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sábado, 26 de fevereiro de 2011

Resenha Cinema: 127 Horas


Qualquer pessoa que estivesse viva em 2003 lembra do caso de Aron Ralston, alpinista que ficou preso sob uma rocha e, após cinco dias, amputou o próprio braço com um canivete vagabundo e andou vários quilômetros, faminto e sedento até receber socorro.
Não me surpreende que tenham feito um filme á respeito, não mesmo, essa é uma daquelas demonstrações de tenacidade e vontade de viver que merece um filme. Me surpreende que não tenha sido um filme meia-boca feito direto pra TV, tipo, O Resgate de Jessica, ou Enchente: Quem Salvará Nossos Filhos (Lembram desses clássicos da Sessão da Tarde e do Cinema em Casa?). Por sorte, isso não aconteceu com 127 Horas, o projeto caiu nas mãos de um talentoso diretor vencedor de Oscar e cheio de filmaços no currículo, Danny Boyle, de Cova Rasa, Trainspotting e Quem Quer Ser Um Milionário foi quem catou o projeto, o que já era promessa de alguma qualidade, a posterior entrada de James Franco (Que desde Homem-Aranha mostrava um talento que não devia ser ignorado) só melhorou a figura do filme, e foi nesse final de semana, fugindo dos bailes pré-carnaval, que encarei uma sessão do filme, e posso afirmar, os bons sinais durante a materialização do projeto, não eram infundados.
127 Horas é um tremendo filme.
Desde o início do filme fica claro que algo vai dar errado, é quando vemos a mão de Aron dançando por um armário alto e passando batida por um canivete suíço. Não que isso pareça fazer diferença pro personagem. Aron é um herói moderno que vive no momento, ele abandona o seu canivete suíço em casa, mas leva filmadora e câmera. Ele quer chegar logo ao cânyon BlueJohn, mas se detém pra passar um tempo com as gatinhas perdidas. Ele quer estar livre, mas admira a pedra que o prende por tê-lo esperado por toda a sua vida.
Uma vez preso sob a rocha, chega o momento de o filme adquirir tintas de mito civilizador, é hora de Aron expiar seus pecados passando por perrengues e aprender sua lição, certo?
Talvez, se fosse aquele filme feito pra TV que eu imaginei, pudesse ter sido assim, aqui, não. Aron se arrepende de algumas coisas, claro, aprende outras, óbvio, mas não deixa de ser quem é. Não encontra nenhuma suprema iluminação, nenhuma epifânia salvadora nas coisas que deixou de fazer, o imediatismo e a gravidade de seu ocaso não permitem, ele apenas agarra-se a vontade de sobrevive, com James Franco fazendo seu show de um homem só auxiliado pelo roteiro e pelas ótimas sacadas visuais de Boyle, que usa recortes de propagandas, câmeras de vigilância, as próprias câmeras de Aron como recurso para que o longa não se torne maçante nas longas sequências em que Aron está preso sob a rocha e lembra das coisas que fez e deixou de fazer.
No final das contas, 127 Horas é um ótimo filme, um drama de superação com alguns dos clichês do gênero (Cinco minutos de música de triunfo no final do filme?), claro, mas com o toque de Danny Boyle, e o talento de Franco. Acho que se perdoam os arroubos.

"Olá pra você, Aron! É verdade que você não contou à ninguém onde estava indo?"

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O Que se Quer


A Daniele acordou de madrugada com aquela vontade de alguma coisa que ela não sabia bem o que era. Se reborcou pela cama como uma minhoca em um anzol, mudando de posição quase como se estivesse em uma aula de yoga. Após vinte minutos, achou que nõ adiantava. Não era a posição que estava errada, tampouco seu colchão escolhido a dedo em uma loja especializada em produtos ortopédicos.
O que podia ser? Foi ao banheiro, atendeu ao chamado da naureza. Pensou em voltar pra cama, mas seguia com a impressão de que queria alguma coisa.
Andou pelo apartamento escuro, guiando-se pela memória do posicionamento dos móveis que não obedeciam às recomendações do Feng-Shuy, mas estavam onde ela achava que deviam estar pra valorizar a luz e o espaço da sala. Seguiu até a cozinha pé, ante pé, andando macio, descalça. Parou em frente a geladeira e a abriu tentando, sem saber por quê, não fazer ruído.
A luz de dentro do eletrodoméstico iluminou-lhe o rosto. Com as mãos delicadas ela vasculhou as prateleiras, passou por peito-de-peru, queijo, um pote de maionese Hellmann's, uma fanta que já devia estar com gosto de xarope e totalmente sem gás, um pacote pela metade de pão de manteiga, brócolis, ovos, maçã verde, e um vidro de pepino em conserva, não era aquilo.
Abriu a porta do freezer. sorvete de creme crocante. Não era isso. Frango? Muito menos. Fechou a porta da geladeira, andou até o armário sobre a pia da cozinha. Temperos diversos, sal, pimenta, orégano, coentro. Eca. Coentro.
Um pote grande de Toddy, duas caixas de leite longa-vida e... Uma lata de Leite-Moça. Hmmm... Uma lata de Leite-Moça. Podia ser isso, não é? Leite moça. É... Era isso. Leite-Moça, então.
Apanhou a lata de dentro do armário, largou sobre o balcão da cozinha, apanhou um abridor, e encarou a lata. Era isso, não era? Leite-Moça. Sim, podia ser. Encarou a lata por alguns instantes, hesitou um momento, e então guardou a lata de volta no armário. Voltou ao quarto, deitou-se e cobriu-se. Sabia esperar.
Dormiu tranquila.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Prós e Contras



