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quinta-feira, 29 de março de 2012

Esperança


Andava pela rua com seu cachorro, o Miguel. Era um cachorro grande, felpudo, com essas caras amistosas que certas raças de cachorro têm. Apesar do tamanho avantajado, o animal esbanjava simpatia, de modo que as pessoas raramente se assustavam com o seu tamanho, apenas admiravam-lhe a beleza.
Miguel gostava disso. Uma vez que não era bonito e nem tinha ganas de ser simpático, agradava-lhe saber que seu cachorro fazia esse papel em seu lugar. Quem sabe fazendo-o parecer mais caloroso...
O cachorro, grande que era, requeria ao menos dois passeios diários. O que Miguel fazia de bom grado. Levava a sério a máxima de que o cachorro é o melhor amigo do homem, e não deixaria seu melhor amigo na mão. Sair com o cão era um prazer para Miguel.
E, naquela quarta-feira ensolarada mas de temperatura amena, Miguel saiu com seu cão pela rua. Agradava-lhe ver a alegria do animal enquanto andava, faceiro, cheirando árvores e arbustos pelas calçadas da cidade. E ele vinha, com um sorriso no rosto, curtindo uma das mais genuínas felicidades que conhecia.
Sair com seu cachorro era uma das poucas coisas que traziam felicidade a Miguel. Não era sempre assim. Mas ele passava por um momento difícil na vida. Família, dinheiro, amor, o mundo de modo geral... Tudo parecia errado naqueles dias. De modo que era uma atividade terápica sair a passear com o cachorro.
Entretanto, na noite anterior, Miguel sonhara com coisas conturbadas, que lhe trouxeram à memória lembranças vívidas de coisas que ele prezava demais, mas não tinha mais consigo. A dor que Miguel sentiu ao acordar de madrugada era violentamente física. Mas ele sabia que originara-se em seu coração.
Continuara com seus afazeres, tentara não pensar a respeito, mas não funcionou. A sensação de perda e miséria fincara-se na mente de Miguel, que saiu com seu cachorro na esperança de espantar a tristeza, mas mesmo ali, vendo seu melhor amigo banhado pelo sol, não conseguia se alegrar.
Estava tomado de melancolia e de revolta.
Ao passar por uma rua adjacente à sua própria, viu crianças humildes batendo bola. Ao passar por elas, todas pararam o jogo, e correram para afagar o cachorro.
O animal, porém, fez pouco caso das carícias, ansioso que estava por explorar a rua. As crianças elogiaram a beleza do cachorro, a maciez de seus pelos e seu bom comportamento, quiseram saber de que raça era, e qual seu nome, e porque ele não fazia festa.
Miguel respondeu todas as perguntas com paciência e um sorriso esboçado com esforço:
-É um golden. Chama-se Heródoto. E não faz festa pois está ansioso por esticar as patas, já que ele e eu moramos em um apartamento pequeno.
Um dos meninos, ainda afagando o cachorro, sorriu sinceramente enquanto olhava pra Miguel:
-A gente também é pobre, tio.
Não foi a súbita compreensão de como eram insignificantes seus problemas no plano cósmico, nem tampouco uma epifania de gratidão por tudo de bom que possuía comparado àqueles humildes meninos que arrancou o primeiro sorriso sincero de Miguel em semanas. Não... Nada disso.
Foi a franqueza da solidariedade gratuita. Sem pedido ou súplica. Quiçá sem merecimento, até, endereçada a ele.
Miguel chegou a ter, ainda que brevemente, a esperança de que, quem sabe... Nem tudo estivesse perdido.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Tem Alguém...


Alguém se preocupa contigo o tempo todo.
Sério.
Tem alguém sempre pensando em ti.
Sempre, de forma praticamente ininterrupta.
Desejando que tu esteja bem. Pensando em como foi o teu dia... Tem alguém imaginando se tu está bem no trabalho. Se está com saudades. Se tem se divertido. Se tem sorrido e cantarolado.
Tem alguém imaginando se tu vai ganhar aquele presente maneiro. Se tu tem comido direito. Se tem dormido bem. Se tem passado frio...
Tem alguém preocupado contigo. Tem alguém incapaz de te tirar da cabeça. Alguém que quer saber de ti não importa o quê. Alguém querendo saber se estão te tratando direito e se tu está feliz.
Tem alguém que anda na rua, e que pensa se aquela pessoa na lojinha de brinquedos estava procurando algo pra te dar. Que pensa se vocês irão a um restaurante legal ou à uma lanchonete apenas OK. Alguém que pensa se tu achou o cinema 3-D tão maneiro quanto tinha achado o tradicional. Se tu olha pros lados antes de atravessar a rua, e se tem se exercitado na beira do rio...
Tu está no pensamento de alguém. Sempre.
Isso, porém, não altera o fato de que a vida, na maior parte do tempo, é chata pra caramba.

terça-feira, 27 de março de 2012

Fé?


No meu aniversário, pouco mais de um mês atrás, um grande amigo meu, particularmente religioso, me mandou uma mensagem desejando paz, felicidade, amor, saúde e principalmente fé...
"Principalmente fé"...?
Sério...?
Que bobagem é essa? Falando sério, quem é que precisa de fé? Existem cinco mil coisas que qualquer ser humano com dois neurônios funcionais na cabeça classificariam como mais importantes do que fé. O pior de tudo é que esse tipo de manifestação nem se restringe à pessoas que tiveram graves problemas e pensam que um Superman invisível lhes ajudou e ainda rouba o mérito de quem realmente merece. Tome por exemplo as pessoas erguem as mãos pro céu e choramingam "Obrigado, meu Deus, por ter me curado", enquanto o médico que se esfalfou estudando pra saber o que fazer para ajudar um ignóbil com problemas de saúde vira acessório.
Fé é um bem supervalorizado, uma pataquada que enfiam na cabeça de algumas pessoas que estão desesperadas ou são ineptas o suficiente pra querer que uma entidade resolva seus problemas por ela.
Fé, por definição é a capacidade de acreditar sem sombra de dúvida. É a firme opinião de que algo é verdade sem qualquer critério objetivo de verificação apenas pela absoluta confiança que se deposita em determinada ideia ou fonte.
Francamente... Isso parece algo válido? Parece algo em que se deva depositar qualquer tipo de expectativa?
Quem é que te pede confiança cega sem oferecer nada em troca exceto uma ideia de conforto subjetivo? Porque no final das contas é isso, não é?
Nada do que a fé oferece é prático. Nada é palpável. O que a fé te dá é uma forma de aceitação embutida, até prova em contrário (Que não haverá, já que a fé demanda a exclusão da dúvida que poderia levar à verificação empírica), em uma mentira...
E uma mentira das mais cruéis, atada a um paradoxo de que, quem tem fé, não precisa ver, e quem não tem, não vai ver...
Fé é um grilhão. Uma ferramenta de aceitação. Um atestado de derrotismo. "Tudo está errado? Vai melhorar... Tenha fé..."
Francamente?
Não, obrigado.
Estou bem com ceticismo e descrença. Ao menos nesses campos eu tenho certeza do que posso, ou não, conseguir.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Quadrinhos: Sandman Apresenta 2: Os Caçadores de Sonhos


