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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Retrato verdadeiro


Um motorista de ônibus perdeu o controle do veículo que dirigia, ontem após sofrer um mau súbito. O ônibus, desgovernado, bateu em vários carros e motos estacionados em frente à uma casa noturna onde acontecia um baile funk. Os frequentadores do local, entre os quais, muito provavelmente encontravam-se donos dos veículos danificados atacaram o motorista, e o espancaram até a morte.
Eu estou me referindo a carros e motocicletas de verdade, e não a carroças e cavalos. Isso não foi um episódio ocorrido na idade média, nem em algum lugarejo isolado da Ásia menor, ou da África sub-saariana.
Ocorreu ontem. Aqui no Brasil, em São Paulo. Alguém há de argumentar que baile funk na zona oeste paulista deve estar no mesmo patamar da Ásia menor ou da África sub-saariana. Não sei. Não conheço a zona oeste paulista, exceto pela fama de área violenta. Mas conheço gente muito boa de áreas violentas aqui de Porto Alegre. Não acho que o fato de ser uma área pobre tenha feito diferença pra que o caso acabasse em agressão covarde e morte. Não... Independente da classe social, uma pessoa é uma pessoa, duas pessoas são uma dupla, três um trio, quatro um quarteto, cinco um quinteto e de seis pra cima, são uma turba.
Pessoas juntas fazem coisas que pessoas sozinhas não fariam. Infelizmente, a imensa maioria.
O anonimato oferecido por uma multidão rega o que de pior cresce no âmago do ser humano. Poucos são os que teriam firmeza de propósito para ignorar os seus instintos mais primevos e se ater à civilidade. A civilidade é artificial no ser humano. Nosso estado normal é o barbarismo, como disse Robert E. Howard, e todos os dias nós temos provas disso em todos os aspectos.
Alguém dirá que não devemos nos desesperar. Argumentará que há, afinal de contas, manchas mais claras na escuridão que é a alma humana. Pelo menos em teoria... Se, no fim das contas, Darwin estava certo e nós somos apenas o megazord pilotado pelos nossos genes, isso significaria que estaríamos sempre dispostos a defender com a vida aos nossos. Claro... Eu, como pessimista que sou, como atento que estou sempre ao que há de pior, poderia, na prática, lembrar de meio dúzia de casos que põe por terra essa teoria. Entre Richtofens e Nardones e Fritzls e outros tantos capazes de barbáries que fariam Conan corar de vergonha ou ira...
Não existe escapatória. O ser humano é basicamente mau. Ruim. Estragado. Ele é mantido vagamente sob controle pela educação, em primeiríssimo lugar. Pela criação que recebe, pela sociedade em que vive, pela cultura e até pela religião, coleira máxima da raça humana. Tudo isso, porém, empalidece quando uma turba se forma. O melhor retrato da raça humana, e por "melhor" quero dizer o mais fiel, são episódios como a invasão japonesa a Nankim, ou o Holocausto, ou a chegada de Cortêz ao México.
O Homem é lobo do Homem, alguém já disse. É verdade. Mas no nosso tempo de falsa civilidade e vigilância quase total, esse lobo só ataca em alcatéias. Só um reforço à covardia que é nossa principal característica enquanto espécie.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Resenha Game: The Elder Scrolls V: Skyrim