O Berilo cambaleou por três degraus largos e parou segurando-se em uma parede próxima. O burburinho de dezenas de pessoas zuniu em seus ouvidos enquanto algumas se afastavam conforme ele passava. Pôde identificar risadas e sons de reprovação entre a multidão. Ele sentia o sangue escorrer abundantemente de uma ferida na sua testa. Ele nem sequer lembrava ao certo como aquele ferimento, especificamente, havia sido infligido à sua carcaça cansada, pra ser bem honesto, aquele nem sequer era o ferimento que doía mais, suas costelas o estavam matando, seu nariz chegava a estar amortecido pela dor e quando ele respirava fazia um ruído estranho, quase como um apito "Deve estar quebrado", pensou.
Não que ligasse, um nariz quebrado era uma coisa perfeitamente passível de conserto ligeiro, o punho direito, porém, latejava, latejava demais, e nas costas da mão, tinha uma mancha que estava com aquela coloração preta na órbita e esverdeada no centro, se fosse uma fratura, aquela sim era preocupante.
Destro de não conseguir nem coçar o braço direito com a mão esquerda, Berilo via com pânico a ideia de não poder usar a mão direita durante um semestre.
Precisou sentar. Machucara os dedos do pé, e o tornozelo direito, na perna esquerda, nada de errado.
Sentou no cordão da calçada, e apoiou os cotovelos nos joelhos, sentiu dor no torso inteiro quando se curvou para tocar as articulações, e uma pontada quando respirou fundo e sentiu seus dentes balançarem. Como aquilo acontecera, mesmo? Seus sentidos estavam meio turvos, suas percepções prejudicadas, como foi que ele se machucou daquele jeito?
Fez força para lembrar, enquanto fechava os olhos e via luzes claras espocarem diante de suas pupilas. Não lembrava de uma briga, fora a uma danceteria pra quê? Era aniversário de alguém... Sua irmã? Não... Ah, o namorado dela.
Deus do céu, pensou. Era por coisas como aquelas que detestava danceterias, nem sequer bebia, e agora ali estava: Todo arrebentado, sem nem mesmo saber ao certo o porque. O que acontecera? Tomara um tombo, certo? Não... Não fora um tombo, tombo algum o deixaria naquele estado exceto se caísse do quarto andar de um prédio, talvez, mas então... O quê? Uma briga? Mas logo ele? Como? Berilo era provavelmente a pessoa mais tranquila da região sul do Brasil, por que brigaria? Era por coisas como essas que odiava pessoas. O que fizera pra ser surrado daquela forma? E por quem? Não que fosse um Stallone, mas não era um sujeito pequeno, como fora espancado daquele modo? Um bêbado, talvez? Mas como fora surrado por um bêbado? Não... Não um bêbado.
Dois bêbados.
Dois bêbados agressivos o haviam atacado, os arquivos começaram a se organizar em sua cabeça, dois sujeitos, um sujeito negro, de cabelo raspado, e um branco loiro de cabelo comprido. Mas que filhos da puta, pensou Berilo. Como fora?
Uma garrafada.
Sim. Foi o primeiro golpe. Uma garrafada na cabeça. Era de onde provinha o sangue que lavava sua camiseta branca e o asfalto da sarjeta sob seus pés. Discutia com o sujeito negro quando o loiro o atingiu, de surpresa, com a garrafa, deu dois passos pra trás, lembrava disso, e então foi empurrado e recebeu um chute no pé direito ao mesmo tempo, não sabia qual dos dois o atingira, o negro ou o loiro. Caiu e torceu o tornozelo, e no chão foi alvo fácil para uma torrente de pontapés por toda a parte, o que explicava a dor nas costelas, o nariz e a sensação de dentes frouxos.
E a mão? Como machucara a mão?
Pensou enquanto massageava o punho escuro e dolorido. Abriu e fechou a mão algumas vezes, e então lembrou-se, esmurrara violentamente alguém.
Quem? O algoz loiro ou o negro?
Apertou os olhos fazendo força pra lembrar. Deu-se conta:
Nenhum dos dois!
Esmurrara o segurança! O segurança que surgiu pra tirar os dois brigões embriagados de cima dele! Quando o segurança, um sujeito gigantesco de cabeça raspada afastou os bêbados espancadores, Berilo estava tão desnorteado pela surra que pensou que fosse mais um agressor, e sem pensar duas vezes, esmurrou com toda a força o rosto do segurança, que enfurecido, arrastou-o até o lado de fora do clube e o empurrou pra rua! Por isso saíra cambaleante da danceteria, pois fora empurrado quase escada abaixo.
Montara sua linha de tempo. Sabia, agora, por que estava em tão mal estado. Mas... Como começara a briga? Por que os beberrões agressivos o haviam atacado?
Ficou fazendo força pra lembrar quando ouviu uma voz atrás de si chamá-lo pelo nome:
-Berilo?
Que voz feminina era aquela? De sua irmã? Ou era da prima de seu cnhado, a Jenifer? Não... Não, não era de nenhuma das duas, outra gaveta desarrumada de seus aruivos de memória recente se abriu. Era Manoela!
Quem era Manoela?
Bem, Manoela era convidada da festa, colega de faculdade de Jáder, seu cunhado, era uma moça loira, baixinha, com um rosto bastante distinto, e um sorriso lindo.
Ela conversara com Berilo desde que ele tocara em seu cabelo, e dissera, em tom de brincadeira, que ela estava queimando o filme bebendo só coquetel de frutas. Quando ela foi replicar, viu que ele bebia a mesma coisa.
Haviam falado sobre muitas coisas, cinema, literatura, quadrinhos, música, os veraneios de infância dele em Quintão, as viagens dela pelo interior, e ele, um solitário rabugento de carteirinha, sentiu aquele calorzinho gostoso e quase inédito dentro do peito enquanto conversavam. Quando ela olhou o relógio e disse "Nossa, quase três horas!", ele sentiu morrer um pouquinho por dentro, e se sentiu ridículo por ter experimentado aquela sensação. Tanto que nem teve coragem de dizer que adoraria vê-la de novo, ou pedir o telefone dela pra saírem e ir a algum lugar onde pudesse, me fato, ouvir um ao que o outro falava.
Quando ela disse que ia tomar um último drinque antes de ir, ele a acompanhou na esperança de que ela, talvez, o houvesse achado minimamente interessante e quisesse, ao menos, seu MSN.
Foram ao balcão do bar apanhar mais um coquetel de frutas e foi quando o desagradável bêbado loiro a empurrou para furar a fila. Ela reclamou, o sujeito foi grosseiro, e Berilo se viu na obrigação de intervir, o que acarretou todo o ocaso que resultou em sua carcaça demolida ensanguentada e dolorida de agora.
A dor porém, desapareceu quando ele viu Manoela, ela se agachou diante dele e sorriu om os lábios embora tivesse as sobrancelhas erguidas até o meio da testa, mostrando tristeza e compaixão.
-Meu Deus, olha só pra ti, guri. Que horror... Tu quer ir ao hospital? Eu vou contigo.
-Não, que é isso - Berilo começou a replicar após constatar com o tato da língua que seus dentes estavam todos no lugar. - Tu disse que tá tarde, que precisava ir...
-Não, não, o mínimo que eu posso fazer é te levar ao hospital, se não fosse por ti, aquele cavalo podia ter me atacado. Consegue andar até o ponto de táxi?
-Consigo. - Assentiu Berilo levantando-se com dificuldade amparado por Manoela.
Ela o conduziu ao táxi e perguntou:
-Tu quer que avise a tua irmã e o Jáder?
-Não, não precisa, é aniversáio dele, deixa eles aproveitarem, amanhã eu conto.
Entraram o carro, ela ordenou ao motorsta:
-HPS, moço, rapidinho, por favor.
O motorista assentu após arregalar os olhos pro estado de Berilo. Manoela segurou a mão inchada e escura dele, e a afagou de leve.
-Sabe... Apesar de tudo, isso foi bom. Eu meio que... Bom, agora tenho um pretexto pra conversar mais um pouco contigo.
Berilo sorriu enquanto afagou de volta a mão de Manoela. Olhou-se no espelho do carro, o lábio inchado, o nariz torto, o olho preto.
"Valeu totalmente a pena", constatou enquanto sentia a maciez da pele de Manoela entre as suas mãos.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Certeza


