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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Ia ser bonito, não ia?


Ia ser bonito, não ia?
Se eu encontrasse um recado teu logo cedo de manhã no meu celular.
Uma coisinha boba. Um bom dia que fosse. Ia ser bonito. Até um e-mail. Ia ser, sim.
Por que ás vezes, as coisas mais bobas, mais simples, têm um significado especial, dependendo de onde elas vêm. De quem elas vêm. Porque elas vêm. Proveniência é tudo, eu acho.
Mas ia ser bonito, não ia?
Se eu acordasse de manhã, e a primeira coisa que eu visse, fosse o teu rosto.
E eu ia me levantar com cuidado pra não te despertar antes da tua hora. Ia ser, sim.
Por que muitas vezes a gente levanta de mau-humor pois falta algo pra dar a perspectiva exata de o quanto a gente é feliz e não sabe. A gente podia ser muito feliz, eu acho.
Ia ser bonito, não ia?
Se no trabalho, em um momento particularmente chato, eu, distraído, irritadiço, meio rabugento, levasse a mão ao nariz depois de levantar os óculos, e encontrasse lá o cheiro do teu creme perfumado. E eu ia ficar mais tranquilo, sabendo que no fim do dia, eu ia sentir aquele cheiro em ti, na tua pele. No teu pescoço. Talvez atrás da orelha. Ia ser, sim.
Por que a felicidade tem gatilhos. E os meus todos iam ser relacionados contigo. Teu cheiro, voz, gosto e textura. Tua cor, forma e movimento. Talvez tu pudesse encontrar um gatilho relacionado comigo, também. Procurando bastante tu encontraria alguma coisa, eu acho.
Mas ia ser bonito, não ia?
Se um dia eu resolvesse te surpreender cozinhando pra ti. Fazendo o teu jantar. Ia pegar umas receitas do Gordon Ramsey e ia errar tudo. Ia emporcalhar toda a cozinha, e amaldiçoar minha falta de jeito quando tu fechasse um olho bem apertado enquanto dava a primeira garfada. E a gente ia pedir uma pizza e limpar a cozinha enquanto esperava ela chegar, e tu ia me beijar e dizer que o que valia era a intenção, e depois nós comeríamos pizza vendo Como Funciona o Universo sob os teus protestos, ou um filme Dinamarquês em preto e branco sob meus protestos enquanto brigávamos pela última fatia de quatro-queijos, mas ainda assim, abraçados. Ia ser, sim.
Por que eu ia querer ser melhor pra ti, porque tu seria perfeita pra mim, aguentando os meus defeitos mais chatos, as minhas manias mais irritantes, e, de vez em quando, tu ia bufar depois que eu fizesse uma besteira, mas aí ia respirar fundo, me olhar e sorrir, pois ia saber que eu estava dando o máximo, mesmo não sendo tão bom quanto tu é ao natural. Eu nunca conseguiria ser bom como tu merece, eu acho.
Ia ser bonito, não ia?
Se um dia, bem velhinhos, tu me abraçasse no hospital depois de eu quebrar o quadril brincando de Homem-Aranha com o nosso bisneto, e me dissesse "Tu não mudou nada", e eu sorrisse em silêncio, sem replicar, mas no fundo soubesse que era uma pessoa muito melhor por causa do convívio contigo, e te agradeceria sem dizer nada por ter sido tão paciente e persistente durante tantos anos, e por não ter desistido de mim quando a maioria das outras pessoas teria. Ia ser, sim.
Por que ás vezes a gente não tem ideia do que estava perdendo até experimentar. E nessas horas, a gente só pode agradecer à pessoa que nos forçou a tomar a atitude que mudou quem éramos e fez com que imaginássemos como era possível ter vivido sem aquilo todo aquele tempo. Tu ainda vai me forçar a experimentar, eu acho.
Eu sei...

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Rapidinhas do Capita


Vi um cachorro manco um dia desses. Fiquei arrasado, deprimido, me sentindo um crápula por ser, sei lá, crápula demais, calculista demais, prático demais pra fazer alguma coisa, qualquer coisa pra aliviar a vida daquele cachorro. Ele não parecia estar sofrendo. Estava andando, mas havia alguma coisa naquele bicho com a pata atrofiada, que revirou meu estômago, não no sentido de nojo, por que eu não tenho essas frescuras, como pizza de estrogonofe assistindo O Homem-Elefante, não o filme sobre John Merrick, mas o documentário sobre o doente asiático com tumores gigantes no rosto. Deve servir pra dar uma ideia de como eu não sou nojento. Enfim, aquele cachorrinho me revirou o estômago. Amaldiçoei a minha própria mente lógica, que diz que servir um pote de água e de ração pra aquele cãozinho mutilado não significaria absolutamente nada no balanço do universo, até por que, o universo não fecha pra balanço, e nem tem balanço algum baseado nas coisas que a gente vê por aí.
O cachorrinho seguiu mancando pela rua, e eu o observava.
Foi quando vi, atrás do cachorro, um papeleiro, desses que puxam carrinho. Ele parou com o carrinho para recolher caixas de papelão e o cão parou junto com ele. Me aproximei, e perguntei se o cachorro era dele. Ele assentiu. Disse que o cachorro era dele, e mais que isso, era seu melhor amigo. Pulei no mercado e comprei-lhe um pacote de ração dos médios. Uma água com gás, pois anda quente pra danar em Porto Alegre. Ele era colorado. Dei-lhe, também, uma das minhas trocentas mil camisas do Inter. Ele agradeceu dizendo emocionado, que era sua primeira camisa oficial do Inter.
Eu o vi ir embora, e colocar o cachorro dentro do carrinho de papelão.
De algum modo, o fato de saber que aquele cachorro não estava só, me fez sentir menos culpado por não me sentir tão só ultimamente.

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Sabe aqueles dias em que tu acorda de mal com o mundo? Aqueles em que não aconteceu nada de particularmente errado, mas aquele inescapável espírito de porco te pegou? Aí tu sai de casa olhando torto pra todo mundo, responde ao "bom dia" musical da moça da banca de jornal com um "oi" grunhido entre dentes cerrados e torce pro teu chefe não estar no escritório por que se estiver tu é capaz de mandar ele longe?
Aqueles dias em que tu leva uma maçã verde pro trabalho, daquelas verde-escuras mais cítricas, quase azedas que tu adora, mas quando olha pra fruta ela não te apetece? Em que tu não participa de nenhuma conversa por que sabe que pode acabar sendo grosseiro em uma discussão e não quer que isso aconteça? Em que o teu cachorro só consegue te arrancar um esboço de sorriso fazendo as suas bobagens e quando a tua mãe te telefona tu conta até dez e só atende por obrigação filial?
Tem dias que são assim. Amanhecem trazendo consigo a certeza de que nada vai dar certo. Mas aí... Aí tu recebe notícias de alguém especial, e pensa se não estava sendo duro demais com aquele dia miserento.

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TRADUÇÃO:

Ela disse:
-Não
Mas na verdade ela quis dizer:
-Sim.

Ela disse:
-Sim.
Mas na verdade ela quis dizer:
-Não.

Ela disse:
-Não tem nada me incomodando.
Mas na verdade ela quis dizer:
-Tu tá me incomodando.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Rapidinhas do Capita


Carmem e Jaime estavam sentados juntinhos no sofá da sala da casa dela no maior amasso. Já se conheciam a algum tempo, davam-se bem, mas, por íntimos que fossem trocando carícias e beijos resfolegantes, não eram íntimos no sentido de se conhecerem profundamente. Aquela intimidade, sabe? Que as pessoas têm quando uma sabe como o humor da outra vai estar durante o dia inteirinho apenas pela forma como ela enunciou "bom dia" quando se viram de manhã. Essa intimidade, a Carmem e o Jaime ainda não haviam alcançado. Mas era algo que o Jaime almejava. Ele queria saber mais da Carmem. Foi pensando nisso, e em tentar trazer um pouquinho mais de romantismo ao relacionamento dos dois, que ele perguntou, enquanto a acariciava, qual era o sentido do kanji que ela tinha tatuado atrás do ombro esquerdo.
Surpeendeu-se quando ela, olhando pra TV, lhe respondeu com pouco caso:
-Não sei.
-Não sabe? Como assim, não sabe?
-Não sei... Quer dizer, ele tem algum significado, e tal, mas eu nem lembro, tava meio bêbada quando escolhi. O tatuador deve ter me explicado, mas eu não lembro, não. É um desenho bonito, mas é que nem a tua tatuagem. Não significa nada, só um desenho bonito.
Jaime não disse nada. Ele tinha um símbolo de super-herói tatuado no braço. Pra maioria das pessoas podia não ter nenhum significado, mas pra ele tinha. Pra ele, servia pra lembrar do valor do sacrifício, de como ás vezes pode ser solitário tentar tomar sempre as decisões mais corretas, de como a responsabilidade é importante, e de como pode ser compensador deitar a cabeça no travesseiro à noite sem ter nada do que se arrepender. Mas não disse nada. Ficaram olhando TV abraçados por algum tempo, até ele olhar por relógio e fazer cara de já. Se despediu com um beijo morno, dizendo "até amanhã", e se Carmem já tivesse um pouco mais daquela intimidade, notaria pela forma como Jaime enunciou seu "até amanhã", que talvez eles não se vissem.

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Quando o Fabrício era pequeno, ele passou uma semana tendo pesadelos na praia. Eram sonhos ruins recorrentes, onde ele passava por uma viela escura á noite, e ali, de um ponto mais alto na escuridão, surgia Darth Vader, que o perseguia pela rua munido de seu tenebroso sabre de luz escarlate. O vilão o seguia correndo pela praia, não a praia ensolarada com a qual ele estava acostumado, mas uma praia sombria, medonha, repleta de árvores mortas e secas de galhos retorcidos que se espichavam para tentar apanhá-lo enquanto ele corria desesperado. Em certo ponto do sonho, porém, Fabrício chegava a um penhasco, e ficava preso entre uma queda para a morte, e o implacável sabre de luz de Vader. Esse, era o momento em que ele acordava na cama, ensopado de suor, chorando pela mãe.
Aquele sonho recorrente durante uma semana assombrou o Fabrício. Seu pai, intrigado, pensou até em proibir o menino de ver TV para que ele não se impressionasse com vilões de cinema. Um dia, indo à praia com Fabrício, o pai percebeu um saco de lixo, atado ao acaso em um poste de iluminação, que, inflado pelo vento, parecia uma cabeça redonda e uma capa esvoaçante. Mostrou ao filho para saber com o que se parecia, e viu a cor sumir do rosto de Fabrício enquanto o menino apertava-lhe a mão e dizia com os lábios entreabertos "Darth Vader!".
Com muita paciência, o pai de Fabrício lhe mostrou que o vulto negro que o perseguia, nada mais era do que um saco de lixo preso em um poste de iluminação. Naquele mesmo dia, após escurecer, Fabrício foi levado pelo seu pai novamente até o local, para ver que o que parecia um pesadelo com capa, elmo e sabre, nada mais era do que a imaginação do menino, um saco de plástico negro, e o reflexo da luz do poste ganhando uma coloração avermelhada ao atravessar o plástico.
Fabrício jamais esqueceu daquilo, e embora nunca mais tenha tido pesadelos com Vader o perseguindo pela praia, jamais esqueceu de como sua mente lhe pregara peças na infância.
Ás vezes nós não somos capazes de ver as coisas mais óbvias, mas conseguimos enxergar um lorde negro de sith em um saco de lixo.