Taldur Cleanor, um selvagem nórdico de longos cabelos e barba vermelhos e o rosto coberto de cicatrizes escapou do ataque do dragão à fortaleza no vilarejo de Helgen e foi até Riverwood, onde aceitou um trabalho para recuperar uma relíquia roubada de Lucan Valerius por bandidos. Após isso, andou até Whiterun, onde, na fortaleza de Dragonsreach, relatou o ocorrido à autoridade local, o Jarl Balgruuf o maior. Imediatamente, foi enviado em missão junto com a guarda-costas do Jarl para averiguar um possível ataque da fera à uma torre de vigia próxima, e, após matar a besta, foi nomeado Thane da cidade por Balgruuf.
Mas poderia ter sido o refinado Leragon Herufainaö, de cabelos negros e olhos plácidos, a escapar do ataque do dragão, lá no início, e ele poderia ter escolhido se unir aos Stormcloaks, e lutar contra o império. Ou poderia ter sido o cerebral mago élfico Dheogar Sealerïn a roubar os segredos de magia de Farengar Fogo-Secreto. Ou poderia ter sido uma personagem feminina, ou poderia ter sido um guerreiro reptiliano chamado Bossk, ou um felino humanóide chamado Vincent, ou... Não há limites, eles dependem unicamente de ti, e das escolhas que tu fizer enquanto joga.
Trata-se de The Elder Scrolls V: Skyrim, mais recente capítulo do RPG The Elder Scrolls, dos estúdios Bathesda Softworks, e, cujos quatro capítulos anteriores eu ignorei solenemente.
Não menti jamais a respeito da minha opinião sobre RPGs eletrônicos, se eu quiser jogar combate por turnos com estratégia eu pego o meu tabuleiro de xadrez e não um joystick. Lamentei muito essa minha aversão na época dos games da franquia Neverwinter Nights, que reproduziam em detalhes as aventuras RPGísticas que se passavam em Faerûn, cenário de campanha mais famoso do Dungeons & Dragons, RPG de mesa que eu jogo desde os quinze anos, ainda assim, a morosidade dos combates em turnos, a chatice de escolher um ataque, realizá-lo, e esperar que o adversário faça o mesmo, sempre me afastou dos RPGs tradicionais. Nem mesmo Star Wars - Knights of The Old Republic, narrativa épica do corustante passado do universo Star Wars, eu quis jogar, e estava bem satisfeito assim.
Entretanto, já desde o meio do ano, a promessa de lançamentos de games para novembro e dezembro desse 2011, que já vinha me fazendo cogitar os conselhos de adotar uma carreira paralela de garoto de programa, eu estava namorando esse Skyrim. Vou ser franco, nem sabia que se tratava e uma série de games. Achei que era um jogo isolado, e ignorantemente supus que o "V" do título, era a letra, mesmo, e não o numeral romano referente a cinco. De toda sorte, o trailer do game que foi divulgado em fevereiro mostravam uma ação em tempo real, com uma arma em cada mão e eventos acontecendo de maneira aleatória em meio a um gigantesco e detalhado cenário de mundo aberto. Mais o meu estilo de jogo. Foi por isso que, ao invés de investir em Call of Duty: Modern Warfare 3, eu resolvi aplicar uns pilas no RPG da Bathesda, e ver no que dava.
Não me arrependi.
O jogo é excelente. E imenso. Eu sequer sei por onde começar a descrevê-lo, e mesmo que soubesse, uma descrição que não contenha a experiência imersiva do jogo, não lhe fará justiça. O que se pode dizer é que em Skyrim, quem manda é quem está segurando o joystick. A partir do momento em que passa a sequência de abertura, onde o personagem (incrivelmente customizável) do jogador escapa de uma execução no fio do machado de um carrasco, o game te dá liberdade absoluta pra fazer o que quiser, na hora em que tiver vontade.
Quer seguir as dicas que os NPCs dão e ir avançando na história principal do game? Vai firme.
Quer vasculhar o cenário (infinito) de Skyrim procurando por dungeons onde realizar pilhagens pra aumentar a tua fortuna?
É plausível.
Ou prefere vagar pelo ermo caçando e coletando raízes e plantas e descobrindo os efeitos que as combinações criam?
Também pode.
O personagem pode ter praticamente qualquer aparência ou ser qualquer coisa. Guerreiro feroz? Mago poderoso? Ladrão sagaz, com direito a assaltos e períodos na cadeia? Tudo é possível. E, por incrível que possa parecer, as escolhas que tu faz em prol de uma carreira, não necessariamente impossibilitam que tu cresça em outra. Uma magia na mão esquerda e uma espada na direita? Pode.
Um escudo na mão esquerda e um machado na direita, também, uma magia em cada mão idem, e uma arma em cada uma, também.
O mago pode usar arco-e-flecha. O ladrão pode usar uma espada de duas mãos, o guerreiro pode lançar feitiços. Conforme sobe de nível o jogador tem possibilidade de melhorar qualquer habilidade ou domínio de ramo de magia, criando um personagem que seja medíocre em tudo, ou excelente em uma coisa e infâme nas demais, mas sempre com potencial de crescimento. Esse potencial de crescimento, inclusive, e a riqueza de detalhes são o que tornam o fator replay (ou apenas "play", já que, por mais que algumas situações se pareçam, tu pode jogar quase indefinidamente sem fazer a mesma coisa duas vezes.) quase infinito.
Os gráficos não são nenhum espetáculo, tecnicamente, eles não lambem as botas de uma infinidade de outros games da safra recente, mas, considerando o tamanho do mapa e a riqueza de detalhes dos cenários e personagens (Tu pode, literalmente fazer a limpa nos teus inimigos.), isso fica perdoado.
A música é excelente, tanto a música incidental, com batidas e ritmos fortes que dão o tom épico que o game pede e lembram a excelente trilha sonora de Basil Poledouris para os filmes originais de Conan, quanto as canções recheadas de história de Skyrim entoadas por bardos nas tavernas do mundo enriquecem a experiência de maneira ímpar.
A jogabilidade é bastante intuitiva, e embora eu tenha apanhado dos comando algumas vezes, embainhado minha arma ao tentar me esquivar de ataques (Ainda reflexo da minha recente campanha como Batman em Arkham City.), é fácil de pegar o jeito após apenas alguns minutos na frente da tela. Há alguns defeitos, tanto gráficos quanto em termos de sincronização de dublagens, eu cheguei a ficar preto numa quebra de polígonos em uma dungeon, mas são defeitos menores com relação à grandiosidade do game e tudo o que ele oferece. Jogue, só tome cuidade com a possibilidade, muito palpável, de abandonar a sua vida social no mundo real pra confraternizar com o povo de Temriel.

"Os pergaminhos dos anciãos anteviram seu retorno..."

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Rapidinhas do Capita


Julie Delpy, Ethan Hawke e Richard Linklater planejam realizar a terceira incursão de Céline e Jesse, de Antes do Amanhecer às telonas na metade do ano que vem. Como eu sempre estou numa fossa desgraçada quando vejo os filmes do trio, só tenho uma coisa a dizer:
Vão à merda, Julie, Ethan e Richard.

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Uma atriz pornô Tcheca que é fã de futebol vai criar um time, o nome da equipe será Inter de Praga.
Me pergunto se algum ator pornô gay planeja criar um time e batizá-lo de grêmio alegre de Praga.

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Vi o anúncio de um CD chamado Pista Sertaneja. Tudo aquilo que você sempre sonhou, sertanojo universitário com ritmo de bate-estaca.
Tonico e Tinoco e Jair Rodrigues devem estar se revirando no túmulo. Quê? Só o Tonico morreu?
Deixa o Jair e o Tinoco ouvirem isso, pra ver se eles não morrem de desgosto.