O Antero estourou conversando com o Laerte:
-Tu me irrita muito de vez em quando, velho.
-É...
-Por que, na real, mesmo, tu fica metendo essa banca de senhor de si, de que não acredita em nada, que não tem medo de nada, mas isso é uma puta de uma desculpa pra não precisar se entregar de verdade pra nada. Agora tu tá nessa de "não sei, não pode, não acho", isso aí é bobagem, velho. Sabe quanta gente queria tá no teu lugar? Com esse mesmo tipo de perspectiva?
-Não. Não conheço números confiáveis a respeito da quantidade de masoquistas do mundo, hoje.
-Cala a boca, que masoquismo, velho? Que masoquismo? Por que tu não tem certeza? Por que tu não sabe se é recíproco, se é de verdade? Olha, vai ser como tiver que ser, sabe? Essas coisas são assim, mesmo. Se tu não sabe, se tu chegou a acreditar que fosse, e de repente, já não tem mais tanta certeza, sai dessa, aproveita as tuas férias, vai fazer outra coisa, quebrar as canelas de alguém lá no Marinha fingindo que é futebol, correr no Gasômetro, ver um jogo do Gauchão, vai no cinema ver um dos indicados ao Oscar, vai cortar esse cabelo, aparar essa barba de mendigo, terminar de ler teu livro sobre Hiroshima e Nagasaki, ou o Homem-Aranha: Ruas de Fogo, que tu catou no sebo, vai jogar assassin's Creed Brotherhood, FIFA 2011, ou aquela porra daquele God Of War que tá pegando poeira embaixo da TV nova que tu vai passar o ano inteiro pagando, vai jogar RPG com os teus amigos, ou brincar com o teu cachorro na praça, faz qualquer uma dessas coisas já que tu parece não ter certeza de nada, nunca.
-Tem razão... Pode ser isso, mesmo. Valeu, tchê. Só duas coisas: Não são as coisas das quais eu não tenho certeza que me incomodam. São aquelas das quais eu tenho. Quanto ao jogo... Vou jogar Assassin's Creed, talvez FIFA. Deixa o God of War pegar poeira mais um tempo.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Tá f...


-E aí?
-Não sei...
-Como, não sabe?
-Não sei... Não sei, mesmo.
-Mas o que tu acha?
-Acho que pode ser...
-"Acho que pode ser"? Mas que porra é essa?
-Sei lá...
-Porra, velho...
-Pois é... Desculpa.
-Tá, vamo tentar diferente, então. O que tu gostaria?
-...
-Vai, velho. Fala, aí. O que tu gostaria?
-Gostaria que sim.
-Tá fodido.
-Tô... Não é ótimo?

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Resenha Cinema: Bravura Indômita


