhas.) conforme reencontra sua coragem, e redescobre o País das Maravilhas.
É, no final das contas, uma mescla decente entre um típico filme da Disney, e um filme do Burton. Não os melhores filmes de Burton, como Edward Mãos de Tesoura, Ed Wood e Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas, mas certamente superior a O Planeta dos Macacos e A Fantástica Fábrica de Chocolate, claro, tem lá seus defeitos, a protagonista, Mia Wasikowska (Diga isso rápido três vezes!), deixa um pouco á desejar no quesito talento dramático, Johnny Depp está irregular no papel de Chapeleiro Louco, o que, talvez seja proposital, o uso dos efeitos em 3-D é meio gratuito, sem a elegância discreta de Avatar, por exemplo, e no desfecho do filme, surge uma batalha no estilo "filhote de O Senhor dos Anéis" que é bastante desnecessária, assim como o número de dança constrangedor de Depp.
Ainda assim, é um filme simpático e otimista, com um visual lindo (A produção de arte de filmes de Tim Burton sempre é candidata á prêmio.), algumas ótimas atuações, especialmente do time de dubladores que inclui Michael Sheen e Alan Rickman, e que pode ser ainda melhor aproveitado se não houver um par de cocotas pós-púberes apaixonadas por Johnny Depp na fila atrás de você.

"Por que um corvo é igual á uma escrivaninha?"

sábado, 8 de maio de 2010

Resenha DVD: Julie & Julia


Ontem foi sexta-feira, depois daquele tradicional quebra-canela fantasiado de futebol com a gurizada, cheguei em casa, pedi uma pizza, e coloquei no DVD Julie & Julia, o mais recente trabalho de Meryl Streep á chegar nas locadoras.
Foi saboreando fatias de pizza de lombo com catupiry que acompanhei o simpático filme da diretora Nora Ephron (Mens@gem pra Você) que intercala de forma divertida as biografias de Julia Child (Meryl), esposa de diplomata norte-americana que, em sua passagem por Paris, se apaixonou pela culinária francesa e se tornou chef, e Julie Powell (Amy Adams), funcionária pública e escritora frustrada que, em 2003, resolveu levar adiante um blog chamado The Julie/Julia Project, em que se propunha á preparar, em um ano, as mais de 500 receitas de Mastering The Art of French Cooking, calhamaço escrito por Julia Child para ensinar "donas de casa americanas sem empregadas" á fazer comida francesa.
Talvez a melhor ideia de Nora Ephron tenha sido intercalar os episódios da vida de suas personagens principais dando um ritmo mais ágil ao filme, que poderia se tornar muito monótono se fosse a biografia de apenas uma das personagens principais do filme.
Como há duas protagonistas vivendo em momentos absolutamente distintos (Julia Child se apaixonou pela culinária francesa e passou á aprendê-la nos anos quarenta, enquanto Julie Powell escreveu seu blog nos anos 2000), o ritmo do filme se torna mais ágil, podendo ser digerido por machões que, como eu, acham chick flicks (E Julie & Julia é um chick flick como todos os filmes de Nora Ephron.) meio modorrentos.
Claro, ajuda o fato de Meryl Streep dar show no papel de Julia Child, uma caipirona de quase 1,90m de altura com uma voz extremamente característica (Procure no Youtube os episódios de The French Chef, programa culinário da Julia Child de verdade nos anos 60, e comprove.), e sua ótima química com o ótimo Stanley Tucci, que interpreta seu marido no longa.
Amy Adams, no papel de Julie Powell não está, claro, no patamar de Streep, mas segura a onda, e sua interpretação não ofende ninguém, aliás, alguém que exala a aura de doçura de Amy Adams não ofende ninguém nem xingando.
No final das contas, Julie & Julia é um programa decente, um filminho leve pra ver, se divertir e esquecer duas horas depois, á menos, claro, que você, como eu, fique se lambendo de vontade de provar um creme bávaro de amoras.