Ainda está pra ser escrita uma série de quadrinhos do naipe de Sandman. A criação máxima de Neil Gaiman que fez muita gente perceber que quadrinhos podiam ser muito mais do que um produto para adolescentes cheios de hormônios segue sem paralelo no mercado editorial mais de dezesseis anos após o fim da série escrita por Gaiman.
É, portanto, sempre um prazer ímpar encontrar algo novo de Gaiman, especialmente se for uma história que nos leve de volta ao Sonhar e nos dê uma oportunidade de revisitar alguns dos personagens e conceitos aos quais nos afeiçoamos ao longo de quase dez anos de histórias que transitaram entre ótimas e excepcionais.
Essa oportunidade eu tive na sexta-feira, quando, ao passar por uma livraria de que sou cliente, fui avisado pela atendente que haviam chegado "aqueles encadernados" de que eu gosto.
Confesso que, como meu estado de espírito não anda dos melhores, eu me agachei em frente à estante mais por educação do que por interesse de fato em comprar quadrinhos. Mas ao ver o título Sandman e o nome de Gaiman, foi impossível não apanhar o gibi e levá-lo comigo.
O gibi Sandman: Os Caçadores de Sonhos revisita o conto publicado originalmente em forma de livro ilustrado em 1999, e que era uma parceria de Gaiman com Yoshitaka Amano.
Nessa versão, a história ganha um quadrinho de estética mais tradicional com os desenhos de P. Craig Russell.
Na trama, passada no Japão antigo, uma raposa e um texugo fazem uma aposta conrta um monge que vive isolado em um templo obscuro. As marotas criaturas, todavia acabam esbarrando na vontade pétrea do monge, e derrotados, o deixam em paz.
O texugo parte, mas a raposa vê sugir pelo monge um amor proibido.
Ao mesmo tempo, um homem poderoso mas covarde, percebe que só poderá alcançar a felicidade se possuir algo que o monge possui. E a esses personagens soma-se Morfeus, do Sonhar, que pode também ter um papel a desempenhar nessa história.
A arte de Russell, que adaptou o texto original de Gaiman é muito boa, minimalista, anatomicamente correta, casa muito bem com o roteiro e a ambientação da história, dando um ótimo espectro de emoções aos personagens, as cores de Lovern Kindzierski são muitas, mas ainda assim, discretas, jamais carregando a arte, e a história... Bom, é uma história de Sandman escrita por Neil Gaiman e isso resume o nível de excelência que se encontrará ao folhear as páginas.
Uma linda fábula revisitando uma das mais ricas e bem construídas mitologias da história dos quadrinhos, e quiçá, da literatura, encadernada com capa dura e papel bacana no miolo, por um preço convidativo (na casa dos R$25,00), item obrigatório, embora não seja recomendado a corações partidos.

"Não sei se foi você que veio a mim ou eu que fui até você. Nem se foi realidade ou sonho, adormecido ou desperto.
Estou perdido nas trevas de um coração abatido. Se foi sonho ou realidade, que decidamos nesta noite."

sábado, 24 de março de 2012

Ainda não...


O Larry vinha andando pela rua pensando na vida. Havia faltado à pelada da sexta-feira por várias razões, a principal delas é que queria ficar sozinho. Saiu andando pela rua, foi até o estádio Beira-Rio, depois voltou, subiu a Silveiro, passou perto de onde fora o antigo estádio dos Eucaliptos, passou por várias ruas que conhecia e por onde não andara a tempos. Eram raros os momentos em que Larry podia se entregar à introspecção, que, por sinal, era seu estado natural.
Larry pensou em muitas coisas, dos rumos que sua vida tomara à desculpa que daria pra não ir ao casamento de um amigo, e, claro, pensou em Rafaela. O romance entre Larry e Rafaela era dessas coisas que pareciam saídas de filmes água com açúcar ou de histórias românticas fora da realidade. O modo como um combinava com o outro, a forma como o tempo parava quando estavam juntos, a maneira com que Rafaela parecia ser o antídoto pra maioria das neuras de Larry... Tudo tão perfeito que parecia mentira.
Tão perfeito, e terminado de maneira tão abrupta. Tão sem sentido... E por inteira culpa de Larry. Talvez por isso os últimos tempos estivessem sendo tão difíceis, porque Larry, além de ter que lidar com a ausência de Rafaela, ainda tinha que lidar com a própria culpa. A culpa de ter colocado tudo a perder, de ter sido responsável pela própria tragédia, de ter se tornado uma das coisas que mais desprezara em sua vida inteira, e, acima de tudo isso, a culpa de ter feito Rafaela sofrer.
Enfim, Larry parou ao ouvir o ronco do próprio estômago. Nunca fora de comer direito, o Larry. Ao contrário, sempre comera muito mal. Pra ele, comer bem era não se engasgar. Mas desde a última vez em que falara com Rafaela, desde que soubera que, pra ela, ele não era mais senão algo a ser evitado, Larry não vinha conseguindo comer.
Ele também vinha tendo dificuldades pra dormir,e só encontrava um pouco de paz no trabalho, onde seu chefe o infernizava o suficiente para que ele não tivesse tempo de pensar em Rafaela.
Agora, ele sentiu seu estômago roncar, e aquela sensação de leveza no centro gravitacional. Não pôde deixar de achar graça da ironia de um sujeito do seu tamanho sentir os efeitos de alguns dias comendo mal, mas calculou que mesmo para um adulto de suas dimensões, um picles comido ao meio-dia era pouco.
Entrou em uma rua qualquer e foi até uma lanchonete. Apenas um dos lugares que lhe traziam boas memórias de Rafaela.
Haviam tantos... Lanchonetes, hotéis, cinemas, lojas... Tantos lugares onde ela e ele haviam partilhado algo... E eles haviam partilhado tanto. E de uma forma tão especial. Até uma pesquisa improvável no Google Larry partilhava com Rafaela. Ele lembrava de se imaginar sugerindo aos netos que fizessem aquela pesquisa pra ver a foto do avô e da avó relacionada àquele prepóstero.
Na verdade, o único lugar onde Larry não tinha as melhores lembranças de Rafaela, era em no aeroporto, pois jamais estivera lá indo encontrá-la, apenas indo se despedir.
Enfim, chegou em uma lanchonete qualquer, e ao entrar, entendeu o que Rick Blaine quis dizer com "Um sujeito em pé em uma plataforma na chuva com uma expressão cômica no rosto porque suas entranhas haviam sido chutadas pra fora.".
Ali estava Rafaela. Sentada em uma mesa. Conversando sorridente com um rapaz. Ah... O sorriso dela... Mesmo assim, porém, não foi suficiente para amainar-lhe a dor. Larry imaginou o quanto pareceu ridículo ao se virar maneando a cabeça como se houvesse se lembrado de algo e saindo apressadamente pela rua.
Se sentiu dormente. Estômago, lábios, olhos, mãos... Tudo dormente.
Sabia que não tinha o direito de se sentir mal, que não tinha direito a sentir injúria ou revolta. Que provavelmente ela sentira aquela mesma coisa semanas antes, e que ele fora o responsável.
Ainda assim, não conseguiu evitar.
Tentou se convencer de que era o momento de ser adulto. De que era o momento de mostrar maturidade e de se sentir feliz por ela. Ela que merecia tanto ser feliz. Achou que era a hora de dar adeus...
Mas não conseguiu. Mesmo tendo a sensação de ter entendido o significado da expressão "morrer um pouco por dentro", não podia dizer "adeus".
Não quando haviam coisas maiores e mais importantes que ainda não haviam sido ditas.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Rapidinhas do Capita


Eu não gosto das Panicats.
Panicats, pra quem não sabe, são aquelas dançarinas de biquíni que ficam em volta dos caras do programa Pânico, que passava na RedeTV!, e que, volta e meia, saem nas capas das revistas masculinas.
Essas moças são a última consequência de um padrão que surgiu alguns anos atrás com as ajudantes de palco do Luciano Huck, onde as meninas eram malhadas. A Tiazinha, a Feiticeira, a Dani Bananinha, eram todas moças que a gente via que frequentavam academia. Tinham músculos tonificados, alguma definição, e tal... Conforme o tempo foi passando, esse tipo de beleza foi se tornando mais popular e mais evidente. Mulheres com coxas musculosas, barrigas quebradas em gomos e bíceps salientes se tornaram lugar-comum na mídia em geral até esse tipo de beleza (?) que vemos hoje em dia, com mulheres parrudas que tem coxas mais musculosas que zagueiro central de time ucraniano, músculos abdominais de seis tijolos, nádegas capazes de quebrar nozes e litros de silicone nos seios pra esconder aquele peito achatado de halterofilista.
Eu, francamente, acho que não me sentiria à vontade andando de mãos dadas com uma mulher que tem mais músculos que um boxeador peso-médio, imagine, então, dormir ao lado de uma?
Pode ser um pouco de machismo da minha parte, mas eu não vejo absolutamente nada de atraente em uma mulher marombada.
Beleza feminina tem que ser de delicadeza, suavidade e graça. Quem gosta de apalpar músculos salientes tá jogando no time errado...