Eu nunca vi o Bravura Indômita original, de 1969, estrelado por John Wayne, e que rendeu a caubói mal-encarado seu único Oscar, de melhor ator. Também nunca li o livro que deu origem ao filme, ou o folhetin de revista que deu origem ao livro, logo, não sei como o Bravura Indômita de 2010, levado às telas pelos irmãos Cohen (Dos ótimos Fargo e Onde os Fracos Não Têm Vez) funciona enquanto remake, o que eu sei é qe, enquanto faroeste desconstrutivista, ele funciona à perfeição.
Desconstrutivista por que, á exemplo de outros clássicos do gênero como o brilhante Os Imperdoáveis de Clint Eastwood, esse Bravura Indômita não alivia nenhum dos mitos do velho oeste, e não leva livre nem a figura de seu herói, o Reuben "Rooster" Cogburn brilhantemente vivido por Jeff Bridges, pra se ter uma ideia, na primeira aparição do herói, ele está trancado na latrina proclamando em alto e bom som com sua fala arrastada e pesado sotaque que seu intestino não funciona como um relógio.
No filme, a jovem e verborrágica Mattie Ross (Hailee Steinfeld, excelente!) viaja até Fort Smith, Arkansas, para recuperar o corpo do pai, assassinado por um funcionário bêbado, Tom Chaney (Josh Brolin, coadjuvante de luxo.). A jovem Mattie descobre, também, que o assassino escapou, e dirigiu-se a território indígena, fora da jurisdição do xerife local. Sedenta por justiça para seu pai morto, resta a Mattie apenas tentar encontrar um xerife federal que tope caçar o bandido. Aí entra Cogburn, um velho "marshall" conhecido por ter uma lista de mortes muito mais longa do que a de prisões, e pela sua crueldade para com aqueles que cruzam seu caminho.
Além da improvável dupla, junta-se a caçada LaBoeuf, (Matt Damon) afetado ranger texano que também caça Chaney, procurado no Texas pelas mortes de um senador e seu cachorro. LaBoeuf, com sua roupa repleta de franjas, esporas barulhentas e voz anasalada, escapa de ser um personagem cômico por conta da interpretação de Damon, que é ótima, e do prisma escolhido pelos diretores pra contar a história, onde há lugar para humor, sim (Lá está o urso curandeiro, que não me deixa mentir), mas não às custas de seus protagonistas, que são os responsáveis pelos melhores momentos do filme.
É com essa toada que os Cohen contam um western que beira a perfeição, com personagens falhos, cheios de defeitos, e desprovidos de idealismos holywoodianos, amargos e duros, como o terreno que eles percorrem em sua caçada.

"-Senhor Cogburn, em seus quatro anos como xerife federal, em quantos homens o senhor atirou?
-Atirei, ou matei?
-Vamos nos resringir a mortes para termos um número mais palpável.
-Doze, ou quinze...
-Doze ou quinze... Foram tantos que o senhor nem sequer é capaz de lembrar. Bem, eu tenho um relatório acurado, aqui.
-Bem, nesse caso, acredito que contando os garotos Walthon, foram vinte e três."

Resenha Cinema: O Vencedor


Quando a gente vê o trailer de O Vencedor estala a língua no céu da boca e pensa "Ah, que ótimo, mais um filhote de Rocky.", e não há nada de errado em se pensar isso, afinal, ali está a história do boxeador trampolim que aposta no coração, no esforço e na superação para se tornar um campeão de verdade, o típico filme dramático-esportivo ao qual nos acostumamos durante anos de cinema. É assim, com essa expectativa que sentamos no cineplex mais próximo se tudo o que soubermos sobre o filme se resumir ao trailer. Se for o caso, podemos sair decepcionados, pois O Vencedor não é, exatamente, o drama esportivo de sempre. Se há ali a trajetória de Micky Ward(Mark Wahlberg) tentando superar suas limitações e se tornar campeão dos meio-médios, se essa é a história carregada dos clichês de sempre, se parece que o que irá salvar o filme será a gracinha Amy Adams falando palavrão e usando pouca-roupa, se Mark Wahlberg não consegue mostrar três expressões diferentes durante toda a projeção, isso é o de menos.
É o de menos por que a história que realmente interessa em O Vencedor, é a da família de Ward, em especial sua mãe controladora, Alice Ward (Melissa Leo, genial), e de seu irmão, Dickie Ecklund (Christian Bale, um monstro), ex-pugilista iciado em drogas que treina o irmão enquanto roda um documentário sobre a sua vida.
A Alice de Melissa Leo é uma personagem asquerosa. É o típico lixo branco norte-americano do qual sentimos vergonha alheia e a quem culpamos pelos dois mandatos de George W. Bush, controladora, manipuladora, afetada e pretenciosa, ainda assim a interpretação de Leo é tão sensacional que não conseguimos deixar de ansiar para vê-la na tela por mais algum tempo, é a personagem que adoramos detestar, e que é perfeita até a raíz dos cabelos descoloridos.
O Dickie Ecklund de Bale poderia ser um persongem fácil, daqueles que tem até em dramalhão feito direto para a TV, mas nas mãos do Batman, ele ganha uma aura de grandeza auto-destrutiva de quem está indo pro buraco, mas ainda guarda a majestade de tempos idos, que se mantém esperançoso com relação ao futuro por que teve um passado brilhantes. não importa quão negro seja o presente.
No final das contas, O Vencedor é sobre aceitar os defeitos de quem amamos, e encontrar nossa própria voz, o recado é dado com competência pela trupe do diretor David O. Russell, que sabe dosar as tintas no drama fácil, e centra fogo no que realmente interessa enquanto deixa os grandes atores como Bale e Leo trabalharem e Mark Wahlberg ser confuso e irritado à vontade com seu abdôme perfeito.
Ah, um medidor de talento ótimo é a sequência durante os créditos, em que os verdadeiros Ward e Ecklund aparecem lado a lado. Ali se vê o quanto Christian Bale virou Dickie, e o quanto Wahlberg foi.. Bom... Wahlberg.

"Sou eu quem vai lutar. Não você, não você e não você."