sábado, 19 de novembro de 2011

Fresta


"Inacreditável. O fator chance na vida é incompreensível. Você chegou ao Mundo por um evento aleatório em algum lugar às margens do Mississippi. Eu, emergi através da conjunção de Sam e Yetta Yellnikoff no Bronx, décadas antes. E através de uma astronômica concatenação de circunstâncias, nossos caminhos se cruzaram.
Dois fugitivos no vasto, negro, indescritivelmente violento e indiferente universo."
O Boris diz isso à Melody SaintAnne em Tudo pode dar certo.
Assisti ao filme ontem e não pude deixar de notar as semelhanças que vão além da minha má aparência, da minha ataraxia, da minha misantropia, pessimismo sarcasmo e cinismo, e da tua beleza, alegria e jovialidade. Porque por mais que tu não admita, meu anjo, tu é tudo isso. Linda, alegre e jovial. Teu riso é fácil, e tu é cálida, enquanto eu gosto de isolamento e frio, e frieza que são as águas onde eu habitualmente navego com mais facilidade e familiaridade.
E é estranho que, como em Tudo Pode dar Certo, por alguma razão que foge à minha compreensão, tu tenha se interessado por mim, mesmo não sendo avoada como a personagem do filme. E eu tenha aberto os meus pesados portões, ou uma porta reforçada, ou ainda que tenha sido só uma fresta de uma janela com grades, o bastante pra que tu entrasse.
Tudo ali. Igual que nem.
Mas eu não pude deixar de notar ontem, que o Boris e a Melody não terminam juntos. Ela encontra o cara do Superman, e deixa ele. O que é natural, considerando tudo.
Aí é que está o problema.
É natural. A chance de se lutar contra a natureza, já diria o Boris é zero. Zilch.
De toda a sorte, ele não deixa de se importar com ela. E eu, posso garantir, não vou deixar de me importar contigo...
Sua larva.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Resenha Game: Batman - Arkham City


"Há momentos na vida em que nos deparamos com jogos de video games que são tão maneiros e atendem tão bem nossas expectativas que, quando terminamos, pensamos:
'Puta merda! Por que é tão curto?!'".
Foi assim que eu comecei a minha resenha de Batman - Arkham Asylum em 12 de outubro de 2009. Hoje, pouco menos de dois anos depois, eu não posso usar essas mesmas palavras pra abrir a minha resenha de Batman - Arkham City (Embora eu tenha feito isso...), por uma única razão:
Ao contrário do game de 2009, essa sequência não é curta.
O modo history, sozinho, já ocupa várias e várias horas de jogo, comprando a versão do game que está nas lojas, tu recebe de brinde a trama paralela da Mulher-Gato, que acrescenta tempo de jogo, e o conteúdo extra do Robin, com desafios exclusivos do Garoto-Prodígio. Além da linha narrativa principal do morcegão, mais a aventura paralela da Mulher-Gato, ainda há uma infinidade de investigações secundárias para realizar. Se tu for do tipo encucado e sair atrás de todos os troféus e enigmas do Charada, a coisa vai ainda mais longe, e o tempo de jogo, assim como o fator replay, sobem a níveis estratosféricos, garantindo incontáveis horas na pele (toda arrebentada) do herói.
Na trama dessa segunda aventura, que se passa cerca de seis meses após os eventos narrados em Batman - Arkham Asylum, Quincy Sharp, o diretor da instituição no game anterior é agora o prefeito de Gotham City. Conforme descoberto pelo Batman no game anterior (Se o jogador fosse um piromaníaco desesperado que usasse três cargas de gel explosivo na parede do escritório do diretor...) ele levou adiante seus planos para remodelar o Asilo Arkham.
A remodelação consistiu em desapropriar uma grande área da cidade, erguer altos muros ao redor, e jogar lá dentro toda a escória de Gotham City, apartando-os da população geral sob a direção do vilão Hugo Strange e a vigilância da polícia particular TYGER, deixando que os vilões cuidassem de suas próprias vidas sem afetar aos contribuintes.
Não é preciso dizer que essa ideia estapafúrdia não agradou ao Batman, que, em sua identidade civil de Bruce Wayne começa uma campanha contra a prisão urbana.
Porém, conforme mostrado nos trailers, Strange descobriu a identidade secreta do morcego, e o captura, jogando-o em meio à bandidagem. Usando suas habilidades marciais, Wayne escapa dos criminosos e consegue contatar Alfred (Remediando sua estranha ausência do game anterior.), que lhe envia o traje e os equipamentos.
Aí é que o jogo começa de verdade. Batman ouve Strange falar sobre um Protocolo Dez, que se iniciará em algumas horas, e começa a correr contra o tempo para descobrir de que se trata o tal protocolo e impedí-lo.
Enquanto faz isso, o maior detetive do mundo ainda precisa lidar com criminosos vingativos como o Pinguim, o Charada, Zazs, Duas-Caras, Chapeleiro Louco, Senhor Frio, Solomon Grundy, além de um Coringa entre a vida e a morte e sua fiel Harlequina, Cara de Barro, R'as e Talia Al-Ghul e a Liga dos Assassinos, além de toda a bandidagem rasteira de Gotham City.
A jogabilidade um dos pontos altos do game anterior, permanece inalterada, o sistema de combates, porém, recebeu aprimoramentos que permitem que o Batman enfrente dúzias de adversários simultâneamente, o que, de fato, acontece com alguma frequência quando se anda por vielas sombrias apinhadas de vagabundos furiosos. Os equipamentos do game anterior retornaram, e há interessantes adições, como as granadas e raios congelantes (Cortesia de Victor Fries).
Em Batman Arkham City o estúdio Rocksteady aumenta o escopo do game anterior, segue com uma história envolvente e trama bem construída com o selo Paul Dini de qualidade, gráficos excelentes tanto nos cenários quanto nos personagens (que guardam a marca do estilo dos estúdios Wildstorm, de Jim Lee) e ótimo trabalho de dublagem, com destaque (Como de praxe) para o Batman Kevin Conroy e o Coringa de Mark "Luke Skywalker" Hammill, e entrega mais um tremendo jogo de Batman, que mostra o quanto os estúdios pisam na bola ao aproveitar super-heróis apenas em jogos caça-níqueis que saem junto com os filmes.
O público brasileiro que comprou o jogo nas lojas ainda ganha legendas em portugês brasileiro, o que, apesar de alguns errinhos aqui e ali, é sempre legal, e mostra que os bambas do mundo dos games lembram que existem gamers tupiniquins.
E que venha o terceiro Batman, e o quarto, quinto, sexto...

"-Era tudo mentira. Não há nada de errado com você.
-Gentil de sua parte dizer, mas dentre todas as pessoas, você devia saber que... Há muita coisa errada comigo."