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O Giovani estava estacionando o carro ali na Travessa do Carmo, quase na João Alfredo, quando passou um sujeito. O sujeito, alto, magrão, camiseta preta e calça jeans, vinha andando rápido, parecendo apressado, e quando estava bem ao lado da janela do Giovani, que prestava atenção ao retrovisor enquanto manobrava, peidou.
Isso mesmo. Peidou. Queimou a bota, emitiu gases, disparou um flato...
Não foi nem um desses sorrateiros peidos silenciosos. Não. Foi um traque alto, ruidoso. Praticamente na cara do Giovani, que ainda pensou em recriminar o porcão, mas não o fez, tanto porque o sujeito já havia andado bastante, quanto porque estava manobrando o carro quanto porque não queria criar caso com um desconhecido desagradável na rua.
O problema foi que, no dia seguinte, a cena se repetiu. Giovani manobrando o carro, o sujeito passando do lado e... Pum.
Novo traque.
Dessa vez Giovani ainda protestou:
-Pô, brother! Te liga!
O sujeito se virou surpreso, parecendo muito sem jeito, e balbuciou um pedido de desculpas enquanto retomava sua caminhada.
Giovani se sentiu mal por ter recriminado o peidorrento. Não sabia o que se passava com o sujeito. Talvez tivesse dois empregos e se alimentasse só de comida enlatada. Talvez sofresse de alguma condição clínica que o impedisse de segurar gases, talvez estivesse apenas com uma infecção intestinal, ou passasse em uma rua menos movimentada na esperança de não ser constrangido por ser um flatulento... Enfim, Giovani se sentiu com um peso na consciência durante todo o dia.
Na manhã seguinte, Giovani estava, novamente estacionando na rua, quando percebeu, pelo retrovisor, o flatulento se aproximando. Fechou rapidamente a janela do carro e ligou o ar-condicionado. Quando o sujeito passou, olhou de soslaio para o carro, embaraçado, Giovani acenou e fez um sinal de positivo com o polegar.
É impressionante, mas vivemos em um tempo em que as pessoas fazem qualquer coisa pra evitar confrontações.

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-Eu já sei! - Disse o Valdomiro. -Vou parar de fazer tudo o que me lembra dela. Tudo. Os filmes, as músicas, os livros, os games e quadrinhos, os passeios, os refrigerantes, as comidas, tudinho. Assim vai ser fácil. Assim eu vou esquecer dela rapidinho.
-Maneiro. - Disse o Élton. - Mas... Tu cogitou a possibilidades de ser o contrário?
-Como assim o contrário? - Quis saber Valdomiro, confuso.
-Tu imaginou que, ao invés de essas coisas te lembrarem dela, ela te lembra essas coisas, e que, se for o caso, tu pensa nela o tempo inteiro? - Explicou o amigo.
-Ai, filho da puta... - Suspirou o Valdomiro, deixando os ombros caírem e sentando-se no sofá segurando o queixo com as mãos.
-Ah, que se foda. Eu não ia esquecer dela do mesmo jeito. Liga o video-game aí, então...

quinta-feira, 22 de março de 2012

Rapidinhas do Capita


Hoje é aniversário de James Tiberius Kirk, o lendário capitão da U. S. S. Entreprise, jóia da Frota Estelar, cuja missão de cinco anos viajando pelo espaço, a fronteira final, em busca de novos novos mundos, para procurar novas vidas e novas civilizações, para audaciosamente ir onde nenhum homem jamais esteve fez a alegria de muita gente em séries, desenhos e filmes.
Mesmo que ele não seja poderoso na força, mesmo que ele fosse levar uma sova se se metesse com o Han Solo, ainda assim, o capitão Kirk merece os parabéns.

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Ontem me deparei com a maçã verde perfeita. Era enorme. Muito grande, de um verde bem escuro que denunciava o quão cítrica era a fruta. Comprei uma delas. Ao chegar em casa, a degustei com prazer.
Crocante.
Azeda.
Suculenta.
Tudo o que uma maçã verde deve ser. Tão grande que precisei comê-la com o auxílio de uma faca, pois era incapaz de mordê-la como ela merecia ser mordida.
Assim que terminei, voltei ao mercado e comprei mais um monte delas.
Quando encontramos perfeição, é difícil não ficar deslumbrado e querer um pouco mais.

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Calma... Respira... Sorria. Se há uma verdade inalienável nessa vida é essa:
Amanhã vai ser pior.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Pochete


Eu queria ter o valor necessário pra usar pochete. Digo isso porque só sendo um homem de muita honra, de muito caráter, de moral muito ilibada pra usar pochete.
O cara que usa pochete é diferente, ele trafega altivo entre as outras pessoas ostentando naquela bolsa pendurada no púbis, o quanto é melhor que os demais.
Pra usar pochete um homem tem que ser mais que seguro de si. Ele precisa da certeza inabalável de ser um homem de fundamento, só assim pra usar pochete e não se sentir ridículo. Só com muita fibra. Como o Batman! O Batman pode usar pochete.
Um homem que não tem o caráter absolutamente reluzente de um Batman não pode usar pochete. Se usa, ou é cobrador de ônibus, ou é um vigarista e um aproveitador.
Sim, porque pochete é um crachá. Todas as mães recomendam à suas filhas que não falem com estranhos, mas há aquelas mais atentas que adicionam cautelosas "especialmente se estiver de pochete!", quando a menina está com meio corpo pra fora da porta.
Ás vezes, contudo, a moça pode não se aguentar. Verá o bailado erótico da pochete presa aos quadris do sujeito, dançando languidamente sobre o seu púbis, especialmente se houver, tilintando preso à peça, um chaveiro repleto de chaves e um celular com flip, aí não tem jeito, ela pode acabar cedendo e falando com o estranho de pochete.
Aí, das duas uma:
Ou, com o desastre consumado, ela nunca mais vê o sujeito e reza pro pior não ter acontecido, ou leva ele à sua casa para que ele passe pelo atento escrutínio da família.
-Mãe, hoje eu vou trazer o Bozó, aqui.
-Bozó... Maria das Dores, minha filha, que raio de nome é esse...?
-Mãe... Eu... Eu tenho que te falar uma coisa...
-O quê, Maria das Dores?
-É sobre o Bozó...
-Que tem ele?
-Ele... Bom... Ele meio que... Sabe?
-Desembucha, menina, tá me deixando agoniada!
-Ai, mãe... O Bozó... O Bozó usa pochete...
-JesusMariaJosé! - Grita a mãe abraçando-se à filha, as duas em prantos.
Se ela de fato levá-lo à sabatina familiar, porém, pode ser bom sinal. Se ele não for um pulha completa e absolutamente desavergonhado tentando se infiltrar sorrateiramente em um seio familiar estabelecido, então certamente será um virtuoso, pois por maior que seja uma pochete, nela não há espaço suficiente para carregar meio-termos.