Resenha Cinema: Cisne Negro


Todo mundo é meio fã de Darren Aronofsky. Não tem como olhar os filmes do sujeito e não pensar em o quão ótimos eles são. Até os filmes de menor expressão, ou onde ele não acerou a mão, valem uma conferida, como Árvore da Vida, por exemplo. O que dizer então de filmaços como Pi, Réquiem Para Um Sonho e O Lutador? Tremendos longas que exploraram facetas obscuras da alma humana em shows claustrofóbicos e perturbadores. Esse é o terreno de Aronofsky. É onde ele trafega com mais habilidade, é onde ele se diverte e se sente á vontade, e é onde se desenrola a trama de Cisne Negro.
Trama essa em que conhecemos Nina (Natalie Portman, perfeita.), uma doce e delicada bailarina de uma companhia de dança de Nova York que tenta conseguir o papel principal em uma releitura de O Lago dos Cisnes, o que pode ser seu grande momento.
Com muito esforço ela obtém o papel de seu diretor Thomas (Vincent Cassel, maneiro e meio canastra), que vê nela potencial de sobra para interpretar o cândido cisne branco, mas que não tem certeza se ela tem as qualidades para encarnar o sedutor e perverso cisne negro.
Pressionada por Thomas, pela mãe super-protetora (Barbara Hershey, bem convincente), pela antiga dona de seu papel (Winona Ryder, em ponta), e pela chegada de uma bailarina rival (Mila Kunis), Nina começa a vergar sob a pressão das cobranças, e embarca em uma sombria jornada de auto-descoberta enquanto tenta descobrir se possui, de fato, o que é necessário para se tornar a estrela da peça.
É a deixa para Aronofsky nos empurrar atrás de Nina, e nos deixar na ponta da cadeira enquanto usa o drama da bailarina pra ilustrar sua história de até onde o ser humano está disposto a ir em busca de seus objetivos com tintas de filme de terror e suspense dos bons.
Não é um caminho tranquilo, e Aronofsky usa um tremendo arsenal de truques visuais para tornar a trama mais e mais claustrofóbica e perturbadora, arrancando de Natalie Portman a melhor performance de sua carreira e entregando um filme que se perfila ao lado do melhor de sua produção, e merece todas as premiações que recebeu até aqui e as que ainda deve receber.

"Eu só queria ser perfeita..."

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Sonho mundano...


-Se tu pudesse realizar um sonho na vida, amor, qual seria?
-Na vida...? Puxa, não sei...
-Tipo, se te oferecessem e tu pudesse escolher, o que seria a coisa que tu mais iria querer?
-Ah... Sei lá, onisciência talvez... Paz na terra? Isso era bom, certamente demandaria o fim da humanidade...
-Não... Não é tipo gênio da lâmpada. É uma coisa mais palpável. Um lance mais mundano...
-Ah... Putz, sei lá... Não sei, mesmo. O que eu iria querer... Ah, já sei. Eu ia querer saber dançar!
-Quê?
-É, dançar, sabe? Queria ser um baita dançarino.
-Dançarino?
-Isso.
-Se tu pudesse escolher, tu iria querer ser um Fred Astaire?
-Não... Não o Astaire...
-Se tu pudesse escolher qualquer coisa, tu iria querer ser um Gene Kelly?
-Não, não, não, primeiro, eu não pensei no Gene Kelly, segundo, não era qualquer coisa, por que alguém me disse que as regras demandavam alguma coisa palpável.
-E a tua ideia de palpável é dançar feito o Michael Jackson?
-Eu... Eu falei em Michael Jackson? Por acaso eu mencionei o Michael Jackson?
-Não, mas tu fala em dançar, eu penso no Astaire, no Kelly, no Jackson, no Barishnikov...
-Não, eu não queria... Segundo as tuas regras, eu tinha que escolher algo palpável, eu jamais iria conseguir dançar que nem esses caras aí. Eu pensei em algo, conforme me orientaram, mais acessível. Eu queria saber dançar como o Napoleon Dynamite.
-Quem?
-O Napoleon Dynamite, do filme, aquele...
-Que filme?
-Hã.... Napoleon Dynamite?
-O nome do filme é esse?
-É.
-E o nome do personagem é esse?
-Sim!
-Com quem é esse filme, meu Deus?
-Com o Jon Heder e o Efren Ramirez.
-Não conheço... Quem é que dança?
-O John Heder.
-Ele é bailarino?
-Não, aí é que tá a beleza da coisa. Ele dança só uma vez, ao som de Jamiroquai que é uma bandinha bem meia boc...
-Adoro essa banda!
-Tem umas músicas bem boas. Enfim, o Napoleon dança esse número ao som de Just Dance, e é catársico. Eu queria dançar que nem ele, é o que eu iria querer.
-Hm...
-E tu, meu anjo? O que tu iria querer?
-Nada não...
Ela não disse mais muita coisa. Não ficou de cara amarrada por que não era do feitio dela, ela era doce demais pra esse tipo de coisa, mas alguma coisa claramente a deixara chateada. Quando se despediram em frente à casa dela, ele a abraçou com força como fazia sempre até quase levantá-la do chão, e deu-lhe dois beijos estalados na bochecha e um beijo nos lábios. Ela correspondeu e esboçou um sorriso. Segurou-lhe a mão e entrou em casa. Ele ficou observando ela sumir quando a porta do prédio se fechou. E refletiu, envergonhado, que talvez houvesse sonegado a verdade. Se pudesse escolher qualquer coisa no mundo, não iria querer onisciência, a extinção da raça humana ou as habilidades de dança de Napoleon Dynamite. Iria querer passar o resto da vida com alguém como ela. Alguém que tivesse aquele humor bobo de fazer gargalhar com uma trapalhada, que chorasse ao ver um filme, ou ler uma crônica, que tivesse mãos cúmplices, olhares cálidos, tatuagens de mulher, pernas de menina e lábios acolhedores... Aquele conjunto de idiossincrasias apaixonante em uma adorável embalagem de um metro e cinquenta e poucos.
Ele não disse isso por duas razões: Primeiro, por que sempre teve uma dificuldade abissal de dizer como se sentia. Segundo, por que ela mencionou que o sonho devia ser plausível, e onde estava a plausibilidade e a mundanidade em alguém como ela querer passar a vida com alguém como ele?
Parecia infinitamente mais fácil, ele pensou, um sujeito de cadeira dura como ele dançar com a desenvoltura de um Napoleon.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Razão