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Pescoço


Os três, Sócrates, Adamastor e Lizandro haviam acabado de correr cinco quilometros. Estavam moídos de cansaço e se apoiaram no guarda-corpo à beira do estuáfio Rio Guaíba para ver enquanto o sol se deitava ao mesmo tempo em que recuperavam o fôlego.
Ali pelas tantas o Lizandro falou:
-Tem coisa melhor do que ver esse pôr-do-sol com uma inundação de endorfina correndo pelas veias?
-Seria melhor não estar com dois marmanjos peludos fedendo a saco suado. - Retrucou o Sócrates.
-Verdade. - Assentiu o Lizandro. -Sentir o cheirinho de uma mulher recém saída do banho seria muito melhor... O cheirinho nos ombros... Ah, os ombros...
-Bom, mesmo - Disse o Adamastor - É braço de mulher. Hmmmmmm... Braço, mesmo, saca? Não antebraço, aquela parte acima do cotovelo, onde existe um pouco mais de carne, ah, meu Deus... Cair de dente ali, não pra machucar, até porque a pele do lado de dentro do braço, ali junto ao corpo, é muito fininha, mas morder ali, mordiscar... Cara...
-E a penugem? Aquela penugenzinha dourada que tem naquela parte do braço? - Perguntou o Sócrates, revirando os olhos.
-Ah, as penugens... Aquela bem levinha, na côxa, tá ligado? Douradinha, os pêlos quase imperceptíveis... - Lembrou o Lizandro.
-E o cheiro? O cheiro natural da pele das côxas da mulher? O que é aquilo? Não é o acinte de um perfume com fixador máximo, não, é um lance suave, doce... É doce, não é? Adocicado... - Perguntou o Adamastor.
-É, é adocicado.
-Pode crer. - Concordaram Sócrates e Lizandro, após pensarem brevemente.
-Deve ser o lance do canibalismo, sentir aquele cheiro no paladar, mas mais forte...- Consecturou o Sócrates.
Suspiraram brevemente. O Lizandro voltou a falar:
-Ah, e a bunda? Bunda não pode faltar, aquele ponto em que a côxa vira nádega? Sabe?
Os dois sabiam, suspiraram.
-Quadris. - Falou simplesmente o Sócrates, sem dizer mais nada, e os outros dois suspiraram de novo.
-Seios. - Disse o Lizandro. Não precisam ser muito grandes, claro, se forem, beleza, mas não precisa. Aquela pele suave, fininha, macia que tem ali... Aquilo, sozinho, não importa o tamanho, já justifica as horas de treino pra aprender a tirar o sutiã de alguém sem olhar...
Os outros dois concordaram.
Ficaram em silêncio vendo o sol sumir nas águas escuras do Guaíba, e o céu ficar púrpura, e então azul-marinho, apenas com um raio lilás no horizonte.
Começaram a se mexer pra ir embora, mas o Adamastor, que continuava apoiado no guarda-corpo falou:
-Bom, mas bom mesmo, mesmo, de verdade, é pescoço. Pescoço é mais do que apenas bom, pescoço é mais do que apenas ótimo. Pescoço conversa. Quando tu beija o pescoço de uma mulher é uma conquista, é intimidade, beijar na boca a gente beija direto, é ótimo, mas o pescoço, pescoço a gente só beija quando as coisas estão redimensionadas. E o barato do pescoço é que ele é uma via de duas mãos, quando tu beija o pescoço de uma mulher, a nuca de uma mulher, significa que tu quer mais do que apenas a intimidade artificial de um beijo nos lábios, significa que tu quer o pacote todo, e se a mulher beija o teu pescoço, meu amigo, ah, aí é porque ela já aceitou o pacote completo com tudo o que tem direito. Beijo no pescoço, meus camaradas, esse sim é o marcador definitivo de afeto de uma relação homem/mulher.
O Lizandro e o Sócrates não disseram nada. Balançaram a cabeça brevemente enquanto olhavam pro infinito. Despediram-se sem muitas palavras, e então foram embora, cada um para sua respectiva casa, todos pensando se já não deviam ter um pescoço feminino pra beijar em casa.

Até no apocalipse zumbi


-Não te preocupa - Disse o Celso, enquanto olhava pra pia inundada. - Não te preocupa que tá tudo sob controle.
Esse era meio que o mote do Celso, ele sempre dizia que estava tudo sob controle, não importava qual fosse o problema. Podia ser cama quebrada, ventilados de teto pifado, apocalipses zumbi, não fazia diferença, o Celso sempre dizia que tinha tudo sob controle.
A Karina gostava disso no Celso. Ás vezes ela via que ele não tinha tudo sob controle, nada, mas se mantinha calmo em qualquer situação, de engasgos com comida a apocalipses zumbi. Talvez fosse essa qualidade tranquila do Celso que atraisse a Karina acima de tudo. Ela achava que isso demonstrava maturidade do Celso, e essa era uma coisa que ela procurava em um homem. Bom... Na verdade que quase toda a mulher procura em um homem, então...
De qualquer forma, o que, a princípio era uma tremenda qualidade, com o tempo foi se tornando um defeito. A Karina começou a ficar em dúvida se essa maturidade e tranquilidade do Celso não eram frieza pura e simples, afinal de contas o Celso, ensimesmado que era, não deixava muitas pistas de como se sentia a respeito de nada, do relacionamento com a Karina a apocalipses zumbi.
A questão é que a Karina começou a se sentir afastada do Celso, distante, começou a pensar se havia amarrado seu burro à árvore certa. Se havia futuro numa relação que era, grosso modo, secreta, já que os sentimentos de Celso, se é que existiam, pareciam estar enterrados sob toneladas de concreto.
Foi numa sexta-feira, quando uma Karina desgastada e aborrecida teve problemas com a resistência do chuveiro e se viu, a contragosto, obrigada a clamar pelo auxílio do Celso, que, ao contrário dela, era capaz de alcançar o chuveiro sem o auxílio de uma escada.
-Não te procupa - Ele disse. -Tá tudo sob controle.
A Karina, desgostosa, perguntou casualmente:
-Tudo mesmo?
-Tudo. - Ele aquiesceu. Mas fez a ressalva:
-Menos o meu amor por ti.
A Karina perguntou por reflexo:
-Como?
Mas o Celso apenas sorriu enquanto trocava a resistência do chuveiro e o ligava com a água bem quente, como ela gostava.
-Tá pronto teu banho. Aproveite.
A Karina sorriu enquanto fechava a porta do banheiro, e soube que continuaria apaixonada por aquele cretino turrão e auto-controlado em exceesso, até mesmo na eventualidade de um apocalipse zumbi.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Satisfação