terça-feira, 20 de março de 2012

Rapidinhas do Capita


Ontem foi um dia de emoções clubísticas conflitantes. Por um lado eu tinha um sorriso no rosto com o fim do imbróglio envolvendo a parceria entre o Sport Club Internacional e a construtora Andrade Gutierrez para a remodelação do Beira Rio. A assinatura do contrato entre Internacional e AG vinha se arrastando a quase um ano, e, claro, ninguém mais tinha paciência pra isso, em especial a torcida do Inter que, em sua maioria, está pouco se lixando pra Copa do Mundo, mas obviamente quer um estádio moderno e remodelado sem precisar vender a alma à uma parceira.
Ontem o contrato finalmente foi assinado, não é desvantajoso para o Inter e deixará o complexo Beira-Rio ainda mais flamante para a Copa do Mundo.
Que ótimo.
Se por um lado houve essa satisfação e esse alívio, por outro, finalmente caiu a ficha do que setores da imprensa gaúcha, em especial a Rede Baita Sol através de seus comunicadores em vários veículos, fizeram com o Inter nesse período de indefinições.
Chegou a ser ridículo o grau de hostilidade da empresa com relação ao clube durante o episódio da assinatura do contrato. Ameaças, notícias desencontradas e boatos plantados daqui e de acolá sendo reproduzidos em cada noticiário como se fossem verdades absolutas, ameaçando o Internacional com a perda da Copa, responsabilizando o clube pela ausência de Porto Alegre no roteiro da Copa das Confederações, e sempre pintando o novo estádio do Grêmio como "A grande alternativa" para a realização da Copa em Porto Alegre.
Não adiantava o Comitê Organizador Local desmentir cada notícia veiculada pelos órgãos do grupo Rede Baita Sol. Não adiantava as esferas municipal, estadual e federal garantir que não havia plano B.
A campanha de terror se seguiu com episódios vexatórios como a veiculação de um vídeo ridicularizando o Internacional em um programa esportivo da empresa e o achaque efeminado e inexplicável de um dos comunicadores do grupo em um programa de rádio.
Tudo em vão...
Mesmo com esse papel ridículo ao qual se prestou uma empresa que atua no ramo jornalístico, e deveria primar pela isenção, mas foi incapaz de separar interesses e preferências pessoais de seus diretores da verdade dos fatos, o Internacional assinou o contrato que lhe era mais favorável.
Terá, sim, um estádio remodelado, bonito e moderno até dezembro de 2013.
Pra Copa, claro, mas especialmente para os Colorados, e o melhor:
Sem precisar vender sua alma a ninguém.

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Ele apanhou a foto, no porta-retratos ao lado da televisão, e sorrindo dolorosamente, passou o dedo indicador no rosto dela estampado na imagem em que ela sorria um sorriso lindo e bem aberto pra câmera.
-Meu amor - Ele sussurrou. - Se tu for ficar brava toda a vez que ouvir um elogio, acho que nunca mais ninguém vê esse teu sorriso.
Segurou a foto brevemente entre as mãos. Chegou a pensar em guardá-la fora de sua vista, mas desistiu.
Era mais ou menos como as estrelas no céu. O que vemos à noite, é o brilho que elas emanaram centenas de milhares de anos atrás.
Como aquele sorriso dela pra ele na foto, que já era passado. Hoje ela sorria pra outra pessoa, mas a lembrança daquele sorriso, ainda era a luz iluminando-lhe os caminhos.
Não podia e nem merecia ser engavetada.

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Michael Bay disse em entrevista que o remake de As Tartarugas Ninja que ele produz terá sensíveis alterações com relação aos predecessores. Aí ele disse que elas serão alienígenas.
Bom... Pra uma franquia chamada Tartarugas adolescentes MUTANTES ninja, essa me parece uma alteração um pouco maior do que "sensível".
Também, esperar o que do cara que demitiu a Megan Fox? Só falta ele transformar o mestre Splinter em uma cachorra.

Quadrinhos: Batman: Dia das Bruxas


Foi na sexta-feira que eu comprei Homem-Aranha Noir: A Face Oculta, um guia muito maneiro de sabres de luz, e, já que estava entristecido no shopping, mesmo, resolvi chutar o balde e comprar outro encadernado do Batman que eu já namorava fazia um tempinho, esse do título, Dia das Bruxas.
O título é uma compilação de três contos escritos por Jeph Loeb e ilustrados por Tim Sale, a mesma dupla de outras histórias fenomenais como Homem-Aranha: Azul, Demolidor: Amarelo, Hulk: Cinza, Superman: As Quatro Estações e Batman: O Longo dia das Bruxas.
São três histórias separadas, mostrando um Bruce Wayne no início de sua carreira de vigilante mascarado, quando ainda havia espaço para dúvidas na cabeça do playboy bilionário se aquela, era mesmo, a melhor escolha do que fazer de sua vida.
Na primeira chamada Dia das Bruxas, o antagonista é o Espantalho, e há uma interessante trama paralela com um possível interesse romântico para Bruce.
Na segunda, Loucura, o inimigo da vez é Jervis Teech, o Chapeleiro Louco, mas há espaço para a relação do capitão James Gordon e sua filha adotiva, Bárbara, e para reminiscências do passado de Bruce Wayne, e uma sensível ligação dele com o livro Alice No País Das Maravilhas.
Na terceira história, Fantasmas, vemos o morcegão enfrentar o Pinguim e, também, sua própria versão de Um Conto de Natal, de Dickens, quando uma intoxicação alimentar faz com que Wayne seja visitado por três fantasmas de Halloweens passados, presente, e futuro...
Apesar do preço salgado (R$55,00), o acabamento luxuoso da edição vale a pena pra quem curte uma encadernação bem maneira na estante, e as histórias da mítica parceria Jeph Loeb/Tim Sale são sempre uma ótima pedida. Os roteiros algo sentimentais de Loeb não fazem feio, e os desenhos de Sale, que ainda não estava na sua melhor forma (As histórias são de 1995, 96 e 97) sempre cumprem o combinado.
Item dos mais bacanas pros fãs do morcegão.

"Noites como essa me fazem lembrar de minha mãe. Felizmente eu tenho a coisa certa para noites chuvosas."

Madrugada


Acordou. Uma e vinte da madrugada. Se revirou brevemente na cama. Levantou. Foi à cozinha, tomou o seu remédio com meia hora de atraso e um gole de Fanta.
Pensou nela:
Quão alterada estaria sendo a farmacodinâmica do remédio pelo refrigerante?
Foi ao banheiro. Atendeu ao chamado da natureza, lavou as mãos, lavou o rosto, escovou os dentes.
Burro.
Ainda não tinha comido. Devia ter escovado os dentes depois de comer.
Pensou nela:
Teria comido alguma coisa? Ou só um sorvete de dark Chocolate 70%?
Foi à cozinha, abriu a geladeira, apanhou uma refeição congelada no freezer. Colocou-a no microondas. Cinco minutos. Apanhou a superinteressante e ficou folheando ao acaso.
Pensou nela:
Não havia sujeira na página 27. Nenhuma mancha de comida.
O micro avisou que a refeição estava pronta. Sentou no sofá e assistiu um noticiário enquanto comia com seu cachorro filão.
Pensou nela:
Teria conseguido afagar algum cachorro?
Terminou de comer, lavou o prato. Teve vontade de tomar um copo d'água com um canivete pra desmanchar o nó na garganta. Bebeu mais um gole de Fanta. Julgou que tinha que parar com aquilo. Que tinha que largar mão. Voltou à sala decidido. Ligou o computador...
Pensou nela:
E foi tentar saber dela. Se estava bem, se as coisas estavam dando certo...
Tinha coisas que ele simplesmente não conseguia deixar de fazer.