Uma pessoa sensata sabe: Tem coisa que não se encontra em qualquer esquina. São coisas raras, bonitas, improváveis... Não são pra qualquer um. Não são fáceis de encontrar, e de tão raras, de tão singulares, vez que outra, cruzamos com elas e nem sequer percebemos, e não tem problema, certo? Pra quê perceber? Não é pro teu bico, tu sabe.
Ou percebemos mas pensamos "Ah, tá... Até parece...", como se fosse impossível encontrar ao acaso tal nível de perfeição. Como se aí tivesse coisa. Como se alguma conspiração aterrorizante em curso fosse a única explicação pra forma como os eventos transcorreram até chegar àquele ponto. Ou é conspiração, e aí escolha o tipo, russos, chineses, a CIA, os templários, skrulls ou a Cosa Nostra, ou então aquelas conjunções astronômicas que desencadeiam fenômenos improváveis pelo cosmo àfora. Alguma explicação tem que ter, só não pode ser otimista. Não por que não exista acaso. Na maior parte das vezes, acaso é tudo o que temos. Mas por que o acaso nunca age em nosso favor, ora bolas. Nós nunca encontramos perfeição por "sorte", nós nunca podemos esperar que em um cursinho pré-vestibular de porte médio, ou em um emprego meia-boca, ou correndo em um parque, ou comprando refrigerante em uma loja de conveniência ou usando uma rede social que praticamente só é utilizada por brasileiros e indianos poderemos ancontrar algo que nos completa, e, se por uma eventualidade encontramos, perfeição nunca corresponde, certo?
Certo. Todo mundo sabe disso. Faz sentido. Ainda assim... Ás vezes dá vontade de não ter sempre que dar ouvidos à razão...

Elevador


Entraram no elevador juntos. Ela linda. Cabelo vermelho, curvas em todos os lugares certos, tatuagens inspiradoras, olhos encantadores. Ele alto, cabelo preto, barba de alguns dias.
Ele segurou a porta para que ela entrasse. Ela perguntou qual era o andar dele.
-Sete, por favor.
Ela pressionou o botão sete, e o nove. Ficou parada à esquerda dele, um passo à frente. Estava quente naquele dia, por Deus como estava quente. Ele suava em bicas, e oscilava o corpo acompanhando o pequeno ventilador preso à parede do elevador acima do painel. Ela tinha na mão um lenço de papel, e com ele limpava as gotículas de suor que espertamente lhe surgiam acima dos lábios apetitosos.
Ele a olhava com olhos gulosos, fixamente. Foi quando se repreendeu em pensamento.
"Te liga, rapaz. Secando a guria com essa cara de Willem Dafoe. Imagina se ela vira? Uma moça bonita dessas, periga apertar o primeiro botão e descer em qualquer andar. Vai pedir socorro, chamar a segurança. 'Um tarado ficou me assediando no elevador, me ajude!', e eu ia ter que escapar do prédio rapelando um fio telefônico, e ia cair, por que nenhum fio telefônico suporta o peso de um homem adulto. E eu ia quebrar todos os meus ossos por que não fui capaz de me contolar e não encarar uma moça bonita no elevador.".
Olhou pra cima, oscilou o corpo olhando pro teto e acompanhando o bailado do ventilador. A moça olhou pra trás. O olhar dela cruzou com o dele. Ele sorriu casualmente e deu uma piscada. Ela voltou a olhar pra frente. Ele fez cara de quem não acreditou.
"Meu Deus do céu. O que que eu tenho na cabeça? Parado dentro do elevador, atrás da guria, ela se vira, dá de cara comigo me esfregando na parede do elevador feito um tarado, e o que eu faço? Pisco um olho. Pisco feito um Ron Jeremy da vida. PelamordeDeus, viu? Se ela descer do elevador antes do nono andar e pedir socorro eu fico e me entrego. Mereço ser preso depois dessa. Uma mulher bonita dessas, com essa cara de séria, me olha e tô eu, encarando o teto, rindo sozinho e piscando. Não dá pra acreditar..."
A moça deu dois passos pra trás e se encostou na parede do elevador também. Era reflexo natural, estava calor, e buscar a área de ação do ventilador era uma ação instintiva.
Ele notou as tatuagens nos ombros dela, viu a maquiagem escura em seus olhos, além de bonita, pensou, era descolada. Maneira.
Ela ergueu os olhos e o encarou, ele ainda a estava olhando. Ele o mirava sem dizer nada, as goículas de suor sobre o seu lábio superior se tornavam mais e mais convidativas, ela era linda. Ele queria beijá-la, queria as gotículas de suor sobre o lábio dela coladas acima de seu lábio, queria sentir o sabor de seu hálito, ela o estava olhando sem parecer escandalizada ou ofendida. O que ele devia fazer? Se abaixar, já que era bem mais alto, e beijá-la de surpresa? Sem dizer palava, como se fosse um tipo sedutor? Nem sabia se era isso que um tipo sedutor fazia, nunca fora um tipo sedutor. Estava olhando pra ela sem parar já a vários segundos, foi quando ela inspirou com os lábios entreabertos, e disse:
-É teu andar.
E indicou com o queixo a porta aberta do elevador no sétimo andar. Ele balbuciou um "Ah, é." e sorriu constrangido enquanto agradecia. Quando a porta do elevador se fechou atrás de si, ele bateu com a mão espalmada na testa e suspirou amaldiçoando a própria estupidez.
"Claro. Quando que uma mulher daquelas ia estar me dando bola? Quando que ela ia me olhar de um jeito que não fosse curiosidade mórbida? Mulher que nem essa anda com uns caras maneiros, fortões e cabeludos cheios de tatuagens de caveira, dragão, kanji e tribal, anda com nêgo de jaqueta de couro, que toca guitarra e que escuta megadeath. Mulher que nem aquela nem percebe a existência e sujeito de óculos, e blazer de veludo, que escuta Beatles e lê Homem-Aranha e Calvin. Essetipinho de nerd nem merece encontrar o amor, mesmo, viu?". E foi tratar de seus afazeres no sétimo andar.
A moça fez o que havia ido fazer no nono andar. Depois foi pra casa, onde conversou brevemente com uma amiga ao telefone. Falou do seu dia quando a amiga perguntou como fora, mas não mencionou que teve vontade de beijar um sujeito algo nerd dentro de um elevador, nem que ele pareceu querer beijá-la, também. Jantou e viu um pouco de TV antes de dormir sentindo um vazio no peito, sem saber, que em algum lugar num bairro não muito distante, um nerd fazia a mesma coisa.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Sorvete de Alpino