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Ele estava escorado no balcão de um bar estiloso. Olhava em volta escolhendo aquela que seria sua vítima naquela noite. Sim, pensava ele. Nessa noite, eu sou um caçador dançarino, e preciso encontrar a parceira/presa perfeita. E ele encontrou. Assim que seus olhos deitaram sobre ela, ele soube que ela era a parceira perfeita para a dança especial que tinha coreografado para aquela noite.
Era linda, glamourosa, com longos cabelos loiros presos em um rabo de cavalo quase no topo da cabeça. Os lábios carnudos fulguravam em vermelho envolvendo o canudinho mais sortudo do salão enquanto ela sorvia um drinque mais colorido que o cenário dos Teletubbies.
Era magnífica. Uma criança de menos de onze anos poderia cair em seu decote por três dias sem chegar ao fundo, e suas pernas eram tão longas que pareciam não ter fim, assim como a transamazônica. Sua cintura era ínfima e seus quadris mais generosos que político em campanha. E estava sozinha.
Ele sabia o que fazer se quisesse chegar ao ápice do que aquela noite poderia ser. Deu seu passo. Cochichou algo com o bartender, e recebeu um drinque igual ao que ela segurava.
Do outro lado do salão, esperou até que o drinque dela estivesse terminando. Não podia ser afoito e chegar antes que ela chegasse à metade do copo, tampouco esperar o copo esvaziar, assim que viu a brecha perfeita, três dedos de bebida, deu seu passo.
Se aproximou como um jaguar trazendo o drinque dela em uma mão, e uma dose de whisky, que detestava, na outra.
-Olá - Disse ele, parecendo confiante. Estava confiante, era moreno, alto e forte e bem-vestido. Ofereceu-lhe o drinque.
-Aceita?
Ela assentiu com a cabeça. "Perfeito.", pensou ele. Agora um momento crucial, a hora de se dar bem ou fazer papel de garçom.
-Posso? -Perguntou sinalizando com o queixo, a cadeira vazia à frente dela.
-Claro. - Ela respondeu, mostrando a cadeira com a mão espalmada.
"Feito" ele vibrou em silêncio enquanto sentava.
Ele sentou e olhou pra ela por breves instantes. Tudo parte do balé erótico que, esperava ele, acabaria em uma cama redonda de motel. Um novo passo do balé. Sacudiu a cabeça brevemente, como quem se recompõe de um transe:
-Desculpa... Tua beleza me deixou sem palavras por um momento.
Ela sorriu.
"Sim", ele pensou, "está tudo como devia ser. Alguém devia estar filmando isso, eu precisava de uma estenógrafa pra me acompanhar e registrar isso pra posteridade.".
-Posso perguntar o teu nome? - Ele disse.
-Claro. - Ela respondeu enigmática.
"Mas, ah, guri!" ele vibrou, era perfeito.
-Qual o teu nome?
Ela sorriu com os lábios no canudo do drinque, e após sorver um gole generoso da bebida, disse:
-Carízia.
Ele sorriu como quem não entende:
-Como?
-Carízia. - Ela repetiu.
Ele sorriu por um instante. Então colocou o punho fechado na frente da boca e riu. E então riu mais. E mais. E teve um acesso de riso.
Não pôde segurar. Tentou, mas foi pior. Fez aquele ruído de ar escapando entre os lábios fechados, foi horrível, ela ficou muito séria olhando pra ele, e isso só lhe deu mais vontade de rir. Ela se levantou chamando-o de trouxa e foi embora enquanto ele, sob os olhares desaprovadores de inúmeras pessoas, chegava a balançar as pernas enquanto ria.
Não adianta, não há balé erótico coreografado à exaustão que suporte um nome esquisito.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Esperança


-Ela é tudo de bom, velho, tô te dizendo.
-Tá, mas tu sempre diz isso quando te apaixona, meu, não dá pra levar fé.
-Não, não, meu tô te falando. Ela é tudo de bom, tudo de bom, mesmo. Ela, ela, ela... Sei lá, é tipo, putz, uma, uma...
-Tu vai usar um símile pra se arrepender depois. Tu vai dizer que ela é como a Léia. Na versão escrava do Jabba.
-Não, capaz, não ia dizer isso...
-Vai dizer que ela é uma Jéssica Drew? Ou uma Natasha Romanoff? Uma versão ainda mais gostosa da Tina Fey?
-Ah, de repente...
-Eu sabia.
-Não, não, peraí, não vou usar nenhum desses símiles de sempre. Deixa eu pensar...
-Tá, vai lá. Só cuidado com o cheiro de queimado.
-Vai se lascar. Peraí... Tá, primeiro, ela é bonita. Não é bonita dessas bonitas blé, assim, que tu chuta uma macega na saída de uma boate e diz, ah, guria bonita, e depois esquece, não é assim. Ela é bonita de um jeito muito mais interessante. Ela é inteligente, OK, eu sei, um monte de meninas são inteligentes, mas ela também é esperta, quando eu falo com ela, preciso me cuidar pra não falar besteira, porque senão ela me sacaneia. É legal quando ela faz isso, é divertido por que ela tira onda com a minha cara de um jeito fofo-
-Fofo?
-Cala a boca, invejoso. Ela é aberta a quase qualquer assunto, é... Não sei explicar, mas ela tem uma qualidade meio de moleque, sabe? Tem tatuagem, piercing... Ela curte os mesmos filmes que eu, as mesmas séries, ela não odeia futebol, nem o Sylvester Stallone, ela curte video game, não se importa com o RPG, quadrinhos, e as mihas outras nerdices, gostamos de algumas músicas e bandas em comum, outras nem um pouco, mas isso é o de menos, já que ambos somos partidários do uso consciente do fone de ouvido. Ela é... Cara, achei. Achei o símile perfeito. Ela é uma personagem feminina dos filmes do Kevin Smith quando ele ainda era um diretor promissor. Sabe do que eu tô falando? Tipo a Amy. Ela é a Amy de Procura-se Amy. É apaixonante daquele jeito, sabe?
-Ela tem a voz enjoada da Amy?
-Mais uma vez: Vai se lascar.
-Tá, tá, então, tá tri, ela é tudo isso, OK, beleza, supondo que ela seja, de fato, a oitava maravilha do mundo moderno, fica uma questão importantíssima em aberto: Ela gosta de ti?
-Ah, velho... Espero que sim... Por que eu gosto demais dela.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

surreal


Francisco estava cansado após mais um dia estafante de trabalho. Era verão, mas ele vendera suas férias. Trabalhava no competitivo ramo da propaganda, e férias eram um luxo ao qual não podia entregar-se. Não precisava. Sentia-se bem trabalhando, no seu emprego era o sujeito a quem os demais recorriam quando não sabiam o que fazer, era o sujeito com todas as respostas, era o cabeça, e era questão de tempo até que os donos da companhia vissem isso e lhe dessem o devido valor. Mas, para ser visto, não podia tirar férias. O que precisava fazer era trabalhar. Chegaria em casa, comeria alguma coisa, e mergulharia de cabeça no novo projeto, até março deeria ter ótimos resultados pra mostrar aos clientes.
Entrou em seu prédio tranquilo. Subiu o elevador, e enfiou a chave na fechadura, a girou e abriu a porta. Foi quando deparou-se, espantado, com um cachorro. O animal se aproximou efusivamente, cheirando suas pernas e abanando uma cauda peluda, tipo espanador. Era um cachorro bonito, grande, felpudo. Francisco colocou a mão no dorso do cachorro tentando entender o que aquele bicho fazia na sua casa. O animal lambeu-lhe a mão com alegria, e então deitou-se aos seus pés de barriga pra cima, como quem espera festa. Francisco, ainda intrigado, coçou a barriga do cachorrão fazendo a pata traseira dele balançar de satisfação. Pensava o que diabos aquele canzarrão amistoso estava fazendo em sua casa. Subitamente, da cozinha, veio uma voz de mulher:
-Limpem os pés! - Ela gritou. Francisco, ainda aturdido e coçando a barriga do cachorro, olhou pro chão e percebeu que seus pés, de fato, estavam um pouco sujos. Mas... Mas quem poderia ser a mulher que o mandava limpar os pés? Teria ele acidentalmente entrado no apartamento errado? Mas como a sua chave funcionara na porta de outro apartamento? Ah, o síndico certamente ouviria poucas e boas quando Francisco o encontrasse. Parou de coçar o cachorro, levantou-se e abriu a porta do apartamento. Talvez conseguisse sair antes de ser notado pelos vizinhos e ter que passar pelo constrangimento de explicar que entrara na casa errada. Olhou o número na porta, 305.
Mas... Mas trezentos e cinco era o número do seu apartamento... Teria entrado no prédio errado? Teria uma família com direito a cachorro e tudo se mudado para o seu apartamento enquanto trabalhava? O que teria acontecido, perguntava-se.
-Amor - Disse uma voz feminina atrás dele. -Leva o lixo pra mim, fa'çoavor?
Virou-se com um olho fechado e o outro aberto, esperando um grito de horror, mas, ao invés disso, ganhou um selinho nos lábios.
-Leva lá pra mim, já que eu trabalhei o dia inteiro, peguei a Lourdes na escola e ainda tô fazendo janta.
A mulher era alta, cabelo castanho bem curto, bonita. Francisco recebeu o beijo, os sacos de lixo nas mãos, e um abraço do cachorro. Ainda intrigado, colocou o cachorro no chão, abriu a porta e saiu levando o lixo consigo. O que diabos estaria acontecendo? O que havia se passado enquanto Francisco trabalhava? O que diabos do inferno podia ter ocorrido? Francisco tentou se lembrar do dia anterior, mas era difícil pra ele lembrar até o que comera no almoço, era, afinal de contas, um sujeito ocupado, aterafado, assoberbado pelo peso das responsabilidades. Quem era aquela mulher, por que ela o tratava por amor? Desceu com o lixo. Largou na lixeira. Talvez o zelador soubesse o que estava acontecendo. Chegou a ir até a porta dele, mas refreou-se. E se estivesse tendo algum tipo de alucinação causada pelo estresse? Fazia algum sentido, não é? Afinal, nem era capaz de lembrar da última vez que tirara as preocupações da cabeça e descansara. Sim, pensou Francisco. Era apenas cansaço. Estava imaginando coisas. Voltou ao seu apartamento. Ao colocar a chave na fechadura, ouviu um animal fuçar sob a porta. "O cachorro imaginário.", pensou Francisco. Era o tipo de cachorro com o qual sonhava na infância. Grande, peludo e amigável. Sim. Aquela coisa de cachorro era uma alucinação, claramente. Abriu a porta e sua alucinação o abraçou novamente. Era uma alucinação pesada. Quase o derrubou. Ele se chocou com a porta, e segurou-se pra não cair. Tentou se concentrar para fazer o cachorro imaginário desaparecer. Não conseguiu. O cachorro continuava ali. A mulher bonita apareceu de novo.
-Passa, McCoy, deixa o Francisco! - Esbravejou. O cachorro protestou com um "rworrrrwow", e se refugiou sob a mesa da cozinha. A mulher bonita passou a mão no ombro de Francisco:
-Tu deixa esse cachorro fazer o que quer contigo.
Francisco começava a se preocupar. O que poderia estar acontecendo? Quem era aquela mulher? Que cachorro era aquele?
Uma menina pequena, de seis, talvez sete anos, surgiu correndo. Tinha uma folha de papel ofício na mão. A estendeu a Francisco:
-Ó, pai.
Francisco a olhou horrorizado. Era uma criança bonita. Cabelo castanho escuro escorrido, olhos cor de mel. Ele apanhou a folha e olhou. Um desenho feito com lápis de cor, mostrava uma família na praia.
-A gente vai, pai?
A menina perguntou. Francisco olhou pra ela novamente.
-Quê?
A mulher bonita voltou:
-Não enrola a guria, Chico. A gente vai ver, Lurdinha.
Francisco não sabia o que fazer ou dizer, como proceder, ainda lutava para concatenar o que poderia ter acontecido. A mulher bonita voltou:
-Chico? Cadê o Eltinho?
-Hu... - Chico não sabia de que se tratava. O que devia dizer? Quem era Eltinho? O cachorro? Não, não... O cachorro se chamava McCoy, não era?
A mulher bonita fez um ruído de quem está fula da vida. Apanhou as chaves do carro penduradas no bolso de Francisco.
-Eu achei que ele tinha entrado contigo, mas tava muito silencioso. O mundo ainda não tinha começado a ser destruído no Playstation. Tu esqueceu o meu filho no futebol de novo, Francisco? Pelo amor de Deus. Tu sabe como ele vai ficar nãO é? Tu lembra da última vez... Vem Lourdes. Vamos buscar o mano. Chico, cuida a janta ali pra mim, pelo menos.
A mulher bonita saiu parecendo desapontada, carregando a menina Lourdes pela mão. Saíram pela porta deixando o cachorro amigável tristonho a sós com Francisco.
Francisco recisava descobrir o que era aquilo. Que tipo de anedota era aquela? Teria ele viajado no tempo? Teria ele sido vítima de uma abdução alienígena? Teria sofrido lavagem cerebral dos russos e sido enviado para matar a Dilma?
Saiu andando pelo apartamento. Era o seu apartamento. Algumas daquelas coisas eram suas. Claro, as almofadas coloridas no sofá, o carrinho de controle remoto no chão, aquela Santa Ceia brega na parede, aquilo não era seu. Mas muitas coisas eram. Em cima da mesinha do telefone havia uma foto sua. Jovem ainda, bastante cabelo cheio de gumex. Na escola. Vestia a camiseta do ginásio. Estava abraçado em uma moça. Muito bonita. Cabelos castanhos bem lisos, olhos grandes castanho-claros. Ele lembrava dela daquela época. Como se chamava, mesmo? Tainá! Sim. Tainá era o nome dela. Nossa, ele era louco pela Tainá. Era apaixonado por ela. Seus amigos diziam-lhe que se ele deixasse a Tainá escapar, era louco.
Olhou na estante e encontrou um álbum de fotografias. Abriu o álbum com a tensão movendo os nervos de seus dedos. Ali estavam, mais fotos da Tainá e dele. Ela e ele na praia. Ela e ele em alguma festa de carnaval. Ela e ele em um jantar de... Noivado? Ela e ele casando no civil? Ela e ele casando na igreja... Ela linda, com seu vestido azul-claro, ele de paletó preto e gravata prateada... Que brega... Ela no hospital, com um barrigão de muitos meses de gestação. O Eltinho, recém-nascido, nos braços de Francisco. Eles no zoológico. O Eltinho e a primeira bicicleta. O Eltinho e a Tainá na praia. A Tainá grávida de novo, esperando a Lourdes. Primeiro dia de aula do Eltinho. Um desenho da Lourdes, dobradinho ocupando o espaço de uma foto.
Francisco fechou o álbum com lágrimas nos olhos. Subitamente entendera o que havia acontecido. Ele não esquecera de nada, para esquecer, é preciso ter sabido um dia, pra esquecer de um momento, é necessário ter estado presente, então. Ele não estivera. Francisco era um fantasma, um eco que deperdiçara o tempo mais precioso fazendo nada exceto colher o vil metal.
Agora, pensava, precisava descobrir um modo de recuperar o tempo perdido enquanto havia tempo. Enquanto ainda podia, para não ser ele, mais adiante, o esquecido.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Vazio no sofá