segunda-feira, 19 de março de 2012

O Viking


E a Camila? A Camila estava se vendo em uma sinuca de bico...
A Camila que era uma moça centrada e decidida não estava acostumada a se ver em palpos de aranha como sugeria a ocasião que se avizinhava perigosamente em seu horizonte:
Ela estava se preparando para apresentar seu namorado, Chicão, à sua família. Em particular ao seu pai, o coronel Afonso, militar aposentado, de temperamento forte e noções pouco realistas de moral e de bons costumes.
Camila ainda era capaz de lembrar de quando, no segundo grau, levou um namoradinho para conhecer seus pais e deparou-se com o coronel na sala limpando uma arma com outras duas sobre a mesinha de centro. Após limpar o cano de uma pistola 765 ele olhou o rapaz ameaçadoramente através do cano e e perguntou-lhe quais eram as intenções dele para com sua filha.
Desnecessário dizer que o moleque quase se borrou, e que nunca mais parou de falar do pai louco da Camila na escola, o que ainda gerou um folclore de que ela era tipo uma princesinha proibida e coisas do tipo.
Não era o caso, Camila tinha muita personalidade, era divertida, culta e inteligente, sabia ser sacana quando era necessário e não se apertava nem nas mais cabeludas situações. Ainda assim, a pecha de princesinha do pai louco a acompanhou nos anos do ensino médio, de modo que ela namorou pouco, ou quase nada. Não que sentisse grande falta, mas de vez em quando ela pensava em como seria bom ter alguém para mimá-la um pouco, acalentá-la com riso e beijos e abraços, enfim...
Quando Camila terminou o ensino médio, viajou pra Europa pra estudar francês e voltou ao Brasil para seguir com seus estudos. Saiu de casa, fez faculdade, e foi justamente no último ano da faculdade que ela conheceu o Francisco.
Francisco, não...
Chicão.
Chicão era a alcunha de Francisco, provavelmente o homem mais parecido com um viking nascido depois do século onze. Chicão não nascera na Escandinávia, não usava chapéu com chifres, não besuntava o cabelo com margarina, não se vestia com peles e cotas de malha, nem navegava pelos mares do norte da Europa saqueando e pilhando, não... Nada disso.
Mas o Chicão era um viking.
Com um metro e noventa e seis de altura, pesando uns cento e dez quilos com a face barbada e os cabelos loiros, Chicão já passaria por um viking pra maioria das pessoas. O fato de ele ser, também, provavelmente o ser humano mais franco da face da terra, aliado à sua bússola social ineficiente, apenas ajudavam as pessoas a vê-lo como um tipo de selvagem.
Camila ainda se lembrava de maneira bastante vívida de quando o conhecera em uma festa da faculdade. O viu de longe, chamava a atenção com seu tamanho avantajado, e tinha um certo charme rústico com sua barba de Paul Bunyan. Camila tomou coragem e, com decisão, fora falar com ele. A primeira coisa que ouviu da boca dele foi um arroto, depois uma risada, e finalmente um "Bah, tri linda, tu, mulher.".
Chegou a se desencantar achando que ele fosse desses sujeitos que se embriagam e agem como idiotas. Levou alguns segundos de conversa, apenas, para ver que não. Ele não era um bêbado, nem era um idiota. Chicão era dessas pessoas cuja franqueza se esfrega perigosamente na grosseria. Não que fosse afeito a grosserias, o Chicão. Não era. Era uma boa pessoa, e não era mal-educado, apenas era total e absolutamente desprovido de qualquer espécie de frescura. E, ser humano que era, media aos outros de acordo com seus próprios parâmetros.
Era principalmente por isso que o Chicão, mesmo tendo vários bons amigos, volta e meia esbarrava na antipatia de pessoas que não entendiam o seu jeito direto.
Não foi o que aconteceu com Camila. Passado o estranhamento inicial natural que uma mulher sente quando pergunta "Tô bonita?", e o namorado responde "Tu tá, mas a tua roupa tá feia pra cacete." a Camila entendeu o funcionamento do Chicão, e aprendeu a amar todas as qualidades que existiam ocultas sob sua carranca barbada.
Camila aprendeu a amar a honestidade, a franqueza, e especialmente a integridade do Chicão. E ele era tudo isso. Quando algo estava certo, Chicão era o primeiro a fazer elogios, todavia, quando via algo de errado, não tinha meias palavras para cobrar melhorias.
Camila aprendeu a admirar esse comportamento, em especial porque o Chicão não disse "eu te amo" durante cinco ou seis meses de namoro. Nunca disse nada do tipo. Até uma dia de manhã, após ela e ele terem tido uma briga, e, após ele entrar no quarto dela e dizer "Tá, eu sentei na graxa nessa. Me desculpa.", e ela responder que o perdoava, ele disse, com todas as letras, que a amava. E ela sabia que, de alguém como o Chicão, só podia ser verdade.
O que apavorava Camila, no entanto era ver a franqueza absoluta do Chicão frente ao autoritarismo de seu pai, o coronel Afonso.
Camila montou em sua cabeça pelo menos sessenta e três cenários diferentes onde tudo ia pro inferno antes de sua mãe servir o café. A maioria deles envolvia o Coronel dizer, ao acaso, que sentia saudades da ditadura militar no Brasil. A Camila era capaz de ouvir o Chicão dizendo "Então o senhor, ou é burro, ou é mal intencionado.", a partir daí ela não tinha muita certeza do que aconteceria. Ela via o coronel apanhando sua 765 de baixo da mesa e disparando na cabeça do Chicão. Ás vezes no devaneio de Camila, o Chicão se esquivava da bala e decepava a cabeça do coronel com a faca de cortar pão ou um machado de combate nórdico, o que estivesse mais à mão. Em algumas edições do pesadelo ela se jogava na frente da bala, em outras, na frente da faca... Enfim, durante uma semana antes do jantar Camila teve pesadelos. Chegou a cogitar a hipótese de pedir ao Chicão que relevasse seu pai. Chegou a cogitar pedir que sua mãe dopasse o coronel para que ele estivesse dormindo durante o jantar. Desistiu de ambas as hipóteses, não podia podia nem queria pedir que Chicão deixasse de ser quem era. Nem podia pedir que sua mãe dopasse o coronel com nada mais forte do que água de melissa. O jeito era engolir em seco e esperar que o Chicão e o coronel não se matassem durante o jantar, e explicar à sua mãe que, como gostava muito do Chicão, era provável que não aparecesse nos próximos natais.
Na noite do encontro, a Camila saiu do quarto com uma tensão indisfarçável no rosto e no corpo. O Chicão, até que estava alinhado, de camisa e sapato, ele que estava sempre de camiseta e tênis. Aparara uma ou outra ponta teimosa de sua barba farta, e prendera suas madeixas loiras em um rabo de cavalo. Camila podia ver a cara de desaprovação do coronel Afonso pro rabo de cavalo do Chicão. Podia ver a expressão no rosto dele quando ela dissesse que ele era professor de História, que pro coronel era tudo comunista. Podia ver o Chicão com a sua cara de paisagem enquanto dizia com sua voz tonitruante de viking que militares que nem o Afonso eram responsáveis por trinta anos de miséria e endividamento no Brasil... Camila podia ver tudo isso, e tudo isso deixava seu corpo todo tenso. Dos pés à cabeça.
Quando entraram no táxi e deram o endereço dos pais da Camila o Chicão se espremeu no banco de trás ao lado dela e perguntou-lhe se estava tudo bem. Ela disse casualmente que sim, enquanto roía de levinho a ponta da unha o polegar e olhava pela janela. Chicão não perguntou de novo. Ele não costumava tergiversar quando algo o incomodava e não achava que ninguém o fizesse.
Ao chegarem ao portão branco da casa do coronel Afonso e da dona Norma, Camila já sentia um certo enjoo, ela sempre era acometida de enjoos quando alguma situação extremamente desconfortável se apresentava, e naquela situação, seu enjoo estava forte, ela tinha uma revoada de borboletas no estômago.
Entraram na casa, dona Norma veio recebê-los, apanhou o casaco da Camila, deu um beijo no Chicão, que correspondeu, então, o pavor quando Dona Norma foi até a entrada da sala e gritou:
-Afonso, olha quem chegou, Afonso.
O coronel levantou de sua poltrona verde-musgo surradíssima, e caminhou a passos decididos como se marchasse de calça de tergal cinza e camiseta branca até Camila e Chicão. Beijou a filha com delicadeza, e então, em um gesto duro, estendeu a mão ao Chicão. Que a mirou por uma breve fração de segundo, e então apertou-a vigorosamente.
-Bom aperto de mão. Se descobre muita coisa sobre um homem no aperto de mão. - O coronel observou.
Camila pensou: "É agora. Ele vai dizer que isso é uma idiotice sem tamanho, e vai falar de... Sei lá... Genocidas que tinha aperto de mão forte...".
Mas não. Chicão assentiu com um aceno de cabeça enquanto dizia "É um prazer, coronel, eu sou o Francisco.".
Quando sentaram na sala de estar pra conversar enquanto dona Norma e a empregada Jucileide terminavam de preparar o jantar, Camila teve novos momentos de pânico. À qualquer coisa que o coronel dizia ela esperava pela réplica avassaladora de Chicão. Mas não veio nenhuma. Ele chegou a dizer que discordava das medidas econômicas protecionistas dos governos europeus, mas não se embrenhou no assunto como temia Camila.
Durante a refeição, quando dona Norma perguntou se estava tudo do agrado de Chicão, novamente Camila anteviu um "Nem fodendo.", mas não. Ele disse que o sabor estava tão bom quanto a cara da comida, quiçá melhor. Ele usou essa palavra, mesmo: "Quiçá".
A noite transcorreu sem sustos, sem insultos nem arroubos de franqueza crua. Camila não relaxou em nenhum momento, de tão tensa, estava com dores musculares nas nádegas quando se despediu do pai e da mãe.
E incrédula quando entrou no táxi com um Chicão que se despediu dos dois dizendo que esperava voltar a vê-los.
Finalmente relaxada, Camila deitou a cabeça no ombro de Chicão e suspirou.
-Tudo bem? - Ele quis saber.
-Tudo... - Ela suspirou. E continuou em um bocejo:
-Eu vi mil formas de isso tudo dar errado. Mas no fim foi tudo bem...
Chicão sorriu enquanto se esgueirava para beijar o cabelo dela:
-Por que tu achou que fosse dar errado? Porque teu pai é meio reaça e eu não tenho papas na língua?
Ela riu:
-É um bom eufemismo pra vocês. O pai é um milico saudoso da ditadura e tu é um viking... Mas sim, era isso. Eu tinha medo que vocês começassem a discutir antes de apertar as mãos e estivessem se desafiando pra um duelo antes da sobremesa.
O Chicão passou o braço por cima dos ombros da Camila e confidenciou:
-Olha... Acho que ele maneirou, hoje. Primeira vez que eu fui lá, tu já não é mais criança... Mas deu pra ver que ele é meio autoritário, mesmo. Se no futuro ele for mais veemente em certos assuntos, ele e eu vamos acabar discutindo, e eu certamente vou falar merda. Mas...
Camila o olhou apreensiva:
-Mas o quê?
Ele sorriu ternamente sob sua barba cerrada:
-...Se tudo correr bem, a gente já vai estar casado e com um neto a caminho pra amaciar o velho.
Camila sorriu se aninhando no peito de seu bárbaro nórdico.
Por amor... Até mesmo os vikings mais ferozes aprendem a maneira.