"Bon Appétit"

terça-feira, 4 de maio de 2010

Pragmatismo.


Amadeu não era um homem feliz. Longe disso. Amadeu não chegava á ser um homem infeliz, mas feliz? Oh, não, não mesmo. Amadeu não estava vivendo um bom momento de sua vida já fazia uns dez anos.
Estava levando a vida, não a estava vivendo. Não gostava de como as coisas estavam indo, mas também não podia remexer demais sua vida, pois, para o bem ou para o mal, ele vivenciava alguma estabilidade. Não gostava do emprego, mas podia trabalhar nele. Não gostava da faculdade, mas tirava boas notas no curso. Não gostava de onde estava vivendo, mas o aluguel era barato e era perto do trabalho, e da faculdade. Não gostava de estar sozinho, mas não sentia-se preparado para iniciar um relacionamento.
Vácuo.
Amadeu estava preso em uma espécie de vácuo. Uma vida morta-viva, mas ainda assim, que lhe garantia algum conforto. Não parecia muito, mas olhando friamente em perspectiva, Amadeu sabia que a situação poderia ser muito pior, que era muito pior para inúmeras pessoas ao redor do mundo, esse pensamento algo pragmático o ajudava a ver com melhores olhos a imitação de vida modorrenta que ele, e muitos outros, levavam.
Amadeu estava, de um modo ou de outro, conformado com sua vida até ali. Não era a vida com a qual ele sonhava, mas não era o pior cenário, e, assim, ele seguia.
Amadeu tentava ser lógico, tentava ser frio e calculista, por que era mais fácil aceitar as mazelas da vida colocando-se nesse papel. Nem sempre ele se sentia á vontade nesse papel, de pessoa fria e lógica, mas era mais fácil viver desse jeito. Amadeu despia-se de sua carapaça unicamente com seu cachorro. Não com qualquer cachorro, apenas com o seu. Era um cachorro grande e bobo, pe pelagem macia e farta, não era um cachorro treinado, era um cão mal-criado, que ignorava as suas ordens, era demasiado efusivo em suas reações, e amistoso em excesso.
Talvez Amadeu amasse tanto aquele cachorro por que o cachorro era o extremo oposto dele. O cachorro era tudo que Amadeu não era. Era amigável, afetuoso, caloroso, ilógico, não guardava rancores, nem mágoas, reagia imediatamente á tudo.
Era natural que o cão se comportasse dessa forma, era todo instinto e nenhuma razão, não natural era que Amadeu fosse todo razão e nenhum instinto, nenhuma emoção.
Amadeu nem sequer era como aquelas velhinhas solitárias com seus cães, gatos ou periquitos, que transferem todo seu afeto aos animais por não terem mais ninguém.
Amadeu sentira amor, sentira amizade, sentira emoções, apenas decidira que era mais cômodo entregar seus sentimentos á alguma coisa que não se aprovetaria deles. Amadeu decidira que a humanidade não valia a pena.
Era outro pensamento frio, calculista e pragmático de Amadeu, era ruim, mas a pior parte, é que ele jamais recebia um sinal de que estivesse errado.