O Jurandir estava cansado. Cansado mesmo. Trabalhara feito uma mula, atendera alguns clientes grosseiros e desagradáveis, tivera que ajeitar a baderna que fizeram nas prateleiras da loja... Quando saíram, ele percebeu a pilha de trabalho acumulado do final de semana, e não teve alternativa, exceto colocá-lo em dia. Acabou saindo do trabalho mais tarde do que devia. Passou no mercado, comprou um vidro de conservas e um bife à milanesa. Nem sequer gostava de bife à milanesa, mas enfim, àquela altura, isso era o de menos. Na venda próxima de sua casa, comprou um picolé e uma garrafa pequena de suco, ambos de uva. Abriu o picolé, e foi comendo-o pra casa. Enquanto procurava a chave de casa no bolso das calças jeans ficando cada vez mais largas, o picolé começou a causar uma geladura em sua boca, ele, em um movimento ágil, o segurou apenas entre os dentes, e uma gota escorreu e pingou em sua camiseta branca. Ele praguejou alguma coisa ininteligível com o picolé entre os dentes, e deu um suspiro de alívio enquanto sacava a chave do bolso.
Entrava no prédio quando ouviu um grito atrás de si, era um senhora que morava no sexto andar, pedindo-lhe que segurasse a porta. Ele segurou, ela passou e agradeceu. Ele, com o picolé entre os dentes, a chave em uma mão e a sacola de compras na outra, apenas acenou com a cabeça. A velhinha não viu. Saiu andando pelo corredor o taxando de mal-criado.
Subiu as escadas, e procurou a chave da gradedo apartamento no chaveiro. A luz do corredor apagou, ele tentou acendê-la novamente usando o cotovelo, mas errou o interruptor, e acertou a parede. Mordeu seu picolé com força, partindo-o ao meio. Metade dentro da boca, metade batendo nas suas pernas e caindo no chão do corredor. Finalmente encontrou a chave. Abriu a porta e anteviu aliviado o banho que tomaria. Quando largava a carteira e as compras na mesinha da cozinha, viu os dois DVDs que alugara na sexta e que deviam ser entregues ainda hoje. Apanhou os DVDs e desceu correndo as escadas. Lembrou-se que tinha tirado a carteira do bolso. Correu de volta, apanhou a carteira, e andou rápido até a locadora. Devolveu os filmes, voltou pra casa. Tomou seu banho, comeu as conservas e o bife enquanto tomava suco de uva e via o Jornal Nacional.
Quando o noticiário terminou, zapeou pelos canais da TV, mas não sentiu vontade de ver nada.
"Jogo FIFA, ou Assassin's Creed?" se perguntou com o controle do video game na mão. A verdade é que estava com preguiça de jogar video game, ou ver TV, ou continuar lendo O Último Trem de Hiroshima.
Olhou pro espaço vazio no sofá.
-Sabe. - Disse em voz alta. -Seria mais fácil suportar esses dias miseráveis se eu te encontrasse aqui ao anoitecer.
Deixou a TV ligada no National Geographic e deitou sabendo que dormiria ali, mesmo.

Resenha Cinema: O Turista


A Angelina Jolie devia ter sua foto ao lado do verbete Glamour na enciclopédia Basca. Sério. Eu, particularmente, acho ela muito bonita, mas não acho que seja a última bolachinha do pacote, nem a última Coca-Cola do deserto (Até por que, prefiro Fanta e a Charlize Theron), mas é inegável que a mulher é uma das atrizes que mais consegue evocar a aura de "estrela de cinema" que algumas divas da antiga evocavam, além de ser engajada, talentosa e esposa do Brad Pitt.
O Johnny Depp, vou confessar, não acho particularmente excelente. Está ótimo em alguns filmes como Em Busca da Terra do Nunca e Donnie Brasco, verdade, Jack Sparrow é uma das grandes criações cinematográficas da última década, concordo, mas acho que, embora trate-se de um ator talentoso, um pouco do cartaz do astro é meio gratuito, e o Jude Law é muito mais bonito.
Ainda assim, um filme que juntasse os dois, que são hit no momento tanto no quesito talento, quanto no quesito "veja como eu sou cool", como O Turista, merecia ser visto, não é? É... Mais ou menos.
O filme de Florian Henckel von Donnersmarck (Diga isso com a boca cheia de polvilho) mostra Depp como Frank Tupelo, um turista americano de férias na Europa, que é seduzido pela agente do tesouro britânico, Elise Ward de Angelina Jolie, e transformado em isca tanto para a Interpol quanto para gângsters, que procuram pelo seu amante, um notório ladrão que roubou mais de dois bilhões de libras, e não recolheu os impostos devidos. Essa é a premissa para correrias, reviravoltas, e alguma tensão sexual entre Tupelo e Ward.
Quem viu o Globo de Ouro deve lembrar que O Turista recebeu algumas indicações, inclusive para Depp e Jolie como melhor ator e atriz em musical ou comédia. Bom, dois erros, aí. Eles não estão particularmente inspirados, e o filme, embora nunca encontre o tom ou o gênero, certamente não é uma comédia.
No final das contas, O Turista é um sub-produto de marketing, que usa as estampas do casal protagonista para atrair o público que sai do cinema muito mais enganado do que a interpol e os gângsters.

"-Você está faminta.
-Você quer dizer 'fabulosa'?
-Quero."

sábado, 22 de janeiro de 2011

Tatuagem


O Sandro entrou no estúdio de tatuagem carregando uma pasta de plástico canaletada daquelas que a gente usa quando tem preguiça ou pouca grana pra encadernar alguma coisa. Ele olhou em volta por um breve instante, os pôsteres de pessoas com imensas tatuagens ao estilo Yakuza, piercings, modificações corporais, viu um espelho grande na parede ao seu lado, e percebeu como estava deslocado, ali. Calça jeans, tênis branco, camiseta vermelha, óculos... Não parecia estar no lugar certo. Mas estava.
De trás de um balcão alvíssimo, surgiu um sujeito gordo e alto, que usava um colete jeans e por baixo uma camisa estampada que Sandro levou uma fração de segundo pra perceber que não era camisa, e sim a pele dos braços e torso do sujeito, repletas de desenhos coloridos. O sujeito sorriu amigável, o que não fez Sandro achá-lo menos ameaçador, e perguntou se podia ajudar.
O Sandro, não conseguiu evitar encarar as protuberâncias em forma de chifre que o sujeito trazia na testa. Pensou em perguntar, brincando, se podia falar com a esposa dele, mas achou melhor evitar a piada. Podia ser mal-interpretado, resolveu se ater ao essencial.
-Oi, vamos ver, tchê. Olha - Começou hesitante enquanto tentava calcular a bitola dos alargadores que o sujeito usava nas orelhas -Eu tô com vontade de fazer uma tatuagem...
-Aqui é o lugar certo, e eu sou o cara que tu procura. - O sujeito respondeu, ainda amigável. -Tu tem ideia do desenho, já?
O Sandro abriu a pastinha canaletada e mostrou uma impressão meia boca de uma ilustração em preto e branco do Boba Fett apontando o seu rifle blaster.
-Eu tava pensando em alguma coisa assim, saca? - Pensou se ainda se usava a expressão "saca?".
O sujeito olhou o desenho com atenção, o tirou da mão de Sandro, e o encarou pensativo por alguns segundos.
-Tem bastante detalhes, mas dá pra fazer, sim... Tu quer assim, só em preto, mesmo?
-Não - O Sandro respondeu, ainda parecendo pensativo. -Quero colorido. Tem aqui o padrão de cores da figura, ó.
O Sandro abriu a pastinha novamente e tirou várias fotos e desenhos coloridos do Boba, os estendeu ao tatuador.
O sujeito olhou pensativo para todas as ilustrações.
-Onde tu quer fazer o desenho?
-Nas costas. - Respondeu o Sandro, pela primeira vez, decidido.
-E de que tamanho tu quer?
-Mais ou menos assim. - O Sandro fez com as mãos, com os polegares bem separados, um enquadramento de mais ou menos trinta e cinco centímetros por vinte e cinco centímetros. Quase o tamanho todo das suas costas.
O Tatuador o olhou incrédulo e suspirou:
-Bom... Com esse tamanho dá pra caprichar nos detalhes e cores...
-Eu também quero uns dizeres... - Acrescentou Sandro, hesitando novamente.
-Dizeres?
-É.
-Tipo, uma frase?
-Isso, com aquelas letras góticas, sabe?
-Sei, sei...
-Pois é. Esses dizeres aqui. - O Sandro mostrou um papel pro tatuador, o sujeito pegou e leu em voz alta.
-"A vida é lôca, o Sistema é Bruto e o Futuro a Deus Pertence"... - O sujeito olhou Sandro de cima a baixo, como se o medisse. -Sério? - Perguntou.
-Sim. Eu sei que o "lôca" tá com a grafia errada, mas é de propósito. Tu acha que eu devo colocar entre aspas?
-Não... Não... Acho que tá bom assim. A gente escreve o resto certinho, aí as pessoas devem saber que a grafia errada de "Lôca" foi proposital. Até por que, o acento circunflexo é um bom indício...
-Arram. - Concordou Sandro, pensativo. -Então... Quanto tempo será que a gente vai levar pra fazer?
Conversaram o tatuador e Sandro, marcaram a data em que começariam a fazer o desenho, acertaram a dimensão exata e o preço, tudo encaminhado. Quando Sandro saiu, o tatuador o acompanhou até a rua, onde se despediu com um "'se falemo' na semana que vem, então". Ele observou Sandro caminhando com sua pasta, agora vazia, já que os desenhos haviam ficado para ele usar como referência e preparar a tatuagem, e imaginou o que levara aquele nerd a querer uma mega tatuagem ocupando setenta e oito por cento das suas costas. Imaginou que devia ser necessidade de auto-afirmação, crise de identidade, ou algo do gênero, e ele provavelmente se arrependeria do desenho antes de completar trinta e cinco anos. Enfim, não era de sua conta, não lhe dizia respeito alertar o geek sobre as óbvias implicações de um trabalho de arte perene no corpo, sua obrigação era realizar o trabalho com o máximo acuro e higiene para garantir que aquele nerd tivesse o Boba Fett gigante mais legal possível preso eternamente às suas costas. Mais tarde se debruçaria sobre as referências deixadas pelo Sandro, e prepararia, até o final da semana, um desenho genial para aplicar na pele do maluco.
Enquanto isso, Sandro descia do táxi, e tocava no interfone de um apartamento do centro. A porta se abriu sem ninguém perguntar nada, e ele entrou. Subiu algumas escadas, e chegou a um apartamento no terceiro andar, cuja porta estava convidativamente aberta, e entrou.
Lá dentro, uma moça com uma mecha rosa pink no cabelo tingido de preto ultra escuro, sorriu mostrando um piercing no dente incisivo quando viu Sandro entrar, e saltou do sofá para envolvê-lo com os braços repletos de tatuagens em um abraço e fulminá-lo com um beijo estalado nos lábios.
-Onde tu tava? - Perguntou o encarando com os olhos repletos de rímel negro.
-Ah, vendo umas coisas, só... - Respondeu Sandro, evasivo, enquanto sentava no sofá. Quando a menina tatuada sentou ao seu lado, aninhando-se sob o seu braço, ele segurou sua mão delicada, com os dedos cheios de anéis, e leu a tatuagem em seu pulso:
A Vida é Loka, O Sistema é Bruto, e o Futuro a Deus pertence.
E teve, finalmente certeza de que fizera a coisa correta. Iria, ao mesmo tempo, mostrar a mulher de sua vida que tinham mais interesses em comum do que um e o outro, e ainda homenagearia o personagem visualmente mais maneiro da saga espacial mais fabulosa da história da humanidade.
Radical, romântico, e nerd na mesma medida. Depois de terminar a tatuagem, compraria um anel pra pedí-la em casamento.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Conta-Gotas