-Sabe... - Disse o Eliseu, no balcão da lanchonete com os amigos. - Se eu fosse um animal, eu gostaria de ser um urso. Um urso pardo, talvez... Mas definitivamente um urso. Mas acho que seria um lobo. Lobos são um pouco mais fracos fisicamentes, e passam por mais trabalho. Eu gostaria de ser assim, um animal caçador. Um predador que é um dos alicerces do seu ambiente...
O Álvaro pensou brevemente enquanto engolia o seu cachorro quente e disse após pigarrear:
-Eu gostaria de ser um cavalo. Mas um cavalo selvagem, tipo um mustangue. Queria correr livre pelo prado fugindo dos índios e comendo milhas e milhas com os meus cascos. Eu acho que seria, sim, um cavalo, talvez, porém, fosse um cavalo de tração. Cheio de potencial, mas sendo sub-utilizado por outros... - Concluiu pesaroso.
Os dois olharam pro Sérgio, que comia um chesse coração.
-E tu, Serjão? Queria ser que bicho?
-Eu queria ser um cachorro, pra poder ficar em casa olhando TV deitado no sofá. De preferência um cachorro de raça, com pedigree, porque aí me convidariam pra cruzar com umas cachorras bem ajeitadas de vez em quando, e eu só teria que tomar banho uma vez por semana.
Os outros dois ficaram olhando pra ele brevemente. O álvaro retrucou:
-OK, isso é o que tu queria ser, mas tu acha que seria...?
-Hã... A mesma coisa, só que um cachorro vira-lata.
Os três voltaram a comer. O Eliseu disse:
-Quero mudar meu voto. Não quero ser um urso ou um lobo, quero ser um cachorro.
-Eu, também. - Suspirou o Álvaro.
Homens, são, pois, simples de satisfazer.

Ideias distintas


O Abílio e a Roberta, ambos extremamente religiosos, viajando juntos para o casamento no Rio natal dos pais dela. Toda a cerimônia aconteceria conforme os sonhos da Roberta, uma menina meiga e doce e dedicada que encontrara em Abílio, um rapaz gentil, educado e centrado o seu príncipe encantado.
Casarse-iam virgens, á moda da Sandy e do Kaká.
Eram feitos um para o outro, ambos solenes, rebuscados e polidos. Se não casassem um com o outro, talvez jamais se casassem.
Vajavam pois, juntos de Porto Alegre ao Rio de Janeiro, onde moravam os pais dela, lá fariam a cerimônia de casamento onde iriam celebrar seu amor diante do Deus a quem devotamente seguiam e às suas respectivas famílias.
Imprevistos, poré, sempre podem acontecer, e Abílio e Roberta tiveram problemas com a conexão do vôo e acabaram em um hotel bem meia-boca pago pela companhia aérea em Santa Catarina. Como eram um casal, acabaram colocados em um quarto que possuía unicamente uma cama de casal, sem sofá. Naquela noite gélida de agosto, a Beta, não faria o futuro marido dormir no chão frio. Não eram animais de fazenda podiam controlar-se, deitar-se iam juntos e dormiriam candidamente sem malícia, pois. Podiam esperar até que seu casamento fosse oficial aos olhos das leis dos homens e de Deus, era-lhes importante que fosse assim.
Deitaram-se após escovarem os dentese vestirem seus pijamas, abafaram-se sob as cobertas e apagaram as luzes dando singelos beijinhos de boa-noite e virando-se cada um para um lado.
Menos de dez minutos depois, porém, a Roberta, friorenta que só ela, tremendo, toda encolhida sob o edredom, cochichou quase batendo queixo ao ouvido do Abílio:
-Bílio? Tá acordado?
O Abílio, acordando, confirmou num grasnado:
-Arram.
A Beta, com voz chorosa suplicou:
-Me pega mais uma coberta? Eu tô tiritando aqui...
O Abílio, alquebrado pela viagem, moído de cansado, porém dedicado, se levantou da cama esfregando os braços, andou até o armário, e apanhou um cobertor. Sonolento, se aproximou da cama e ofereceu a coberta à Roberta, que pediu, novamente com a voz melosa:
-Me cobre?
E Abílio, dedicado e com os olhos cheios de remela, a cobriu com delicadeza e dedicação, voltando á deitar-se.
Era, porém, uma noite bastante fria, e Roberta era suscetível ao frio como um haviano morando na Sibéria, de modo que, menos de meia hora depois, acordou-se novamente com frio:
-Abílio? Ô Abílio... Tá acordado?
O Abílio, novamente despertao de seu sono, resmungou um "sim" quase ininteligível.
-Ainda tô com frio, Bílio... Me pega mais uma coberta? - Suplicou-lhe a Roberta com a voz cheia de manha.
Novamente ergueu-se Abílio da cama como se fosse um zumbi de George Romero, rengueando com dificuldade até o armário, apanhando um cobertor e o colocando delicadamente sobre a Roberta, que agradeceu-lhe sorridente.
Foi apenas ás quatro e quinze da manhã que Roberta cutucou novamente o Abílio.
-Bílio? Ô Bílio? Abílio!
Abílio abriu os olhos, olhando em volta, assustado:
-Quê foi?
-Ai, me deu mais frio... Me pega outra coberta?
Abílio virou-se para Roberta na cama, olhou-a nos olhos, e, com voz aveludada sugeriu em tom de traquinagem:
-Beta... E que tal se, só por hoje, nessa noite fria, a gente fingisse que já somos casados?
A Roberta, surpresa pela audácia e pela malícia contidas na proposta súbita de Abílio sorriu sem graça. Revirou os olhos castanhos brevemente enquanto pensava, o que poderia acontecer de mais? Pensou. Estavam mesmo viajando para se casar, ninguém os condenaria por uma pequena insensatez movida a frio e paixão.
Então, mordendo os lábios de ansiedade, assentiu num cochicho hiperventilado:
-Tá bom, vamos, sim!
Abílio sorriu tocando-lhe o rosto com delicadeza, e então disse:
-Tá, então vai lá e pega tu a tua coberta, nêga.