-Eu ainda vou comer sorvete de Alpino com aquela mulher.
Foi o que declarou Everaldo, olhando para o infinito com cara de quem estava muito concentrado. Parecia até a Scarllet O'hara em ...E O Vento Levou, quando declarava que jamais sentiria fome de novo, lembra? Não? Tudo bem, eu entendo, aquele filme é velho pra danar, mesmo, mas é bacana.
Enfim, o Everaldo disse isso sentado na mesa de sempre, no bar de sempre, com as bolachas de copo de sempre sob os copos de chope de sempre enquanto olhava uma mulher bonita que conversava com suas amigas a alguns metros de distância. O Paulo Roberto, que estava, como sempre, sentado com o Everaldo à mesa, perguntou:
-O que tem isso de comer sorvete de Alpino?
O Everaldo, parecendo ofendido por ter sido arrancado de seu devaneio, olhou pro Paulo Roberto:
-Porra. Como assim, "que tem isso", pê erre?
-Que tem isso? O que tem de especial em comer sorvete com a guria?
-Puta que o pariu... Tô vivendo entre selvagens, velho... Só pode. Não é simplesmente comer sorvete, rapaz, é comer sorvete de Alpino, especificamente!
-Tá, e o que tem de especial em comer, especificamente, sorvete de Alpino com aquela guria?
-Tu já viu a embalagem do sorvete de Alpino, caralho?
-Não me lembro...
-Ah, São Crispim... É um copo grande, dourado, deve ter um litro, um pouco menos, de capacidade.
-Tá, e daí?
-E daí, que é um sorvete perfeito pra comer á dois, pê erre. É um copo que pode ser seguro com uma das mãos enquanto, com a outra, se empunha a colher. É uma embalagem elegante, a porção não é pequena a ponto de tu passar por pão-duro que nem aquelas pequenininhas e afetadas do Häagen-Dazs, que é coisa de comunista e de veado, também não é uma porra grande a ponto de tu parecer um glutão, o sorvete é muito bom, e pode-se, inclusive, dividir as tarefas em tu segurar o pote, e ela a colher, aí, pê erre... Ah... Aí é um caminho sem volta... Aí é amor pra vida-toda...
-O quê? Por quê?
-Por que aí, ela vai ter que te dar sorvete na boca, entende? Com a mesma colher que ela estava usando pra comer, pê erre... E esse tipo de intimidade só se tem com quem se ama muito...
-Tu tem algum distúrbio.
-Vai tomar nesse teu cu... Tô te dizendo, pê erre. Sorvete de Alpino com a mesma colher. É esse o maior têrmometro que um amor pode ter.
Paulo Roberto fez cara de pouco caso. Ficou mais um pouco com o Everaldo, terminaram suas bebidas e saíram juntos, se despediram quando as casas de um e de outro já não estavam pro mesmo lado. O Paulo Roberto chegou em casa, tomou banho, e mudou de roupa. Foi até a casa da Carolina, sua namorada. No caminho, parou em um mercado para comprar um vinho. Do lado da prateleira dos vinhos havia um freezer de sorvete, e, na prateleira, ele pôde distinguir o pote dourado de Alpino. Resolveu experimentar e ver se era tão bom quanto o Everaldo alardeara.
Chegou á casa de Carolina, beijou-a, e foi largar as compras na cozinha. Ela havia preparado lasanha. Comeram enquanto conversavam sobre seu dia. Depois do jantar, Paulo Roberto ajudou Carolina a lavar a louça, e foram para o sofá assistir um filme. Enquanto ela colocava o DVD no aparelho, ele foi até a cozinha e apanhou o sorvete, e uma colher. Voltou à sala, e Carol o olhou com cara de surpresa lhe perguntando o que era aquilo:
-Vai comer esse sorvete todo sozinho?
-Não, né boba? Trouxe pra nós dois.
-Ah, então me dá aqui que eu vou servir pra gente. - Ela disse, tomando-lhe o pote e retornando à cozinha, de onde saiu minutos depois com o sorvete servido em taças, formando redondíssimas bolas cobertas de calda de caramelo e com um bijou em cima. Entregou ao Paulo Roberto e sentou pra ver o filme. Caso 39. Ruim pra danar. O sorvete era bom, mesmo, mas não tinha nada de especial. Talvez, pensou Paulo Roberto, tivesse faltado o lance de comer na mesma colher.
Despediu-se de Carolina no portão com um beijo, sem conseguir deixar de se perguntar se ela, de fato, o amava.
Um dia desses ainda matava o Everaldo.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Não vai ser fácil.