O Cachorro do Frederico pegara uma mania estranha, engraçada e meio irritante. Quando o Frederico estava dormindo na beira da cama, com os braços ou pernas sobrando pra fora do colchão, o seu cachorro se aproximava andando com alguma velocidade, e o abalrroava. Sério. Abalrroava, mesmo. Tipo, o Farley Mowat do Sea Shepherd faz nos navios baleeiros japoneses na costa da Antártica.
Frederico, á princípio, não entendeu muito bem porque o seu cachorro agia daquela forma, até por que, é difícil pensar em qualquer coisa quando você acorda ás quatro e vinte e três da manhã após ser acossado por um animal de quarenta e dois quilos, e se depara com o bicharoco o olhando cândidamente ao lado da cama. Mas, analisando framente após acordar, Frederico chegou à conclusão de que seu cachorro era o tipo de animal que não vivia muito bem sozinho. Golden retrievers, assim como quase todos os retrievers, são animais bastantes sociais, logo, é de se pensar, que o cachorrão sentisse saudades enquanto o Frederico dormia, e, na ânsia de vêr o amigo acordado, e ouvir sua voz, e fazer um pouco de festa, forçava o contato, qualquer contato, incluindo aí, o golpe de lateral de paleta com o qual ele o açoitava todas as noites.
Frederico pensou, também, que não são apenas os cachorrões amigáveis que forçam o contato. Quem jamais sentou ao lado de algum desconhecido no ônibus, e após duas ou três quadras de viagem, sabia tudo á respeito da vida da pessoa? Quem nunca viu um bêbado discursar na rua sobre as mazelas do mundo e da sua vida? Quem nunca disse "e aí, tudo bem?" e ouviu que não, não estava tudo bem, e mais um longo rosário de queixas desfiado na sequência?
Um dia, um sujeito pediu fogo pro Frederico na rua. Ele não fuma. Disse ao seujeito que lamentava, mas não fumava. Ele fez cara de enterro e disse que nada estava dando certo pra ele. Que seu sócio lhe dera um golpe em uma empresa de propaganda, deixando-o sem nenhum dinheiro e com toneladas de dívidas. Que sua esposa o abandonara por que ele começara a beber, vergado sobre o peso do fracasso profissional. Que agora, ele não tinha trabalho, e que sua esposa o afastara de sua filha, e que ele nem sequer tinha condições de pagar a pensão alimentícia, que inclusive, naquele momento, estava indo para uma audiência onde declararia a falência de seu negócio para tentar se livrar das dívidas que o haviam reduzido a um sujeito vivendo sozinho em um apartamento vazio e escuro, entregue ao álcool e ao desespero. Quase que o Frederico saiu correndo pra pedir fogo junto com o sujeito e evitar que ele cometesse o suicídio por não poder acender um cigarro.
Em pouco menos de três minutos, uma pessoa expôs todos os males de toda a sua vida nos últimos meses... Isso, é contato forçado. Aliás, pensou o Frederico, parece existir uma relação de proporção inversa entre o nosso interesse na pessoa, e a quantidade de contato que temos com ela. Um desconhecido desesperado lhe conta toda a sua vida em minutos, então alguém de quem você quer saber tudo, te conta as coisas a conta-gotas.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Veraneio...