sábado, 17 de março de 2012

Quadrinhos: Homem-Aranha Noir: A Face Oculta


E a Panini publicou a sequência da boa história da versão detetive dos anos 30 do cabeça de teia. Homem-Aranha Noir: A Face Oculta (Eyes Without a Face, no original).
A dupla da primeira história volta, o roteiro é de David Hine (junto com Fabrice Sapolsky) e a arte, de Carmine di Giandomenico, com o time criativo inalterado era de se supôr que a qualidade da história anterior seria mantida, e foi.
A Face Oculta mantém a mesma toada de sua predecessora.
A ambientação em uma Nova York decadente em meio meio aos ecos da Grande Depressão e aos gritos primevos da Alemanha nazista é o palco onde o Homem-Aranha, agora um vigilante mais experiente após oito meses de combate ao crime, enfrenta uma nova ameaça.
Há um Mestre do Crime operando em Nova York, ocupando o posto que antes pertenceu a Norman o Duende Osborn. Esse novo criminoso é ainda mais temerário do que o Duende, e não mede esforços na hora de derramar sangue e demarcar seu território.
Investigando esse criminoso vil, o caminho de Peter Parker e do Homem-Aranha se cruza com o de seu amigo Robbie Robertson, repórter do The Negro World, e do doutor Otto Octavius, um brilhante neuro cirurgião alemão.
Investigando o Mestre do Crime o Homem-Aranha chega a uma intrincada teia de conspirações que se estende pelos altos escalões do governo federal norte-americano.
É mais uma boa história. O Aranha dessa segunda edição parece um pouco menos frio do que o anterior, aproximando-se mais de sua versão tradicional, o que, apesar de ser familiar, não deixa de ser um retrocesso, afinal de contas, se é uma versão alternativa, mantenha-a refrescante. Ainda assim, a trama de boas sacadas, referências históricas e cara de filme de investigação agrada, e é sempre bacana ver as reimaginações dos personagens que conhecemos e amamos.
O acabamento, novamente de primeira linha, e o preço acessível (R$19,90) são convidativos, e é mais um livro bonito pra adornar aquela estante de livros e gibis.

"Nenhum som ou movimento. Não há ninguém aqui. Mas tem algo errado. Um odor. O mesmo cheiro que senti na noite em que o tio Ben morreu. E com certeza eu conheço o fedor de um matadouro."

sexta-feira, 16 de março de 2012

Rapidinhas do Capita


O Orestes estava na fila de uma lanchonete pensando na vida. Ao se aproximar do balcão, fez seu pedido, e ouviu de volta que o preço havia sido de dezessete reais. Abriu a carteira e entregou uma nota de vinte e uma de dois reais ao atendente, que apanhou o dinheiro devolvendo a nota de dois:
-Deu dezessete reais, senhor.
Orestes respondeu em um suspiro:
-Eu estava tentando facilitar o troco. Tu me devolveria cinco.
O atendente esticou novamente a mão, apanhando a nota de dois reais, e dizendo:
-Ainda melhor. Não tinha pensado nisso, senhor.
Imediatamente Orestes formulou a frase "se tu pensasse não tava trabalhando de atendente do McDonald's, né, imbecil?".
Mas não disse. Apenas sorriu vagamente enquanto esperava.
"As pessoas em sua maioria são assim", pensou Orestes. "A capacidade de ser mordaz, de ser desagradável, de ser mau, em última instância, essa sai ao natural. Na hora de ser ofensivo, de ser cruel, o cérebro funciona melhor, funciona mais rápido, como se fôssemos feitos pra isso."
"O gesto de bondade, a gentileza, a cordialidade... Esses demandam esforço, esses demandam contrição e concentração. Ao menos pra maioria das pessoas." Concluiu enquanto apanhava o seu McLanche.

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Claro que ele encontrou um casal de São José dos Campos com um sotaque de caipira carregado, hoje.
Claro que ele foi ler o que ela escreve enquanto sua lista de reprodução do MP3 entoava Moon River.
Claro que ele viu o ovo de páscoa do Homem-Aranha no mercado, ao meio-dia.
Claro que Across The Stars tocou enquanto ele comia uma maçã verde no meio da tarde.
Claro que ele conseguiu fazer tudo o que tinha que fazer naquele dia.
Claro que ele pensou nela enquanto voltava pra casa, enquanto passeava com o cachorro, enquanto tomava banho, enquanto jogava video game e enquanto jantava.
Claro que a noite ele foi ao shopping comprar gibis e ao pegar um na prateleira mais alta, lembrou que ela não o alcançaria.
Claro que ele comprou um livro pra se distrair e não pensar nela.
Claro que esse livro era de Star Wars e teve efeito reverso.
Claro que ele foi dormir se esforçando pra torcer pra tudo ter dado certo pra ela.
Claro que ele se esforçou pra não pensar mais nela.
Claro que ela foi a primeira coisa que passou pela sua cabeça quando ele acordou na manhã seguinte...