Eu não vou ser fácil, sabe? Não vou, mesmo. Eu vou ser chato, cheio de manias, irritante, bobo. Eu não vou gostar das tuas amigas, não vou ser amigo do teu ex-namorado, não vou querer conhecer a tua família, nem te apresentar à minha família. Eu não vou gostar dos filmes que tu gosta, não vou mudar meu gosto musical por tua causa, não vou parar de fazer coisas nerds, não vou largar o RPG, o futebol, nem vou parar de jogar video-game, ler gibis, e ver filmes PG-13. Eu não vou mudar a forma como eu me visto, não vou cortar o cabelo diferente, não vou mudar a armação dos meus óculos, nem vou jogar fora aquele calção e aquela camiseta que estão velhos e furados, pois eles são o meu pijama, e qualquer outra roupa vai levar anos pra ficar tão confortável quanto eles.
Eu não vou parar de comer porcaria, nem vou beber socialmente pra te acompanhar. Eu não vou mudar o meu perfume, eu não vou mudar o som da minha risada, eu não vou parar de tirar sarro dos vizinhos, não vou me tornar mais "light", nem vou usar a expressão "light", e não vou revelar que não era niilista, misantrópico e pessimista como parecia no começo. Eu não vou parar de rolar na grama com o meu cachorro, e vou continuar achando que gatos são metidos a besta e cães pequenos são histéricos. Eu não vou parar de fazer piadas sobre tudo, inclusive à respeito da nossa diferença de altura, e elas não se tornarão mais engraçadas com o tempo.
Não vai ser fácil. Eu ainda vou ver as reprises de Friends, ainda vou querer ver o Discovery Channel, e não vou nem sequer chegar perto da MTV e da VH1...
E, mais importante, eu não vou mudar de ideia a teu respeito. Vou te achar perfeita, te beijar de surpresa sempre que tiver a chance, te segurar pela nuca, não vou manter as minhas mãos longe do teu corpo enquanto estivermos perto, e vou ser irremediavelmente louco por ti...
Então, pensa bem. Não é negociável.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Resenha Cinema: Scott Pilgrim Contra o Mundo



Eu tinha vontade de assistir Scott Pilgrim desde que soube que haveria o filme. Não que eu seja um tremendo fã dos gibis de Bryan Lee O'malley, não. Primeiro por que eles só foram publicados aqui no Brasil no final do ano passado, segundo por que eu sou fã de gibi mainstream, Homem-Aranha, X-Men, Calvin & Haroldo, Mafalda, não sou descolado o bastante pra gostar de quadrinho underground.
Nem um pouco.
O que me levou a querer ver Scott Pilgrim, foi o nome do diretor, Edgar Wright, que fez, ao lado de Simon Pegg e Nick Frost, duas das comédias britânicas mais divertidas e bem sacadas dos últimos anos, os geniais Todo Mundo Quase Morto (Shaun of the Dead) e Chumbo Grosso (Hot Fuzz, Eu ainda mato o desgraçado que traduz os nomes dos filmes pro mercado brasileiro...).
Foi pensando nisso que tive vontade de ver o filme.
E a minha expectativa só crescia conforme o longa estrelado pelo Michael Cera virava hit em festivais ao redor do mundo, sendo, inclusive, ovacionado na San Diego Comic-Con, a Meca do entretenimento nerd.
Porém, a despeito do hype, dos elogios e de todo o barulho, a produção não foi bem de bilheteria. Ficou um tempinho em cartaz no centro do país, e eu já havia perdido as esperanças de ver o filme em tela grande, e me conformado em assistí-lo em DVD ou Blu-Ray daqui a alguns meses.
Até que, na semana passada, Scott Pilgrim silenciosamente desembarcou numa daquelas salas de cinema alternativas de Porto, e eu pude, ontem, assistir ao filme.
Já nos primeiros minutos de projeção é fácil ver por que o filme foi tão elogiado.
De cara o logo da Universal aparece com imagem e música que remontam a jogos de video game de 16 bits.
Corta e entra o tema de Zelda - A Link to the Past enquanto a história é situada no distante reino de... Toronto, no Canadá.
Genial.
Conhecemos então Scott Pilgrim(Cera), jovem comum, baixista da banda Sexy Bob-Omb, que se recupera de um fora devastador saindo com uma menina do ensino médio, a fofura Knives Chau (Ellen Wong), ele é, porém, um rapaz volúvel, e, assim que conhece a enigmática Ramona Flowers (Mary Elizabeth Winstead), se apaixona.
Scott acaba sendo correspondido, entretanto, para ganhar o coração da guria dos seus sonhos, ele deve superar em combate os sete ex-namorados malignos da moça.
Começa aí a montanha russa de referências de Scott Pilgrim, que flerta descaradamente com video games (Tem até uma "barra de mijo", quando o personagem quer ir ao banheiro), quadrinhos (com onomatopéias e recordatórios pulando por todo o lado), e animes (A estética dos combates de Scott é uma versão live-Action das lutinhas de todos os desenhos japoneses desde sempre).
É maneiro, é, mas não seria, sozinho, motivo pra todo o falatórios e os elogios que Scott Pilgrim recebeu. O bacana em Scott Pilgrim é que mesmo em meio a toda a histeria e afetação de inúmeras partes do longa, ele ainda é uma história sobre Scott, e a hora da verdade, em que o jovem precisa deixar de agir como adolescente e aceitar as responsabilidades por seus atos como um adulto.
Os coadjuvantes (ótimos, com destaque para o colega de quarto gay Wallace, de Kieran Culkin) que surgem em toda a parte, por exemplo, não são meros acessórios, mesmo aqueles que passam quase despercebidos pela tela tem algo importante a acrescentar à jornada de Scott em busca do coração de Ramona e em sua luta contra os sete ex-namorados malignos, todos divertidíssimos com destaque para Todd Ingram, o vegan-louro-burro de Brandon Routh.
Talvez Scott Pilgrim tenha ido mal nas bilheterias por não ser um filme fácil, um filme com o qual todos podem se identificar, a estética dele é de fato, meio hermética, inacessível à pessoas que não leram gibis ou jogaram super-NES, mas no fundo, trata-se de uma comédia romântica. Uma comédia romântica anabolizada e nerd, mas nem por isso ruim.
Muito antes pelo contrário.

"Nós somos os Sexy Bob-Omb e estamos aqui para ver Scott enfiar seus dentes pra dentro! Um-dois-três-quatro!"