Os pais do Benício tinham uma casa perto da praia em um balneário menor do Rio Grande do Sul, não "tinham", assim, no sentido pleno de posse. Era uma casa de família.
No caso, da família do pai do Benício.
Se alguém era, de fato, dono daquela casa, era a avó do Benício, dona Fefa, que estivera presente, inclusive, na construção da casa, em meados dos anos cinquenta. Ainda assim, era a casa da vó e do pai, e dos tios do Benício, e, sendo casa do pai do Benício, era, também, de sua mãe.
O Benício nem era capaz de lembrar de seu primeiro verão naquela casinha, até por que, seu primeiro veraneio começara aos três dias de vida. Hoje em dia um médico poderia ficar escandalizado ao saber que um bebê de poucos dias viajara pro litoral, expondo-se a, sabe Deus quantas doenças. Felizmente, no início do anos oitenta, não se ficava doente com tanta facilidade quanto hoje em dia. Na verdade, analisando friamente, parece que existiam menos doenças naquela época do que hoje em dia. De qualquer modo, foi no final de fevereiro do ano de mil novecentos e oitenta e um, que o Benício, com três dias de vida, foi à praia pela primeira vez.
E, rapaz, ele adorava a praia. De uma maneira orgânica, de ficar doente se não fosse, como dizia seu avô materno, "salgar os colhões" pelo menos uma vez por ano. Era fácil, afinal de contas, a casa de veraneio de sua família estava sempre lá, pronta pra acolher Benício, e assim foi feito, todos os verões, entre oitenta e um e oitenta e seis, sem sobressaltos.
Foi no verão de 1987, o primeiro após seu divórcio, que a mãe da Carol, Lígia, alugou a casa vizinha à da família de Benício, tanto pra Carol se distrair e curtir um pouquinho de normalidade, quanto pra ela própria desopilar um pouco do que fora um ano infernal. Ela ficou feliz ao saber que a casa da direita estava ocupada por uma família dita ideal, a família de Benício, com pai, mãe e filho, e a da esquerda, por uma senhora gorducha com pinta de avó, que cozinhava muito e estava sempre levando guloseimas pros vizinhos e que tinha cachorros Daschhund suficientes para invadir Mordor, a dona Marly.
Carol, então com sete anos, adorou a casa, adorou a praia, e a liberdade do balneário. Apenas ressentia-se da falta de mais crianças com quem brincar na vizinhança. Em Caxias, onde vivia, morava em um condomínio, esses com parquinho interno, de modo que criança com quem brincar era artigo abundante. Ali, porém, a única criança na mesma faixa-etária que ela, era Benício. As demais já tinham entre doze e quatorze anos, e não queriam brincar com gurizinhos e guriazinhas de metade de sua idade.
Isso jamais incomodou Benício, ele era um guri de apartamento. Totalmente, inapelavelmente, hermeticamente ensimesmado.
Era, talvez, reflexo de sua criação. Filho único, vivendo em um prédio onde crianças eram raras, onde barulho não era visto com bons olhos, era amante de brincadeira silenciosas, de gibis do Conan, do Homem-Aranha e do Superman, de desenhos animados dos Comandos em Ação, He-Man, Homem-Aranha & Seus Incríveis Amigos, Superamigos, e Thundercats. Quando ia à praia, ganhava uma liberdade que lhe era excitante, sim, que lhe era bem-vinda, sim, mas que não lhe alterava os hábitos solitários. Não era raro vê-lo sozinho em cima do muro de pedras da casa fingindo enfrentar múltiplos inimigos carregando um taco que, em sua imaginação, se tornava uma Espada Vorpal, ou um sabre-de-Luz, ou percorrendo as dunas perto do mar, usando um chapéu de palha sobre os cabelos pretos encaracolados e com uma corda enrolada na cintura, que em suas brincadeiras tornavam-se o Fedora legítimo e o chicote certeiro de um intrépido arqueólogo.
Para Benício era normal brincar sozinho. E era divertido.
Pra Carol, não.
Tanto que foi iniciativa dela própria, sem precisar de encorajamento da mãe, ir até a casa ao lado e perguntar, não ao Benício, mas ao pai dele, se o piá podia brincar.
Após ouvir aquele orgulhoso "claro que pode!", e, o consequente "ele tá lá nos fundos, pode entrar.", ela encontrou o moleque solitário causando um trágico acidente em uma rodovia repleta de carrinhos de fricção.
No papel da rodovia, o muro baixo que limitava o terreno da casa, no papel da razão do trágico acidente, um Tiranossauro Rex de borracha. Carol não se fez de rogada. Parou perto de um desconfortável Benício e anunciou:
-Teu pai te mandou brincar comigo.
Benício suspirou olhando em volta, algo intrigado com a presença da pitôca da cabelo chanel loiro e vivos olhos azuis. Esfregou a mão no Homem-Aranha sujo de picolé de uva em sua camiseta, e, como se não houvera mais nada a fazer, estendeu à Carol o Tiranossauro de borracha:
-Ó... Destrói a rodovia enquanto os carros tentam fugir. Esse aqui é o principal. -
Era uma coisa do Benício. Pra ele brincadeiras eram como filmes. Tinham que ter um protagonista e um roteiro. Naquele caso, um Gran Torino vermelho e branco igual ao de Starsky e Hutch que deveria escapar da tragédia.
Não foi o que aconteceu.
Nas mãos de Carol o T-Rex saltava grandes distâncias, cuspia fogo, falava, e mesmo sob protestos de Benício, chegou a voar algumas vezes. Ainda assim, com seu "roteiro" virado do avesso, seu protagonista morto, e o tiranossauro sendo coroado simbolicamente rei da rodovia suspensa, Benício se divertiu muito.
E continuou se divertindo nos dias que se seguiram.
Outras brincadeiras aconteceram. Carol personificou Marion Ravenwood, a princesa Leia, a Flama, Thyla, Cheetara e Mulher-Maravilha. Outras vezes Benício viu-se transformado em um marido devotado em várias brincadeiras onde Carol era uma mãe atarefada. Ninou, ruborizado de vergonha, ursos de pelúcia e bonecas Meu Bebê, foi um aluno aplicado e um bagunceiro quando Carol incorporava uma professora primária, e foi um temido assassino que deveria entrar pela janela e estrangular uma estrela de cinema se não tivesse caído, machucado o cotovelo e voltado chorando pra casa.
Correram de mãos dadas pela praia, e brincaram de derrubar a areia que formava pequenos penhascos de trinta centímetros ao redor do córrego que rumava serpenteando pro mar, inticaram com os cachorros da dona Marly apenas pelo prazer de vê-los fazendo alarido, comeram picolés, sorvetes e crepes, se lambuzaram até quase a alma de todas essas guloseimas.
No final do mês, no aniversário de Benício, Carol comeu bolo com ele, salgadinhos e brigadeiro em sua festa. Ajudou-o a abrir brinquedos, e lhe deu de presente um livro, Pedrinho Esqueleto, que ele teria achado muito sem graça se tivesse sido dado por qualquer outra pessoa. Competiu com ele e venceu um campeonato de embaixadinhas com balões, e chorou quando ele acidentalmente a atingiu perto do olho com um dardo de ventosa disparado de uma pistola de plástico verde-bandeira. Quando março chegou, eles se despediram sem muita conversa ou emoção.
Eram amigos de verão.
Deram tchau, e mais nada. E Benício ficou olhando sua amiga partir pela janela do carro de Lígia, e sorriu quando ela acenou pra ele pelo vidro traseiro do carro, com os cotovelos apoiados no banco de trás.
Nos anos seguintes, de oitenta e oito à noventa e um, Carol e Benício seguiram sendo melhores amigos de verão. Se encontrando e renovando o arsenal de brincadeiras a cada veraneio.
Em dias chuvosos jogavam xadrez chinês, damas e dominó enquanto comiam bolinhos de chuva e tomavam toddy, nos dias ensolarados iam à praia e ficavam na água até os dedos murcharem, depois saíam batendo dentes e comiam milho-verde, encontrando alívio para os rigores do gélido vento nordestão na água morna que escorria do milho recém cozido, ou então torravam sob o mormaço inclemente do litoral gaúcho após pensarem, incautos, que com o tempo nublado não precisavam tanto de protetor solar.
Eram amigos, mas, conforme cresciam, iam se tornando também, confidentes.
Carol contava a Benício das mazelas de ser a filha de um lar desfeito. Benício a consolava contando-lhe as mazelas de ser o filho de um lar tradicional.
Carol desdenhava da mãe, talvez uma ponta de ressentimento e saudades do pai.
Benício ressentia-se de seu pai, da instabilidade emocional dele, e de sua fraqueza pelo álcool.
Ela lhe dizia por que os livros da série Vaga-Lume eram coisa de criança, e ele explicava à ela porque, na prática, o Homem-Aranha era o herói mais poderoso dos quadrinhos.
Conversavam sobre isso e muito mais, apoiavam-se um no outro naquele mês que partilhavam todo ano, depois despediam-se com "tchaus" verbalizados entre dentes e acenos discretos.
Naquele verão de noventa e um, Benício pensou consigo mesmo quando viu o carro de dona Lígia virar a esquina em direção à Estrada do Mar por que não dera um abraço apertado e um beijo estalado na bochecha de Carol na despedida.
"Talvez eu faça isso quando nos encontrarmos no ano que vem.", pensou.
Leu mais ao longo daquele ano.
Seu primeiro livro que não era parte da Série Vaga-Lume. A Marca de Uma Lágrima, achou chato pra danar, lembrou-se de Roxanne, com o Steve Martin, e lembrou-se de Cyrano de Bergerac, cujo autor não sabia ser Edmond Rostand, ainda assim, leu o livro com certo prazer, pensando que seria bom conversar com Carol sobre literatura, de que ela tanto gostava, ao invés de encher seus ouvidos com X-Men, Homem-Aranha, Star Wars e os livros do Marcos Rey.
Porém, no verão seguinte, em noventa e dois, para desapontamento de Benício, Lígia chegou à praia sem Carol.
Carol viajara com o pai, ficou sabendo, mais tarde.
Lígia estava com um namorado novo. Novo, mesmo. Um sujeito bem mais jovem que ela, que tinha cabelo longo, surfava e jogava futebol no campo da colônia de férias próxima. O pai de Benício achou o sujeito muito bacana. A mãe de Benício taxou dona Lígia, entre outras coisas, de desnaturada e sem-vergonha. Benício não formou opinião. Leu gibis, livros, andou a cavalo e em bicicletas para duas pessoas.
Tudo sozinho.
Naquela época já haviam mais crianças da idade de Benício na rua, mas ele não se interessou em brincar com nenhuma delas. Já estava estudando havia algum tempo, e mesmo na escola, onde passava quase um ano inteiro com as mesmas pessoas, era um jovem de poucos amigos, imagine, então, na praia, com apenas um mês para se relacionar. Ás vezes socializava com suas primas e primos, era divertido, mas era fugaz. Aquele verão pareceu mais curto pra ele.
No ano seguinte, quem não foi à praia foi Benício. Quer dizer, foi, mas foi a outro balneário, acompanhando seus avós maternos. A mesma coisa aconteceu em noventa e quatro e noventa e cinco.
Em noventa e seis, Benício veraneou novamente na praia de sempre. Em janeiro.
Foram anos diferentes e divertidos aqueles últimos para Benício. Especialmente após noventa e quatro.
Ele cresceu.
Não era, ainda, um adulto, mas guardava pouco do moleque ensimesmado e tímido de anos antes. Fizera muitos amigos em Porto Alegre, passara a praticar esportes, namorar. Ainda lia gibis e via filmes em profusão, mas seu leque de interesses abriu-se um pouco. No verão de noventa e sete, foi com a namorada para a praia. Estava feliz com ela. Uma moça mais velha, muito bonita e divertida. Após abrir a casa, colocar as cadeiras de vime na varanda, e remover os tapumes da janela, Benício olhou com uma ponta de expectativa pra casa vizinha ao perceber o movimento.
Mas não era dona Lígia, nem tampouco Carol.
Benício veraneou com a namorada em noventa e sete, e no ano seguinte, veraneou sozinho, já não estava mais com a menina, seus pais não tinham mais paciência pra ir à praia, pois haviam desenvolvido um gosto todo especial pela serra, seus tios e primos agora cruzavam o rio Mampituba e faziam suas férias em Santa Catarina.
Benício passou outros dois ou três anos sem voltar à velha casa, até que, em dois mil e três, resolveu retornar.
Chegou ao balneário, abriu a casa, colocou as cadeiras de vime na varanda, e os colchões no sol para arejar. Foi sob o colchão do que fora sua cama na infância, no quarto repleto de beliches destinado às crianças, que encontrou, ao acaso, um exemplar envelhecido de um livro.
Pedrinho Esqueleto, que ganhara no seu aniversário de seis anos.
Segurou aquele livro entre as mãos, e o abriu, sentindo o cheiro de coisa guardada. Saiu até a varanda, onde o colocaria para arejar, também, e foi quando viu um carro estacionar na casa ao lado, e dele sair uma moça loira muito bonita, um sujeito bem apessoado, também loiro, e uma criança, um molequinho de dois ou três anos de idade.
O piá saiu correndo em direção à casa, tropeçou no degrau de pedra coberto com uma lisa lajota cor de laranja e se estabacou no chão. Chorou. A moça loira correu para consolá-lo. Ao se levantar com o pequeno no colo, seu olhar e o de Benício cruzaram, e ela sorriu.
Benício sorriu de volta, e acenou discretamente, dizendo um "oi" sem som do outro lado do muro.
Era Carol.
Benício olhou em silêncio e sorrindo enquanto a família entrava na casa. Não pôde evitar pensar em como teriam sido as coisas se, de volta em noventa e um, tivesse dado aquele beijo estalado em Carol. O pai do menino voltou ao carro, apanhou várias malas, e também acenou para Benício, sorridente. Benício correspondeu.
"Há chances", pensou enquanto voltava pra dentro da casa, "Que não podemos desperdiçar.".

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Algo errado


Ela estava esperando ele na saída do trabalho. Assim que o viu, saindo com dois colegas, abriu um sorriso. Ele se despediu dos companheiros, e foi em sua direção. Estava sério. Deu-lhe um beijo meio sem graça nos lábios, enquanto colocou a mão na sua cintura.
-Tudo bem?
-Tudo, tudo...
Ela sabia que havia algo errado. Não se conheciam a tanto tempo assim, mas não era necessário consultar um manual pra ver que a expressão em seu rosto não era das melhores, mas, se ele não queria conversar a respeito, o negócio era esperar. Saíram andando, ela segurou a mão dele, ele retribuiu meio chocho.
-Quer ir comer alguma coisa?
-Não... Não tô com fome, obrigado. Tu quer?
-Não, não... Só perguntei.
-Tá bem.
Ela precisava saber. Não queria forçar a barra, não queria ser dessas mulheres que perguntam e perguntam e perguntam até estourar a cabeça do sujeito, mas precisava saber:
-Tem alguma coisa errada?
Ele olhou pra ela com alguma ternura cansada no rosto:
-Não... Não tem, não...
Continuaram andando, ela tentou puxar algumas conversas, ele respondeu a tudo sem muita empolgação. Parecia distraído, absorto. "Ai, meu Deus... Ele tem outra?" ela pensou. Começou a ficar preocupada. Não conhecia ele a tanto tempo. Ele podia ser um cafajeste completo. Podia ser um cínico, vil e depravado, desprovido de qualquer moral ou decência, o tipo de sujeito que namora várias meninas ao mesmo tempo e que vai esfriando suas relações até que a menina exploda e dê-lhe um pé na bunda poupando-o do trabalho. Tudo isso passou rapidamente pela cabeça dela. Tudo isso girou em seu estômago como uma revoada de pardais assassinos à la Hitchcock, mas ela lutou pra se conter. Pra não perguntar a ele qual era o problema. Lutou com força sobre-humana e com tenacidade de samurai.
Foi apenas estavam chegando perto da casa dela, que toda a sua firmeza de propósito foi vencida pela curiosidade e, por que não, pela preocupação. Antes de subirem as escadas que levavam à porta do prédio, ela o segurou pelas mãos e perguntou:
-Eu tô vendo que não tá tudo bem. Fala pra mim. Qual é o problema?
Ele tentou negar. Maneou a cabeça com uma expressão de quem procura uma saída, parecia arredio:
-Não é nada, amor. Nada, mesmo.
Mas ela insistiu, e ele acabou confessando:
-Tá bem... Olha, eu não quero que tu fique brava, muito menos triste comigo. Eu... Olha, eu não sei como te dizer isso, mas... Ah... Tá. Lá vai: Eu odeio o Big Brother, e se eu tiver que ver outro episódio inteiro dessa porcaria, meu cérebro vai derreter!

Viram Como Funciona O Universo, no Discovery. Estão bem.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Rapidinhas do Capita


-Eu não queria parecer...
-Não, não, 'magina...
-Então não...
-Não, capaz...
-Então a gente...
-Claro, na boa...
-Bah, ainda bem...
-Sem problema...
-Por que eu tava, tipo...
-Nem esquenta...
-Que alívio...
-Bobagem...
-Por isso eu adoro conversar contigo, amor. Tu sempre me entende.