Homens e mulheres têm ideias bem distintas do que é casamento...

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Resenha Game: Grand Theft Auto IV



Ontem foi divulgado o primeiro trailer do aguardado GTA V, nova sequência da polêmica e mal afamada série campeã de vendas da Rockstar Games, empresa que, depois da má resposta do público à aposta da desenvolvedora no policial LA: Noir, precisa de um hit de vendas para recuperar o prejuízo.
Nunca fui um grande fã da série dos ladrões de carros. Na verdade, passei batido pelas versões Vice City, San Andreas e outras.
O primeiro game da série GTA em que coloquei minhas garras foi justamente Grand Theft Auto IV, lançado em 2008 para Playstation 3.
Fui imediatamente fisgado pela história de Niko Bellic, o personagem central do game. Um sujeito durão e atormentado, mas espirituoso e humano, Niko, além de todos os outros tipos estranhos que orbitavam ao seu redor, são assim, conquistam o player na primeira cut scene.
Nem sei quantas vezes terminei GTA IV sem conseguir completar os cem por cento do game e nem quantas mais ainda voltarei a fazê-lo porque GTA IV é um tremendo jogo.
O game é centrado no personagem Niko Bellic, sérvio veterano da guerra dos balcãs, e ex-contrabandista de pessoas que chega à Liberty City (Dublê de Nova York) para se encontrar com o primo Roman, com quem se corresponde a anos, e de quem ouve apenas maravilhas sobre a América.
Ao chegar a seu destino e encontrar o primo, porém, Niko descobre que os e-mails de Roman podem ter sido um pouco exagerados, e que, ao invés de mansões, carros esportivos e modelos nuas em banheiras de hidro-massagem, ele pode encontrar agiotas e mafiosos rosnando nos seus calcanhares.
É a partir do primeiro confronto com os agiotas que Niko se vê em uma espiral descendente que o arrasta mais e mais profundamente no mundo do crime organizado de Liberty City.
É impossível não se divertir nas horas e horas que se pode passar diante do console jogando. Há uma imensa variedade de missões paralelas e atividades periféricas a se realizar sem que seja necessário avançar na history line do jogo propriamente dita.
Há shows de comediantes (com Ricky Gervais e Kaat Williams, que dublaram e participaram da captura de movimentos dos shows de stand-up que protagonizam no jogo.), rádios diversas com seleções de músicas feitas por cantores de verdade (Iggy Pop e Juliette Lewis são os responsáveis pelas rádios de rock do game, por exemplo...), mais de cem websites criados para expandir a "realidade" do mundo do game, além de programação de TV, jogos de fliperama, jornais e noticiários.
Tecnicamente o jogo é espetacular, a imensa área de Liberty City com suas quatro ilhas, Broker, Bohan, Algonquin e Aldernay não estão disponíveis desde o início do jogo, mas a certa altura, todas estão lá para serem visitadas sem que haja intervalo de carregamento entre uma e outra, um feito especialmente grandioso se levarmos em conta o nível de detalhamento das áreas da cidade.
O gameplay é de fácil assimilação, com comandos simples e bem atrelados à ação, tanto nos momentos de entrar em confronto, seja físico ou armado, quanto na direção de bólidos possantes, afinal, esse é um game da franquia do ladrão de carros.
Todo o esmero técnico do game, porém, não valeria nada se não houvesse uma grande história em GTA. Por sorte, essa história está ali.
Niko não é apenas um capanga do crime organizado, ele tem uma missão particular em Liberty City, e é assombrado por um passado sangrento na Sérvia. Ele queria mudar, levar outra vida nos EUA, mas aparentemente, a única linha de trabalho disponível para ele, além dos táxis do primo endividado, é empunhando uma arma.
Niko dança conforme a música e se aprofunda no lado mais sombrio da vida na grande metrópole conforme vê o sonho americano em ruínas. O carisma do personagem central, além, claro, de todos os excelentes personagens coadjuvantes, como Little Jacob, Packie e Francis McReary, Brucie Kibbutz e tantos outros que formam a "fauna" de Liberty City ajudam o game a ser uma potente sátira ao American Way of Life fantasiada de entretenimento eletrônico. Se duvida, dê uma olhada em todos os websites disponíveis na internet dentro do game, ou passe algumas horas assistindo TV em um dos apartamentos dos Bellic.
Enfim, GTA IV certamente é um dos dez melhores games já lançados para videogames de qualquer plataforma, um triunfo narrativo e técnico que prende o player ao joystick, e que, entre um tiroteio e outro, ainda te oferece alguma coisa em que pensar.
Boa sorte GTA V. Você vai precisar.

"-Você não se preocupa com a sua alma?
-Depois que você entra em um vilarejo e vê cinquenta crianças, todas sentadas em fila, apoiadas contra a parede de uma igreja, com as gargantas cortadas e as mãos decepadas você percebe que a criatura capaz de fazer isso não tem alma."