Irmãos de armas


Estavam sentados à mesa a Lourdes, o Caio, o Milton, o Sandro e o Felizardo. Sobre a mesa, copos de Coca Cola, uma pilha de livros, mapas de lugares que não existiam, fichas em pastas plásticas flexíveis, lápis e dados poliédricos de quatro à vinte faces.
Eles estavam jogando RPG.
O Caio já jogava fazia anos, era um aficionado pela matéria. Colecionava suplementos, livros, mapas, dados, revistas... Ele adorava a coisa, se dedicava, e jogava incessantemente desde os quatorze anos de idade. Lourdes era casada com Caio, e caíra no mundo dos role playing games meio que ao acaso, sugada de forma colateral pelo amor do cônjuge ao jogo. Acabou gostando e, apesar de seguidamente dizer que não sabia jogar, dominava suficientemente as regras pra não atravancar nenhuma sessão de jogo, e nem se tornar irritante como frequentemente acontece com pessoas que não são tão afeitas à atividade quanto os colegas de mesa. O Milton era amigo do Caio desde a tenra infância e se davam bem. Tão bem que Caio acabou levando Milton consigo para o mundo do RPG quando eles ainda eram adolescentes. Jogavam juntos já tinha mais de quinze anos, e se divertiam muito com a atividade a despeito de algumas eventuais desavenças.
O Sandro era amigo antigo do Caio e do Milton, mas não partilhava do mesmo entusiasmo dos colegas pelo jogo. Ele gostava, sim, do RPG, mas não tinha paciência pra ficar seis horas em volta da mesa jogando dados, de modo que seguidamente se levantava e ficava andando ao redor dos colegas, ou simplesmente se jogava em um sofá próximo e ficava assistindo TV acompanhando o jogo de forma periférica e vindo à mesa apenas para jogar os dados ou responder uma pergunta à qual não cabia a resposta "Eu faço uma cara feia e fico em silêncio.". Enfim, o Sandro curtia o jogo, e mesmo, ás vezes, dando a impressão de não querer mais saber de jogar, sempre voltava.
O Felizardo... Bom, o Felizardo era um caso à parte. Era também amigo antigo de Caio, Milton e Sandro, se dava bem com a Lourdes, pois era polido e educado, mas era dessas pessoas mais ensimesmadas que são de falar pouco, em especial sobre si próprias. Ele era assim, o Felizardo. Uma das coisas curiosas a respeito dele, é que ele, vez que outra, tinha arroubos de verborragia em que falava feito um condenado. Normalmente ninguém estava interessado no que o Felizardo dizia, pois ele falava sobre assuntos que pareciam surgir na sua cabeça de maneira totalmente aleatória e que não faziam sentido no contexto do assunto do resto do pessoal.
Ainda assim, o Felizardo jogava RPG com o pessoal numa boa. Era atento ao jogo, e não atrapalhava o bom andamento das partidas embora, vez que outra, se fixasse aos efeitos de determinadas magias e ataques querendo saber, direitinho, nos mais imperceptíveis detalhes, como poderia escapar de uma determinada situação. Nada demais, contudo, já que, parte da graça do jogo, era, justamente, saber como escapar da morte quase certa. Mas a impressão que dava, é que ele gostava menos de jogar do que todo mundo, até o Sandro, e ficava ali, mais pra se manter em contato com os amigos do que qualquer outra coisa.
Agora ali estavam eles, todos sentados à mesa em meio ao material espalhado entre o grupo quando o Caio, que mestrava a partida anunciou a presença de um imenso dragão em uma câmara ampla oculta atrás de uma porta de pedra recém aberta pelo ladrão interpretado por Milton.
Lourdes perguntou se havia chance de fechar a porta e correr, entretanto foi avisada por Caio que, ao dar as costas ao dragão abriria a chance para um ataque de oportunidade da besta, ao que ela reagiu suspirando profundamente e dando de ombros:
-Tamos ferrados. Vai morrer todo mundo. Tá, eu ataco ele. - Anunciou enquanto virava a página da ficha e sacolejava na mão um dado de vinte faces vermelho.
Pra quem não sabe, dragões são provavelmente as criaturas mais terríveis da fauna RPGística, e pra um grupo de nível médio com poucos componentes como era esse, era uma peleia das mais duras. Enfim...
A Lourdes começou a sacolejar o dado entre as mãos em concha enquanto o Caio, muito animado, anunciou que era pra estabelecer as iniciativas. O Sandro, que vivia um paladino e líder do grupo, rolou um dado de dez faces e anunciou o número três, recebendo palavras de apoio dos companheiros que imediatamente somaram a velocidade de suas armas ao número rolado pelo colega. Estabelecida a ordem de combate o Caio disparou:
-OK, vou dar a primeira rodada de lambuja pra vocês, o dragão está confuso, irritado pela intrusão de vocês, e está se remexendo no espaço da câmara de rocha em busca de uma posição em que fique de frente pra vocês então, vocês atacam antes! Lourdinha, tu começa.
A Lourdes trocou o dado de vinte faces que tinha na mão por cinco dados de seis faces enquanto dizia:
-Vou começar com a minha magia de relâmpago, então. É o que eu tenho de mais forte, mesmo...
Ela rolou os dados, três em um, quatro em outros dois, dois no quarto e seis no quinto dado.
-Dezenove! - Gritou, animada.
-Ih, nem fez cócegas no dragão, mas ele parece ter ficado incomodado com o clarão, e rosna pra ti. - Disse Caio, rindo maquiavélico. - Miltão, tua vez.
O Milton folheava atentamente a sua ficha de personagem, e anunciou enquanto mexia nos óculos que seu larápio iria se esconder nas sombras com sua ação de movimento e que, de lá, dispararia com sua besta encantada contra o dragão. Rolou os dados de porcentagem para o teste de se ocultar nas trevas e obteve sucesso, então agarrou o dado de vinte lados e perguntou:
-Quanto pra acertar o bicho?
-Pra ti, com a besta? - Respondeu Caio, fazendo um rápido cálculo matemático. -Peraí... Hã... Dezoito ou mais.
-Filhadaputa... - Esbravejou Milton, rolando o dado, que correu por alguns centímetros sobre o tampo de vidro da mesa e caiu com o número oito virado pra cima.
-Não deu. - Disse Caio, já mirando Sandro, apoiado nas costas da cadeira em que deveria estar sentado.
-Pois é, tchê... Deixa eu ver o que o Talibude vai fazer... - Disse ele referindo-se ao seu bárbaro sulista, enquanto olhava a ficha de personagem. -Ah, que se foda, vou meter a espada no bucho desse corno. Quanto? - Perguntou ao Caio.
-Dezesseis ou mais.
-Vai pra vala, bicharoco. - Disse rolando o dado e sorrindo ao ver o numero dezenove sair com a face pra cima. -Ah, moleque! Te liga nesse golpe de montante!
Apanhou dois dados de doze faces e rolou dez em ambos enquanto erguia os braços em triunfo.
Caio sorriu enquanto tomava notas:
Muito bem, mais a bonificação de força, isso tudo dá... Vinte e quatro. Quase fez cócegas no dragão, que tá ficando furioso! Feliz, é tu.
Feliz era o apelido do Felizardo. Não deixava de ser irônico.
-Hã... Vou com a minha espada longa mais um, mesmo. Quanto?
-Dezenove ou vinte. - Respondeu Caio.
O dado rolou da mão do Felizardo por sobre a mesa até parar de encontro aos livros do Caio com um sete virado pra cima.
-Não deu. - Bradou Caio. - Vez do monstro!
As sequências de combate foram se sucedendo, com o dragão levando larga vantagem. Magias e poções de cura foram usadas em profusão, armaduras foram consumidas pelo hálito do dragão, uma espada mágica se quebrou e um escudo encantado se partiu. Se no RPG de mesa houvessem barras de energia como aquelas dos video-games todos os personagens dos jogadores estariam no vermelho após as doze rodadas de combate que se seguiram. Na décima terceira, o dragão ganhou a iniciativa e meteu a porrada nos jogadores. Quem iniciava uma rodada de matar ou morrer, era justamente o Felizardo. Caio virou-se pra ele após anotar os pontos de vida que todos haviam perdido e notar, com alguma culpa, que seu grupo de players estava às portas da morte.
-Vai, Feliz, tu começa.
O Felizardo olhava pro sua ficha como se visse através dela. Após breves segundos em que todos o encaravam ele ergueu a cabeça e perguntou:
-Por quê?
Ninguém entendeu de imediato, como assim "por quê?" foi a cara que todos fizeram. O Caio, paciente, respondeu:
-Pra gente continuar com a sequência de combate.
-Pra quê? - Inquiriu Felizardo. -Essa sequência de combate vai terminar com um dragão ferido e furioso e quatro aventureiros esperando pra serem consumidos pelo seu sopro flamejante. Esse curso de ação ruma de maneira inexorável em direção à tragédia. Nesse instante em que eu me rendo à inação, porém, eu tenho controle sobre, não apenas o meu próprio destino, mas também sobre o dos meus companheiros e do próprio dragão. Se analisarmos profundamente, quem somos nós? Um bárbaro sulista, uma aprendiz de mago que cresceu no luxo, um facínora vil roendo os ossos da vida, um defensor da ordem e da justiça, e o meu personagem, um guerreiro comum com anseios de fama e de fortuna. E o dragão? Ele tem, não apenas a prerrogativa e o poder de nos obliterar, mas também pode-se dizer que tem o direito. Nós invadimos a caverna onde ele vive. Nós o atacamos à primeira vista. Ele é uma criatura ancestral de poder imensurável e nós? Mesmo que os ventos do acaso impulsionem nossos dados à uma vitória, nós a merecemos? Nós merecemos matar esse dragão que, pelo tamanho, é um adulto de, o quê? Uns quinhentos anos? Essa besta magnífica, com asas grandes como casas, oculta no subsolo embora pudesse devorar vilas inteiras e incendiar grandes cidades e nós invadimos a morada dela e a atacamos de maneira impensada? Por quê? Por quê? Qual o sentido dessa matança?
Todos estavam em silêncio olhando pro Felizardo, assim que ele terminou o discurso, olharam pro Caio, que parecia meio sem graça olhando pro seu caderno de anotações.
-Pô, Felizardo...
Mas o Felizardo mexeu a cabeça e jogou os dado de vinte e de doze faces sobre a mesa com algum desdém enquanto dizia:
-É tudo inútil e sem sentido.
Mas os dados rolaram fazendo barulho sobre o vidro da mesa e caíram com o vinte e o dez virados pra cima.
Todos olharam pra ele, que espiou o resultado da jogada espichando o pescoço, e então virou-se pro Caio, que disse:
-Vinte e seis... O dragão morreu.
Felizardo se levantou da cadeira e dançou gritando com os braços erguidos em triunfo. Sandro perguntou:
-Mas e a falta de sentido de tudo, a prerrogativa do monstro e tudo mais?
-Que se foda, brother, eu matei o dragão! Chupa, lagartão. Agora vamos ver esses tesouros, aí.