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Ele e ela andavam na rua. Ela estava claramente enfurecida, vinha cutucando o braço dele, ali do lado do bíceps, com a falange do dedo indicador. Ele ia relevando, afinal de contas, amava ela, iam casar. Mas ela estava forçando. Já havia reclamado de tudo. Das bebidas (Só cerveja? Não pensam que alguém pode não querer beber álcool, ou não querer beber aquilo?), dos amigos dele (Tudo safado, não quero nenhum deles no nosso casamento), e das mulheres na festa (Tudo piranha). Ele disse que a Cinara não era piranha. Ela disse que era sim. Ele só sorriu pro lado e suspirou. Ela se enfureceu, mesmo, de vez. Houvessem raios Gama no corpo dela, ela teria ficado verde e enorme. Perguntou entre os dentes cerrados:
-O que é que você tá pensando, hein, Décio?
-Quê?
-O que é que você tá pensando?
-Quê que é isso?
-Como quê que é isso? Eu quero saber se você me acha com cara de palhaça-
-Não, não, isso eu entendi. Que negócio é esse de "você". Que é isso? A gente sempre se tratou por "tu". De onde saiu esse "você"?
-Quê?
-"Você", Maria Rita, "você", que negócio é esse de "você"? Tu nunca usa essa expressão.
-Não desvia o assunto, Décio...
-Não, não... Desembucha, aí. Que negócio é esse de "você"?
-Já disse, pombas. Não sei do que cê tá falando, menino.
-"Menino"? Como assim, menino? Quê que é isso, guria? Quié isso? "você", "menino"? Aí tem coisa...
-Bobagem sua...
-Bob... Bobagem "sua"? "Bobagem "sua", e não "tua"?
-Como, minha?
-Não, Maria Rita, não disfarça. Tu disse "bobagem sua", não disse bobagem "tua". Tá falando que nem paulista, agora?
Ela só sorriu pro lado e suspirou.
Ele correu atrás dela pela rua, mas não conseguiu alcançá-la. O casamento foi cancelado.

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-Se eu fosse esperto, eu sumia, sabe?
-Arram.
-Se eu fosse esperto, eu não levava isso adiante. Não tem, tipo... Sei lá. Eu não sou uma pessoa fácil, entende? Não sou acessível. Não sou legal. Em algum momento... Em algum momento ela vai ver. Sabe o que eu quero dizer?
-Claro.
-Se eu fosse esperto, eu nem teria começado isso. Não teria deixado chegar onde está. É caminho sem volta, já. Não consigo... Á essa altura, eu não tenho mais muito controle sobre as coisas...
-É. Agora complicou.
-Se eu fosse esperto, eu diria pra ela que uma coisa dessas, por mais legal que pareça, tem, especialmente com uma pessoa que nem eu, pouquíssimas chances de funcionar.
-É verdade. Ainda mais hoje em dia...
-Se eu fosse esperto, eu dizia pra ela como eu me sinto. Que eu sou louco por ela, mas que, em algum momento, ela vai enjoar de mim, dos meus maus humores, das minhas manias, das minhas idiossincrasias, e vai embora... E eu vou ficar arrasado por que eu fiquei louco por ela lá no início, entende?
-Perfeitamente.
-O que que eu faço, velho?
-Nada. Tu não é esperto. Aproveita.
-Ah, é... Bem lembrado. Valeu, tchê.
-Disponha.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Recomeço?


Ele observara a loira durante toda a noite. "Observara", na verdade, não fazia justiça. Ele a secara descaradamente. Uma mulher que percebesse um sujeito a olhando como ele olhava pra a loira iria requerer uma ordem judicial pra mantê-lo à distância. Ele olhava pra ela mais ou menos como o Damien Rice olhava pra guria da praia naquele clipe de The Blower's Doughter, que todo mundo acha que chama "I Can't Take My Eyes Off you", sabe qual? Lembra da cara de maníaco do Rice? Então. Era como ele olhava pra ela.
Até dava pra entender. Ela era linda. Um arraso. Um disparate. Bonita demais, mesmo. Bonita demais pra uma festa que ele frequentasse, pelo menos. Uma deusa loira e longuilínea serpenteando com desenvoltura pelo salão, falando com pessoas, dançando, bebendo. E ele ali, escorado em uma parede, mascando chiclete como quem espera que a festa acabe pra poder ir embora, o que de fato estava. Estava ali como vítima de um casal de amigos, o Augusto e a Maroca, que o obrigaram a ir à tal festa na esperança de que ele arrumasse, também, uma namorada, e parasse de segurar vela, o que, aliás, vinha sendo a única coisa vagamente romântica que ele fazia a quase dois anos.
Não era o sobrevivente de nenhum relacionamento que terminou em hecatombe, apenas acabara um namoro já a algum tempo e não encaixou nenhum namorico na sequência. Sua vocação pra solidão se manifestou, e ele resolveu ficar sozinho por alguns meses, que se tornaram vários, que se tornaram um ano, que estavam quase se tornando dois. Seu melhor amigo e a namorada, suas companhias mais frequentes, estavam preocupados, diziam, até com a saúde dele. Física e mental. Disseram que ele não podia ficar em casa, largado às moscas, vendo pornografia na internet e evitando gente. Ele protestou dizendo que estava em pleno gozo de suas faculdades mentais, que sua saúde estava ótima e que nem evitava gente, nem via pornografia na web e que eles queriam, mesmo, é que ele lhes desse um pouco de privacidade, o que ele faria com prazer.
Não adiantou.
Eles resolveram que iriam ressucitar a vida social dele. E essa festa era o seu primeiro encontro com o desfibrilador social que os dois planejariam, querendo ele, ou não. Agora ele começava a ter mais e mais certeza de que, o que eles queriam, mesmo, era ter um tempinho sem ele por perto, nem dor na consciência por tê-lo deixado de escanteio. Olhou pro copo de soda limonada que tinha na mão e suspirou enquanto bebia um gole.
Foi então que ele percebeu, a movimentação dela, a deusa loura, ganhou propósito e direção e... Sim. Ela se aproximava dele. Usava um vestido tubinho preto de um tecido bem leve, que marcava suas curvas quando ela andava, seus tornozelos estavam delicadamente envoltos pela tira do sapato de salto alto que ela calçava com elegância. Ele olhou pra ela e ficou apavorado. "Meu Deus, meu Deus, ela tá vindo pra cá, o que que eu faço? O que que eu faço?", ele pensou enquanto, escorado na parede atrás de si, fazia cara de descolado.
"Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!", pensou enquanto sentia que o suor começava a lhe escorrer pelas costas e do cabelo sobre as orelhas. "O que é que eu faço, essa mulher é linda, linda, linda. O que que eu digo? O que será que ela vai dizer? Ah, meu Deus, que mico, ela vai dizer que me confundiu com alguém. Ai, minha nossa. Olha só pra ela. Que beleza. Minha Santa Aquerupita. Tem cara de inteligente. Deve ser inteligente, também. Pra completar a minha humilhação. Vai parar perto de mim, linda desse jeito, e querer conversar sobre física quântica. Imagina minha cara:
Ela:
-Oi, tudo bem?
e eu:
-Tudo, e tu?
E ela:
-Tudo ótimo. Visse as últimas da física quântica?
E eu engasgo por que não me ocorre nada pra responder, e ela pergunta se eu tô me sentindo bem, e pra não passar por burro eu me jogo no chão fingindo que não consigo respirar, ou que desmaiei, ou que morri, qualquer coisa, quelquer vexame pra ela não ver como eu sou um idiota."
Ela estava cada vez mais perto. Um sujeito a cumprimentou com três beijinhos.
"Ah, pronto. Isso, fica com esse cara aí, nem chega perto de mim, desafasta como diz o Falcão. Ele também não deve manjar de física quântica, mas certamente deve ter abdôme de crocodilo, com cento e setenta e três gomos, então, quando ela perguntar se ele viu as últimas da física quântica ele levanta a camiseta, mostra a barriga pra ela e ela vai embora com ele, e eles viverão felizes para sempre, e eu terei, pelo menos, a satisfação de ter juntado esse casal perfeito que vai dar origem a toda uma geração de semi-deuses olímpicos ou participantes do Big Brother."
Ela se despediu do tal sujeito, e continuou andando em direção a ele.
"Ai, meu Deus. Sua burra. Por que não foi com o cara? Ele tem o abdôme de atleta, deve ser rico, bem dotado, sei lá o que mais. Não chegue perto, não chegue perto... Ai, meu Deus do céu."
Ela estava a menos de cinco metros dele, abriu um sorriso.
"Será que foi pra mim? Será que foi pra mim? Só pode. Ou isso ou o homem invisível está na minha frente e essa cabeleira loura cheia de gel dela é equipada com a visão térmica do Predador, só pode. Atrás de mim só tem parede. O que eu faço? Sorrio de volta, claro. O que mais? Evito física quântica.
-Visse as últimas da física quântica?
respondo:
-Não, estou em meu ano sabático.
Deve funcionar. Minha nossa, e se ela gostar de sujeitos medianos que nem eu? Será que existe isso? Mulher linda que nem essa que se apaixona por sujeitos meia boca que nem eu? E se for? Nossa, talvez meus filhos sejam bonitos que nem ela. O nariz, a boca, os olhos, o corpo, tudo dela, e meus... meu... Ah, meu sobrenome, vá lá, já tá de bom tamanho. Nossa, linda e inteligente, não posso dar ponto sem nó. Preciso pensar bem pra não dar mancada."
Ela chegou perto, rescindia um perfume cítrico, de seus cabelos, de sua pele, de tudo, ele supunha. Ela suspirou olhando pra ele:
-E aíam? Team chicléam?
Ele levou uma fração de segundo pra entender o que ela dissera por causa do sotaque do bomfim, carregadíssimo, e da voz nasalada que ela tinha.
-Quê? Ah, chiclete? Tenho, sim.
Estendeu a cartela prateada de trident de morango.
-Ah, naum... Esse daíam eu não gostóam...
Ele recolheu o chiclete e guardou-o novamente no bolso.
-Lamento, é só o que eu tenho...
-Faloam. - Ela respondeu, e então se afastou, serpenteando novamente em meio à multidão.
Ele ficou ali, olhando pra ela enquanto ia embora. Bonita, sim. Mas tinha a voz meio enjoada, né? Falava muito cantado. Mesmo pros padrões portoalegrenses, e, era impressão dele, reflexo do tempo que passara sozinho, ou ela era meio mal educada?
Seus amigos se aproximaram, foi a Maroca quem perguntou:
-Bah, quem era aquela gostosa, ali?
Ele olhou desencantado pra frente, pensando em dizer que era uma piriguete irritante, mas, ao ver os olhos esperançosos da Maroca e do Augusto, disse apenas:
-Talvez a futura mãe dos meus filhos...
O Augusto riu enquanto puxava a Maroca pelo braço de volta à pista de dança, deixando-o novamente a sós com seus pensamentos. Nos próximos dias ele daria um sossego pra Maroca e pro Augusto. Não sairia com eles nem se fosse convidado. Talvez ele ficasse em casa, evitando pessoas, jogado às moscas, quiçá até visse pornografia na internet, mas talvez, quem sabe, saísse pra encontrar alguém... Alguém que se parecesse mais com uma pessoa de verdade, que fosse bonita, claro, mas também divertida, inteligente e que soubesse se comunicar por mais do que gemidos monossílabícos.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O de sempre