Aí o link para ver o trailer do quinto game da franquia.
http://www.youtube.com/watch?v=oQYn8qKebLk

Frustração


Não são as feridas nas mãos, nem o torcicolo de ter dormido todo torto em um carro caindo aos pedaços. Não é o cheiro de tinta nem a tinta, mesmo, presa embaixo das unhas. Não é a dor nos músculos dos ombros, nem tampouco as três horas e meia tendo que escolher entre ouvir Roupa Nova ou as peripécias do filho recém nascido do seu primo.
Não é o remorso por fingir que estava dormindo pra não precisar conversar, nem a dor na consciência por ter jogado fora um pincel recém comprado por preguiça de lavá-lo. Não é a raiva por estar fazendo um trabalho que tu pensou ter deixado pra trás quando ainda era adolescente, e, pra piorar sem ser pago, apenas por pressão de familiares chantagistas que te supões o único homem em idade produtiva da família.
Não... Tudo isso é secundário.
Essas pequenas dores, raivas e angustias suburbanas são superáveis.
Quando ele estava no chuveiro pela manhã, junto com a tinta e o suor do labor daqueles dois dias intermináveis ele viu escorrer pelo ralo aquelas frustrações comezinhas.
A frustração que ficou, aquela que ainda persiste, que não se vai, é a de tê-la desapontado.
A de tê-la deixado sem resposta, a de tê-la deixado ir sem dizer um "oi!", um "tchau", e vários "eu sou louco por ti" entre uma coisa e outra. A frustração que permanece, é a de que ela deve, e com razão, ter se cansado dele, da família dele, e das bagunças que surgem entre um e outro. A frustração que permanece, de verdade, é a que ele causou nela. E a dolorosa compreensão de que ela merece mais, e muito, muito melhor, e que ele merece apenas aquela foto, aqueles presentes e as lembranças... A lembrança do cheio do cabelo dela, da textura da sua pele, do gosto dos seus lábios.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Privação


-Quando eu era criança me ofereceram um cachorro...
-Que sortudo que tu é. Pra mim nunca ofereceram cachorro, eu sempre pedia e nunca me deram. Me diziam que dava trabalho, responsabilidade, que quando eu fosse uma menina crescida, se eu ainda quisesse muito um bochinho podia ganhar um gato.
-É... Pra mim ofereceram um cachorro de presente, e eu não quis.
-Tu não quis?
-Não.
-Por que? Tu tem medo de cachorro?
-Não... Não, não tenho medmo, não. Eu adoro cachorro, na verdade... Gosto muito, acho um bicho muito maneiro.
-Quantos anos tu tinha?
-Uns oito anos, eu acho... Oito, nove...
-Mas então porque tu não quis o cachorro quando te ofereceram?
-Eu... Eu sabia que cachorro viviam menos que a gente. Eu sabia que, antes de eu ser um adulto, o meu cachorro já seria um ancião. Ele ia começar a se deteriorar, e não ia poder me acompanhar nas brincadeira, e eu ia sentir pena dele. Ele ia ficar doente, e talvez tivesse que ser sacrificado. Eu não ia poder suportar a perda. Eu talvez não me recuperasse.
-Mas... Mas isso é a ordem natral das coisas... A gente não é eterno. Da mesma forma que a gente perde quem a gente ama, muitas pessoas que nos amam nos perdem... Os bons momentos que tu e o teu cachorro tivessem passado juntos iriam superar a tristeza de tê-lo perdido, especialmente se tu tivesse te esforçado ao máximo pra garantir que a vida dele fosse tão boa quanto pudesse ser pelo tempo que ela durasse...
-É... Hoje em dia eu sei disso. Naquela épca eu não sabia, então não quis ter o cachorro. Aliás, eu me privei de muitas coisas na vida pensando nisso, sabe? Em não sofrer com a perda... Não queria me afeiçoar nem a nada nem a ninguém, não queria me apaixonar, e nem me aproximar de nada... Preferia ser mártir a ser testemunha.
-E o que te fez mudar de ideia?
-Tu.

O Amor é um zorrilho.