sábado, 1 de maio de 2010

Resenha Cinema: Homem de Ferro 2


Uns dias atrás eu escrevi na minha atrasada resenha de Homem de Ferro que o filme se apoiava em dois pilares que lhe garantiram qualidade e o decorrente sucesso: Jon Favreau, o diretor, e Robert Downey Jr., o protagonista.
Após assistir Homem de Ferro 2, a óbvia sequência do hit de 2008, posso garantir que o novo filme do herói enlatado, á despeito de suas ótimas adições, mantém a fórmula essencial do sucesso, Jon Favreau segue dirigindo com maestria, e Robert Downey Jr. ainda é o coração do filme.
A trama de Homem de Ferro 2 pega o carro de onde o primeiro filme termina, a coletiva onde Stark (Downey) assume sem pudores ser o herói de armadura. Ali já somos apresentados à primeira cara nova, Ivan Vanko (Mickey Rourke, ameaçador, convincente, excelente.), filho de um antigo sócio traído pelo pai de Tony, Howard Stark, que morre esquecido e na penúria enquanto o Homem de Ferro ganha a mídia mundo áfora.
Enquanto isso, descobrimos que Tony está sofrendo efeitos colaterais de sua nova vida, por conta da tecnologia que a mantém, o reator ARK miniaturizado em seu peito, é movido á baterias de paládio, que estão envenenando seu sangue em um ritmo cada vez mais rápido, isso obriga o herói á buscar uma alternativa á fonte de força enquanto equilibra a vida de celebridade, super-herói e empresário.
Ao mesmo tempo em que Tony lida (muito mal) com a possibilidade de morte iminente, ele se vê atacado em diversas frentes simultâneamente:
Vanko inicia seu plano de vingança pessoal, enquanto outro novo personagem, Justin Hammer (Sam Rockwell, competente como sempre, brincando com violentas alterações de humor) tenta, através de uma comissão do governo dos EUA, á quem supre armamentos, se apropriar da tecnologia Homem de Ferro. Não bastasse tudo isso, os segredos de Tony começam a deteriorar suas relações com Pepper Potts (Gwineth Paltrow, tão meiga e competente como antes), e Jim Rodhes (Don Cheadle, substituindo naturalmente Terrence Howard).
Eu sei, parece um bocado de coisas acontecendo ao mesmo tempo, e há ainda Natalie Rushman, codinome de Natasha Romanoff, a Viúva Negra (Scarlett Johansson, linda), agente da SHIELD infiltrada nas indústrias Stark como secretária de Tony, além de boas cenas com Happy Hogan (Jon Favreau), fazendo valer seu salário de guarda-costas /motorista de Stark, o senador Stern (Garry Shandling), Howard Stark (John Slattery) e Nick Fury (Samuel L. Jackson), e, eu adoro ressaltar isso, essa enxurrada de personagens está lá por uma razão, para ilustrar todos os problemas com os quais Tony Stark tem que lidar depois de "privatizar a paz mundial", além de lidar com seus próprios demônios para se tornar o herói que deseja ser.
Claro, por melhor que fosse, um bom roteiro não sustentaria sozinho as duas horas e quatro minutos de projeção de um filme de super-herói, um filme desse tipo precisa de boas cenas de ação, e Homem de Ferro 2 tem isso, são pelo menos três sequências de ação de tirar o fôlego, a primeira, em Mônaco, durante o GP de Fórmula 1, a segunda quando há dois homens de ferro trocando bordoadas na mansão de Tony, e o clímax na Stark Expo 2010, quando acontece a investida final de Vanko como Whiplash.
Não se trata, porém, de um filme perfeito, ele sofre do mesmo mal de outros filmes do gênero, o terceiro ato tem uma resolução demasiado rápida, enquanto os personagens alcançam ótimos níveis de desenvolvimento (No final das contas nós conhecemos a motivação por trás das ações de todos os personagens, o que é ótimo.) o clímax do filme é algo abrupto, com muita ação, sim, mas sem a tensão que marca o restante da projeção, não que isso manche o filme, que segue sendo excelente, mas é um ponto onde ele poderia melhorar.
No final das contas Homem de Ferro 2 é uma sequência á altura de seu antecessor, ainda apoiados no carisma e talento de Robert Downey Jr. e na direção esperta de Jon Favreau, os filmes do ferroso são ótimos, valem a ida ao cinema, e vão sedimentando o caminho da Marvel no cinema, preparando terreno para Os Vingadores. Fique até o final dos créditos e você vai me entender.

"Ao contrário da crença popular, eu sei exatamente o que estou fazendo."