Estavam ela e ele sentados no restaurante, o mesmo restaurante de quatro anos atrás, a mesma mesa perto da janela, outra vez numa noite de sexta-feira de um outono ainda moderado de Porto Alegre.
Ela sorria muito, ele parecia nervoso. Isso era normal entre eles, não ela sorrir, ela sorria, claro, mas não era essas pessoas que tratam a todos como dentista, mostrando os dentes o tempo todo, não. Ele, por outro lado, estava sempre nervoso. Ou, ao menos, parecia nervoso. Essa noite não era exceção. Ele parecia nervoso dentro do seu blazer preto, de sua camisa cinza e de sua camiseta branca. De vez em quando afastava a camisa do peito e assoprava lá pra dentro tentando se refrescar.
"Errei a roupa.", repetia sem parar. "Errei feio".
Não adiantou ela lhe dizer que fosse até o banheiro e se livrasse da camisa, ou da camiseta.
"Onde é que eu vou colocar a camiseta? Ou a camisa, se eu tirar?", ele perguntou.
Ela pensou em responder que sua bolsa era grande, e uma camiseta enroladinha, como a gente dobra pra colocar na mochila ocupando menos espaço em uma viagem, caberia facilmente ali. Mas desistiu ao lembrar que, se dissesse isso, ele iria dizer que queria ficar com a camiseta e tirar a camisa, e que a camisa, se colocada na bolsa dela, iria amarrotar inteira, e não sei mais o quê. Ela, depois desses quatro anos, ainda se espantava com a facilidade que ele tinha pra tergiversar quando queria continuar se fazendo de vítima, ou apenas continuar se queixando sobre qualquer coisa. Não mencionou a bolsa. Disse apenas pra ele fazer como quisesse.
Ele segurou a camiseta e a camisa entre o polegar e indicador e as sacudiu rapidamente. "Por que não ligam o ar-condicionado, aqui, meu Deus?", suspirou.
Ela olhou pra ele com ternura, embora tentasse, na verdade, se lembrar se ele sempre fora chato, assim.
Ele bufou. "Cadê os garçom?", olhava pros lados. Quando se incomodava, ele abandonava a concordância verbal. "os garçom" ela repetiu baixinho.
-Quê?
-Nada. Não vi nenhum desde que a gente se sentou. Mas eles devem existir, aquela mulher gorda ali tá comendo. - Ela respondeu, apontando com o queixo pra uma moça de cintura bem ampla sentada em uma mesa próxima.
"Ele vai fazer um 'psssssssssssssh' sussurrado e meio rindo e me dizer pra não apontar", ela pensou "O de sempre".
-Psssssssssssssh, não aponta! - Ele disse, sussurrando entre risos, mas parou imediatamente.
Ela sorriu olhando pra ele quando a pegou pela mão, ainda olhando em volta.
Quando foi que ele se tornou tão previsível? Será que foi quando ela percebeu tudo o que deixara de fazer pra ficar com ele, ou foi depois? Ou antes?
Ele não era má pessoa. Só... Ela não sabia. Talvez ele tivesse um prazo de validade curto. É. Era isso. Sua validade era breve. Mais breve do que quatro anos, pelo menos. Quatro anos, e ela era capaz de antever todas as reações dele. Nenhum problema nisso, ela pensou. Provavelmente era um efeito colateral normal de uma relação de longo prazo.
O problema eram todas as reações dele, de repente, a incomodarem.
O garçom finalmente apareceu. Ele fez um "ah!". "Ele vai soltar a minha mão, agora", ela pensou. "ele sempre solta a minha mão quando vai falar com as pessoas. Parece que se eu estou segurando a mão dele ele se torna incapaz de articular uma palavra."
Ele soltou a mão dela e fez hãããããã, enquanto olhava pro cardápio. "Ele vai pedir uma água com gás." ela pensou. "O de sempre.".
-Uma água com gás. - Pediu. -E tu? - Perguntou pra ela.
-Uma coca light.
O garçom anotou os pedidos, deixou dois cardápios e saiu.
"Ele pede antes de mim, agora. Antes, ele sempre me perguntava o que eu queria, antes de pedir. Será que fui eu que matei o cavalheirismo dele? Com a minha auto-suficiência, talvez?", ela se perguntou, "Ou será que foi ele? Ou será que foi o tempo?".
-Tô seco por uma água com bolinha. - Ele sentenciou procurando a mão dela. Mas ela recolheu a mão. Fingiu mexer na bolsa. Ergueu os olhos. Ele olhava pra ela. Sorriu. Ele sorria fechando bastante os olhos. Tinha os olhos pequenos, e eles quase sumiam quando ele sorria.
Ela sorriu de volta. Foi um sorriso forçado. "Será", ela pensou, "que um sorriso forçado significa alguma coisa? Nada de bom, eu suponho. Um fim, talvez.", mas não disse nada. Baixou os olhos mirando novamente a bolsa. Não conseguia mais fingir estar procurando nada. Nem tinha tantas coisas na bolsa naquela noite. Ele apanhou a mão dela com firmeza, e levou até perto do nariz. Do lado da narina direta. Apanhou, com cuidado, o dedo indicador dela, e passou ali, do lado do seu nariz, naquela reentrância que existe onde a narina se junta com a maçã do rosto.
-Tá sentindo? - Ele perguntou.
Ela sentiu, de fato, uma pequena aspereza na região. Uma linha de pele mais dura. Respondeu que sim. Perguntou o que era.
-É uma cicatriz. Dois pontos. Parece uma bobagem, dois pontos. Dois pontos não são nada. Mas essa cicatriz eu consegui quando tinha cinco pra seis anos. Eu nem sequer tinha chegado à pré-escola. Era bem pequeno. Naquela época, primeira metade dos anos oitenta, o SBT passava um seriado do Capitão-América. Era muito ruim. O uniforme do Capitão América nem era parecido com o do gibi, ele usava um capacete ao invés de máscara, o escudo dele era de plástico transparente, eu nem faço uma ideia remota, hoje, de qual era o mote do seriado, mas suponho que fosse alguma coisa como a série do Homem-Aranha com o Nicholas Hammond, uma tentativa frustrada de repetir o sucesso do Hulk com o Bill Bixby e Lou Ferrigno, enfim, eu tô me desviando do assunto, desculpa. O meu ponto é que eu, nos meus cinco, seis anos, adorava essas séries todas. Hulk, Homem-Aranha, Capitão-América. E eu tenho quase certeza absoluta, que eu estava brincando de Capitão-América, quando resolvi fazer uma manobra mais arrojada, que consistiria em subir no sofá da sala, tomar um pequeno impulso, correr pelo chão da sala, encerado com esmero pela minha mãe, me ajoelhar, e deslizar sobre os joelhos até embaixo da cama, ainda que isso fosse me deixar com joelheiras de Tacolaqui, que era a cera que minha mãe usava, nas calças de abrigo azul-marinho que eu vestia. Eu não sei, ao certo, o que essa manobra representaria na minha brincadeira. Eu suponho que, o sofá, representasse um helicóptero, que eu tivesse nocauteado o piloto, a aeronave estivesse caindo, e eu fosse saltar dela. Assim, a minha corrida e posterior deslizamento seriam por uma estrada de chão batido, e a cama seria um caminhão, sob o qual eu estaria me abaixando pra não ser atropelado. O que é muito legal se considerarmos que no início dos anos oitenta, nenhuma série de TV teria cenas de ação tão elaboradas, de modo que isso advoga em favor da minha criatividade infantil. Enfim, a minha manobra foi calculada com frieza, entretanto, minha elasticidade aos cinco anos de idade não era digna de super-herói, e embora eu tenha sucedido no meu intento de saltar do sofá/helicóptero, e tenha sido capaz de correr por breves metros no chão, e me ajoelhado e deslizado, eu não consegui me abaixar o suficiente pra evitar a cama/caminhão. E bati justamente com esse espacinho, do lado do nariz, na quina da cama. Eu, claro, chorei. Afinal, era um piazinho de apartamento que ainda nem frequentava a escola, meu pânico, porém, só surgiu quando minha mãe me olhou e disse algo como "aimeuDeusdocéu!" e correu comigo pra lavar o rosto. Foi só quando eu percebi o sangue. Muito sangue. O que é normal, claro, o nariz é uma zona super irrigada, qualquer coisinha nas imediações sangra uma barbaridade. Mas na época eu não sabia, e me desesperei. E enquanto eu estava sendo vestido pela minha mãe pra ir ao pronto-socorro, enquanto ela telefonava pro meu pai pra avisar ele que eu tinha me machucado e me mandava fazer pressão no nariz, eu tive, por alguma razão, certeza de que eu ia morrer.
Ela riu. Ele continuou:
-Eu sei, é uma bobagem, quem é que morre por causa de um corte perto do nariz, certo? Nós sabemos disso. Mas, aos cinco anos, eu não tinha essa consciência. Pra mim, perder sangue, especialmente em grandes quantidades, e ser levado pro hospital, eram sinônimos de morte iminente. O desespero da minha mãe não ajudou a mudar a minha opinião. Claro, eu levei dois miseráveis pontos. Conversei e brinquei com o taxista que nos levou ao HPS, com o médico que inclusive me deu a agulha da "operação", com meu pai, que disse que eu ia ficar com cara de bandido e ser temido pelos meus futuros colegas na escola... Nada daquilo, porém, mudou a sensação de "saber" que eu ia morrer que eu experimentei. O que foi uma bobeira de criança que se machuca pela primeira vez, acabou sendo uma coisa positiva, sabe? Nos anos que se seguiram, especialmente quando eu fiquei um pouco mais velho, eu sempre me lembrava daquela sensação. A sensação de morte iminente, ainda que artificial, ainda que injustifcada, sempre me fazia valorizar um pouco mais as coisas, entende? Eu sou um sujeito aborrecido, eu não nego. Eu me aborreço com facilidade, e não custa muito pra eu me tornar rabugento, pra ficar de mal com o mundo. Não é algo que eu cultive por que gosto, é um traço de personalidade com o qual eu tenho que lidar. De qualquer forma, durante muito tempo, a minha muleta pra achar um pouco mais de cor nos meus dias, era aquele episódio de "quase morte". O sangue, a adrenalina, a urgência. Mas, claro, conforme eu fui ficando mais velho, aquilo foi perdendo o sentido. Eu fui aprendendo coisas, perdendo entes queridos, vendo gente que eu amava ir embora por que queria ou precisava. E aquele episódio, esses dois pontinhos, perderam o peso, a relevância, e eu perdi essa muleta. Mas quando a gente se conheceu, e tu, por alguma razão gostou de mim, e foi doida o suficiente pra querer ficar junto comigo... Bom, isso virou a motivo pela qual eu, vez que outra, me flagro pensando que estou sendo mais rabugento e resmungão do que a vida merece. A razão pela qual meus maus humores ás vezes se tornam humores menos piores, ou até, quase bons humores. E a tinta que torna meus dias cinzentos mais coloridos. Então... Bom: Obrigado.
O garçom chegou perto da mesa antes que ela pudesse responder qualquer coisa.
-Querem pedir? - Perguntou, jovialmente.
Ele olhou pra ela:
-O que tu vai querer?
"O de sempre." ela pensou. "Pra sempre."