-O amor... - Começou o Everaldo, arrancando um suspiro do Paulo Roberto.
-O que tem o amor, Everaldo? - Perguntou, a contragosto.
-O amor é um zorrilho, Pê Erre... O amor é uma porra dum zorrilho manco e faminto... - Disse Everaldo, com os braços caídos sobre o próprio colo, encarando as bolachas de chope de sempre, na mesa de sempre, no bar de sempre. Encarou o Paulo Roberto com os cantos da boca virados pra baixo e reforçou com um cochicho, a voz começando a embragar:
-Um zorrilho...
-Putz... Um zorrilho? - Perguntou Paulo Roberto, comendo uma castanha de caju da tigela de vidro verde no centro da mesa.
-Um rozilho, Pê Erre... Digo, um zorrilho. É uma porra dum zorrilho, um bicho fedido, um bicho medonho, um bicho nojento...
-Ah, peraí, Everaldo, os zorrilhos não são medonhos, vá... São bonitinhos, até... Não te lembra do Peppe Le Pew, dos Looney Tunes? Todo romântico, e tal, apaixonado por aquela gata... Como era o nome da gata?
-Cala a boca, Pê Erre. Não tá vendo que eu tô em crise?
-Everaldo, meu velho, tu tá em crise desde que eu te conheci. E isso já tem uns vinte e poucos anos.
-Baita amigo, tu é. Eu aqui, fragilizado, e tu tirando sarro de mim. Quer saber o que mais? Vai tomar no olho desse teu cu, tá sabendo?
O Paulo Roberto riu enquanto sinalizava pro garçom pedindo mais uma Coca-Cola.
-Tá bom, Everaldo, então abre o teu coração. Me diz qual é o mal que te aflige.
O Everaldo resmungou alguma coisa enquanto se endireitava na cadeira com os braços equilibrados sobre a mesa molhada que sujou as mangas de sua camisa branca. Suspirou como quem ia começar a falar, mas refreou-se quando o garçom chegou com o refrigerante do Paulo Roberto.
-Mais um chope, Everaldo? - Perguntou o rapaz, apontando com o queixo pro copo vazio diante do cliente.
-Agora não. - Respondeu o Everaldo.
-Obrigado. - Complementou Paulo Roberto, olhando pro Everaldo com reprovação.
Serviu a Coca no copo com gelo e limão e olhou pro Everaldo:
-Então...?
O Everaldo suspirou, olhando em volta.
-Pê Erre... Tu é feliz?
O Paulo Roberto ficou encarando o Everaldo sem expressão.
-Como assim...? Quer dizer... Não sei, por que isso?
-É uma pergunta simples pra caráleo, Pê Erre, a resposta devia ser, também. Tu é feliz?
O Paulo Roberto ficou sério... Olhou pro próprio copo, olhou pra TV do bar, ligada na ESPN, e riu:
-Cara... Não é assim tão simples... Quer dizer... Se eu tivesse que dizer simplesmente sim ou não, eu diria provavelmente que não... Mas eu não acho que a vida seja assim, eu não acho que a gente seja feliz ou infeliz, acho que a gente tem momentos de felicidade e de infelicidade. Eu já experimentei os dois, entende? Já fui feliz e já fui triste. Acho que a gente não pode se definir como feliz ou infeliz porque, quer dizer, a vida vai sucedendo episódios, então, a gente não pode dizer "eu sou feliz" ou "eu sou infeliz", porque logo ali adiante, pode acontecer alguma coisa nova e mudar isso.
O Everaldo ficou olhando detrás dos óculos pro Paulo Roberto enquanto mexia com o dedo em um anel de água que suara de um copo de chope:
-OK... Faz sentido... Eu acho que tu ficou punheteando o assunto pra não responder, mas tem fundamento no que tu disse... Então me diz... Hoje... Tu tá feliz?
O Paulo Roberto jogou a cabeça pra trás e contraiu os lábios como quem reclama, mas se conteve. Suspirou:
-Hoje, em que sentido? Na últimas vinte e quatro horas? Nessa fase da minha vida? Nesse momento?
-Digamos na porra das últimas vinte e quatro horas, Pê Erre.
-Bom... Eu diria que sim, quer dizer... Eu estou com um amigo, que mesmo sendo chato pra caramba, depressivo, e incapaz de apenas jogar conversa fora como qualquer pessoa normal me acossa com profundas questões filosóficas... Estou vendo gente, tomando um refrigerante geladinho, comi um sanduíche bastante satisfatório, não me aconteceu nada de ruim no trabalho, minha casa está dentro de um patamar que eu considero funcional... Sim. Eu diria que nas últimas vinte e quatro horas eu estive mais pra feliz do que pra infeliz.
O Everaldo comeu uma castanha-do-pará da tigela no centro da mesa.
-"Mais pra feliz", tu disse... Mas feliz, feliz mesmo... Tu tá, Pê Erre?
O Paulo Roberto se impacientou:
-O que tu quer ouvir, Everaldo Que eu sou infeliz? Que minha vida é uma merda? Que eu me acordo todo dia de manhã pensando que ela não tá comigo? Que eu não senti mais o cheiro dela, do cabelo dela, que eu não vi mais o rímel em volta dos olhos dela, nem senti o sabor do batom com nome fazendo referência a alguma coisa fofa, que eu não senti mais a textura da pele dela, que eu não senti mais a maciez dos lábios dela... Então tá, eu sou infeliz, eu sou miserável, eu sou um desgraçado, um arremedo tristonho de gente, um autômato movido a sofrimento, tá melhor assim? Assim satisfaz a tua necessidade de companhia na tragédia?
O Everaldo tirou os óculos e os limpou enquanto acenava pro garçom com seu copo vazio. Colocou novamente os óculos no rosto enquanto pigarreava:
-Tu percebeu, né, Pê Erre... Que quem falou dela não fui eu... Foi tu. De qualquer forma, me agrada saber que tu tá infeliz por causa dela. Sabe... Isso me conforta por que vai ao encontro da minha ideia dessa questão de felicidade e infelicidade. Sabe, o meu ponto de vista, Pê Erre, é que, porra, se tu já foi feliz, como eu acho que tu foi com ela, e como, caralho, eu sei que eu já fui, quer dizer... Quando tu experimenta a definição de felicidade que é se sentir completo no abraço de alguém, ou se sentir melhor porque encontrou uma pessoa que te força sem nenhum esforço a ser o teu melhor... Porra... Porra, Pê Erre... Depois que a gente experimenta a felicidade desse jeito, sabe? Como essa merda é feita pra ser, porque, se existe um Deus, e ele inventou a felicidade, a porra que ele tinha em mente era isso: A completude que tu encontra em outra pessoa. O acalento. A calidez... Puta que pariu, tô me desviando do assunto...
Everaldo silenciou quando o garçom chegou, passando um pano na mesa para secar o excesso de água, pousou a bolacha e o copo diante do Everaldo, e saiu ouvindo o obrigado do Paulo Roberto.
Everaldo seguiu:
-De qualquer forma, Pê Erre, quando tu experimenta a felicidade que a gente experimentou ao lado delas, todo o resto é infelicidade. E sabe o que é mais estranho nessa putaria toda? Eu nem sequer lastimo a infelicidade de agora, porque essa porra serve pra eu lembrar o quanto eu já fui feliz. Por isso o amor é um zorrilho, Pê Erre, ele fica impregnado em ti, e não importa quantos banhos tu tome, em algum momento, tu vai lembrar do cheiro.
O Paulo Roberto pensou em parar de beber, mas lembrou-se que não bebia já tinha alguns meses. Tomara apenas refrigerante naquela noite. Isso o deixou, de fato, alarmado. Ele encontrara sentido no que lhe dissera o Everaldo, e sequer estava bêbado.
Era um mundo torto aquele em que Paulo Roberto vivia. Everaldo falava coisas com sentido, e ela e ele estavam separados.