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Sobrevivendo


O Luís e o Sandro estavam sentados no sofá, um do lado do outro. O Luís tinha uma garrafa de seicentos mililitros de Fanta, na mão direita, e o controle remoto do DVD na esquerda. Sua expressão deixava bem claro que ele vira momentos mais felizes.
O Sandro segurava uma cerveja long neck na mão esquerda, e um pacote de ruffles que poderia alimentar Bangladesh na mão direita, não tinha nenhuma expressão no rosto. Na TV, o Batman de Christian Bale esmurrava o pescoço de bandidos fingindo serem reféns em uma das últimas cenas de Cavaleiro das Trevas.
-Fodão esse filme, "heinhô, Batista"? - Perguntou o sandro, imitando a voz de um narrador meia-boca da televisão gaúcha e seu bordão ao se dirigir ao comentarista.
-É... - Respondeu, sem lá muita convicção, o Luís, tomando mais um gole de sua Fanta.
-Como assim, "é"? Esse é o filme de super-herói mais fodaço que já fizeram, velho.- Replicou o Sandro, ainda olhando pra TV sem expressão no rosto.
-Eu tô ligado, só... Sei lá. Prefiro Homem-Aranha 2.
-Cala a boca.
-Tá bem. - Concordou o Luís, se contorcendo pra alcançar o pacote de batatas fritas na mão do Sandro, e enfiando um punhado delas na boca com um "crunch-crunch" enquanto mastigava.
O Coringa estava pendurado de ponta-cabeça, a câmera se virava para deixá-lo na posição do espectador na tela. O Sandro apontou pra TV:
-Essa aí é uma sequência genial. Brilhante. Coisa de Kubrick.
-Kubrick era um mala. - Suspirou o Luís.
-Blasfêmia! - Proclamou Sandro, ainda de olho na TV e sem alterar o tom de voz.
-Só não é mais chato que o Robert Altman e o Terrence Malick. - Completou Luís, apanhando mais batatas.
-OK... Para enquanto tu pode, esse é um terreno perigoso, Gafanhoto... - Advertiu o Sandro.
-Tá bem. - Concordou o Luís, com a boca cheia de batatas.
Batman corria em meio a contâineres, perseguido pela polícia, o comissário Gordon de Gary Oldman entoava o texto final do filme, Batman subia na Bat-Pod e desaparecia em meio a luz, quando o título do filme finalmente surgia na tela e a trilha de Hans Zimmer ressoava. Luís pressionou a tecla stop do controle remoto do DVD por duas vezes. Então desligou o aparelho.
-Que filmaço. - Proclamou Sandro.
-É... Bacana...
-Tu vai continuar, criatura?
-Por que que ele assumiu a culpa, no fim?
-Como...? Pra proteger a imagem do Harvey Dent.
-E por que ele não disse que tinha sido algum outro meliante? Gotham City é só bandido, mesmo...
-Pra evitar os imitadores, caraca!
-Os quem?
-Os imitadores, meu! Os carinhas fantasiados de Batman lá do início do filme.
-Ah... Ah, bom. É... Então faz sentido, mesmo.
-Abre o coração, monstro. Qual é o mal que te aflige?
-Nah... Nada.
-A Isadora, ainda?
-Não... Nada a ver. Eu nem tô mais por essas, ih... Capaz...
-Sério?
-Não. É ela ainda...
-Porra...
-Não adianta, meu. Eu não consigo acreditar que... Ah. Deixa pra lá.
-Não, não... Fala. O que é?
-Tá, esquece todo o resto... Só me diz o seguinte... Putz. Não acredito que eu vou perguntar isso logo pra ti... Tá... Tu acredita em relacionamentos à distância?
-Claro.
-Sério?
-Sim. Sério. Totalmente. Sem dúvida.
-Puxa...
-Especialmente pra ti.
-Cara... Putz, eu... Sei lá, isso é até um alento. E eu achando que tu fosse me chamar de... Peraí. Porque "especialmente" pra mim?
-Por que as tuas relações sempre acabam com a mulher querendo distância de ti.
-Vai tomar no cú.
O Sandro se levantou, andou até a estante de DVDs do Luís e falou:
-Eu sei o que vai te animar.
Jogou pro amigo a caixa de Homem-Aranha 2.1.
-Liga essa bosta, aí, enquanto eu pego mais uma ceva. Quer mais um refri?
-Quero. Mas Homem-Aranha 2 não é uma bosta. É um filmaço.
-Tá, que seja. Só presta, mesmo a luta no trem...
-Cala essa boca, bichona.
-Tá bem.
Com a ajuda dos amigos, tudo se supera...

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Resenha cinema: Além da Vida


É estranho ver o nome de Clint Eastwood em cima do título de um filme a respeito de um tema tão água com açúcar como vida após a morte. Há quem possa imaginar que o velho Clint esteja amolecendo, ou, que a idade provecta (Adoro esse termo, "idade provecta") do cineasta octogenário o tenha feito pensar um pouco sobre o fim. Bazófia. Primeiro, por que Clint Eastwood jamais irá amolecer. Segundo, por que Clint Eastwood não tem medo da morte, embora seja melhor a morte pensar duas vezes antes de cruzar a mira de sua Magnum 44, e, terceiro, por que Além da Vida não chega a ser um filme sobre vida após a morte na acepção do tema.
Na trama conhecemos três histórias que se entrelaçam durante a projeção:
Primeiro a da jornalista Marie LeLay (Cécile de France), que após uma experiência de quase morte durante um tsunami na Tailândia tem sua realidade alterada e se torna obcecada com o além-vida; A de George Lonegan (Matt Damon), um médium que encara seu dom de se comunicar com os mortos como uma maldição, e tenta levar uma vida normal como operário, á despeito dos apelos do irmão Billy (Jay Mohr) para que retome a lucrativa atividade; e a de Marcus (George e Frankie McLaren), menino que perde o irmão Jason (George e Frankie McLaren, também) ao mesmo tempo em que sua mãe precisa deixá-lo para se livrar do vício em drogas, e busca desesperadamente por respostas.
Não é um filme ágil, as duas horas e nove minutos do longa ás vezes se arrastam pela tela enquanto as relações dos personagens centrais vão se esfacelando por conta de suas respectivas obssessões com a morte. Matt Damon está excelente como o médium relutante George, quando ele interage com a gracinha Bryce Dallas-Howard nós conseguimos sentir, de fato, a aflição do sujeito que sabe pra onde aquilo vai andar.
Cécile de France não compromete, e é a dona de uma das grandes sequências do filme, o tsunami que varre a Tailândia e quase a mata, enquanto que os gêmeos Frankie e George são boas supresas nos papéis de Marcus e Jason.
Clint Eastwood usa o tema da espiritualidade com parcimônia, impedindo que seu filme se torne uma porcaria panfletária como Chico Xavier, Amor Além da Vida ou Nosso Lar, ele não consegue, no entanto, escapulir de alguns clichês, tanto no texto, quanto visuais, que sempre acabam recorrendo nos longas do tema, o que resulta em um filme que, se não é ruim (e não é), certamente empalidece quando comparado aos trabalhos recentes do diretor de Sobre Meninos e Lobos, Gran Torino, e Cartas de Iwo Jima.
Enfim, Clint Eastwood não precisa ter medo da morte (Nem de nada!), ele só deve se acautelar com roteiros mornos.

"Se você está com medo de ficar por conta própria, não se preocupe: Você não está."

Resenha Cinema: 72 Horas


Paul Haggis é um roteirista dos bons (Os filmes mais recentes de 007 que o digam), e Diretor, idem (Olha o Oscar de Crash - No Limite, aí que não me deixa mentir.). Ele colocou as asinhas de fora novamente fazendo um filme que se aproxima um pouco mais da ação de seus trabalhos como roteirista, e difere de um pouco de seus dramas nos trabalhos como diretor:
O bom thriller de fuga da prisão, 72 Horas, onde Russel Crowe interpreta John Brennan, professor e pai de família que tem sua esposa, Lara (Elizabeth Banks), presa e condenada por assassinato, e que, após esgotar todas as vias legais de apelações para livrá-la da cadeia, percebe que só existe um curso de ação: Planejar uma fuga pra sua esposa.
Mas como um professor de inglês poderia tirar alguém de uma penitenciária de alta segurança? Aí é que a trama se complica, e ganha suas melhores tintas.
É, grosso modo, um show de um homem só. Russel Crowe carrega o filme nas costas durante toda a projeção, a sua atuação mostra de forma extremamente convincente o sujeito comum tentando realizar um prodígio. O John Brennan de Crowe é, ao mesmo tempo, determinado e hesitante, valente e assustado, contido e raivoso.
Enquanto busca desesperadamente o conhecimento necessário pra tirar a esposa da cadeia, Brennan incorre em todos os erros que uma pessoa normal cometeria na mesma situação. Ele se dá mal tentando negociar com criminosos, ele fracassa em tentativas de usar técnicas de fuga extraídas do YouTube, ele titubeia antes de tomar uma decisão drástica, mas sempre se apega á vida que levava antes da prisão de sua esposa, e que está disposto a recuperar não importa o custo.
Se Haggis não chega a mostrar estofo de papa do gênero na direção, não deixa a peteca cair, nos deixando na ponta da cadeira nos momentos de tensão sem jamais esquecer de dar veracidade aos seus personagens. Se Crowe é um daqueles atores de exceção em hollywood já sabemos faz tempo, a interpretação de Elizabeth Banks (A Betty Brant de Homem-Aranha) não deixa de ser uma bela surpresa, além das boas participações de um silencioso e expressivo Brian Denehy, como pai de John, Liam Neeson como um ex-condenado especialista em fugas, e Olivia Wilde, linda de morrer, como uma mãe solteira que pode se tornar peão nos planos de John.
No final das contas, 72 Horas não vai mudar os rumos do cinema contemporâneo, não dará nenhum prêmio de interpretação aos membros do elenco, nem deve ser um estrondoso sucesso de bilheteria, mas cumpre bem a sua função, e distrai bastante bem por duas horas e dois minutos.

"Não há nada mais perigoso do que um homem com tudo á perder."

Coisas simples


O Aristides admirava a engenharia das coisas do dia-a-dia, das coisas simples, das mais simples, até algumas mais elaboradas, ele adorava conhecer o funcionamento de tudo. Embora ele admitisse, tivesse mais apreço pelas coisas simples. Era no mundano que Aristides encontrava mais satisfação, no que parecia mais tosco, mais básico, era onde Aristides depositava seu mais sincero apego, seu mais genuíno deslumbramento.
Um exemplo bem claro, era que Aristides achava telefone celular muito bacana, sim. Achava maneiro até o modo como o nome servia pra designar o sistema de células que tornava as ligações possíveis, mandando o sinal de uma antena pra outra e talicoisa. Mas ele achava dobradiça muito mais bacana. Dobradiça, mesmo. Dessas de porta, sabe? Então. O Aristides achava dobradiça muito maneiro. Ficava pasmo olhando aquelas cartelinhas que vende na parte de ferragem do supermercado com duas dobradiças dentro, manja? Pois é, ele achava aquilo, sei lá, uma demonstração inquestionável da triunfo do intelecto humano. Achava glorioso. Ás vezes, quando ia entrar em algum lugar, olhava a dobradiça das portas, e fazia, baixinho, um ruído de satisfação.
"Eheh... Aaaah."
Ninguém entendia, se bem que quase nunca reparavam. De qualquer forma, dobradiça era uma das coisas que deixavam o Aristides feliz da vida, admirado, maravilhado. Um lance tremendamente simples, mas, ao mesmo tempo, com uma certa sofisticação rude, se é que existe tal coisa.
Tubo de pasta de dente, também. Nossa, cara, tubo de pasta de dente ele achava tudo de bom! De manhã, quando acordava, o Aristides já estava com um sorrisão no rosto, antevendo o prazer de apertar o tubo de pasta de dente bem embaixo, sabe? Na ponta oposta a da tampa, e ver o creme dental branco, com as risquinhas vermelhas sair lentamente de dentro do tubo... Nossa. Era um lance quase erótico pro Aristides, além, claro, de ser outra notável invenção da raça humana. Áfora, claro, toda a engenharia química da produção do creme dental em si, a forma como o creme era inserido dentro do tubo, a maneira exata como ele passava pelo micro recipiente da substância colorida perto da abetura do tubo, pressionado contra as ranhuras que davam aquelas riscas fininhas pra pasta... Caraca... O Aristides ficava estático pensando em como aquilo funcionava. Não tinha outra, era mais uma das grandes invenções humanas. Um troço tão maneiro, e que ainda protegia os dentes de cáries, e deixava o hálito cheiroso? Ah, não... Tipo, o Aristides ás vezes se sentia quase na obrigação de escovar os dentes ajoelhado, agradecendo aos céus e aos homens de ciência que criaram aquela maravilha.
O Aristides era assim. Um sujeito de admirações simples. De ideias simples, de vontades e desejos e sonhos simples. Ele era capaz de curtir as coisas mundanas do dia-a-dia, e de ver milagres de sapiência humana onde os outros são incapazes de ver qualquer coisa. Era seu modo de ser. Talvez por isso, por ser um camarada de pretensões tão básicas, ele andasse tão desconfiado com a felicidade que experimentava naqueles dias.
Felicidade tão em excesso, sem precisar de explicação ou palestra... Sei lá, precisava de alguma explicação ou palestra.