Ninguém sabe, de fato, como é bom jogar RPG até dar o golpe derradeiro em um monstro super-poderoso.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Before Watchmen(?)


E o Alan Moore ficou bravo, mesmo, com a putaria (me perdoe pelo termo) em que se transformou (uma das suas) obra(s) prima(s), no caso, Watchmen.
Pra quem não está sabendo, a DC Comics, dona dos direitos sobre Watchmen, resolveu capitalizar (mais, já que Watchmen continua vendendo e bem já tem uns 25 anos) sobre a obra após o sucesso do filme, e chamou uma turma de escritores pra escrever uma série chamada "Before Watchmen", que contaria histórias anteriores à trama da mini-série original com os personagens criados por Moore.
Quem conhece Alan Moore sabe que ele é o sujeito mais rabugento do mundo, que odeia todas as corporações e que depois da experiência (terrível) que teve com o cinema em A Liga Etraordinária, série brilhante que virou um filme medonho, ele passou a ser ainda mais implicante, abrindo mão inclusive dos dividendos que as adaptações de suas obras lhe renderiam. Alan Moore é um tremendo ranheta, OK, ele fica sugerindo boicotes aos filmes que adaptam suas obras (Eu tenho Watchmen e V de Vingança em casa, Alan, lamento.), e não poupa esforços em avacalhar geral qualquer coisa relacionada à Marvel e à DC comics, as duas maiores editoras de quadrinhos dos EUA, e quiçá, do mundo. Essa semana ele chegou a sugerir aos (corajosos) leitores que comprarem Before Watchmen que não comprem mais nada escrito por ele, e deixou claro que despreza os aficcionados por gibis que lerem Before Watchmen.
Eu sou um fã declarado de Moore, leio tudo o que ele faz e tenho muita coisa do cara na estante, todos os volumes que encontrei de A Liga Extraordinária, Do Inferno, V, Watchmen, Lost Girls... Mas vamos admitir, ás vezes ele exagera. Eu adoraria ver ele escrevendo algo do Homem-Aranha, por exemplo, o que é impossível pois ele despreza a Marvel, e sou fã do que ele fez no Batman, e gostaria de ver como Moore se sairia com um personagem que não é sombrio e taciturno como ele fez com o Superman. Ás vezes eu tenho a impressão que ele se perde na persona do bruxo mal-humorado que ele criou pra si, e acaba sendo intransigente demais.
Nesse caso, entretanto, de Before Watchmen, eu estou com o barbudão e não abro.
Watchmen é uma obra seminal do Moore. Pra muita gente, é seu melhor trabalho em quadrinhos, é o único gibi a figurar na lista dos cem romances mais importantes de todos os tempos da revista Time, e é certamente uma das três melhores obras de super-heróis já escritas. Watchmen se basta. Todas as referências e apêndices presentes na obra original são suficientes pra contar uma história sem arestas e que funciona à perfeição.
Claro, sempre há a chance de sair uma boa história desse Before Watchmen, mas falando serio, precisamos de histórias "boas" com personagens que já viveram o seu momento definitivo? Surgirá algo nessa mini-série que supere ou iguale Walter Kovacs na prisão? Ou o romance de Coruja e Spectral, ou a mão gigante de Manhattan entrando pela clarabóia em Karnak, ou a lamúria do Comediante ao lado de Moloch?
Watchmen precisa de um "before" tanto quanto O Poderoso Chefão precisa de uma continuação ou o Brasil precisa de mais senadores. Before Watchmen é mais um dos caça-níqueis que vem enchendo as páginas dos gibis ano após ano, e com um agravante: Ainda pode colocar autores menores em posição de desvirtuar um dos maiores quadrinhos já realizados.

X Marca o Lugar


O Licurgo entrou na casa do Manoel, jogou a mochila no chão, e se jogou no sofá. Nelson estava sem camisa, jogado em uma poltrona sob o ventilador de teto jogando video-game. Licurgo saudou:
-E aí?
-Buenas? - Respondeu Manoel, sem tirar os olhos da tela.
-Vai-se indo.
-Arram.
Ficaram em silêncio. Na tela um grupo de guerreiros enfrentava um animal que lembrava vagamente um dragão.
-Que porra é essa que tu tá jogando, velho? - Perguntou o Licurgo.
-RPG de computador. Path of Righteous. - Respondeu Manoel, ainda de olhos crivados na tela. - E o esquema lá? Com a mina?
-Fodi tudo. - Respondeu de pronto Licurgo.
-Esse é o Licurgo que eu conheço e amo... - Replicou Manoel, sem alterar o tom de voz.
-É... Esse sou eu... - Disse Licurgo.
-E aí? - Quis saber Manoel.
-E aí o quê?
-E aí, o que tu vai fazer?
-O que te leva a supôr que eu vou fazer alguma coisa?
-O fato de eu te conhecer.
Licurgo deixou o ar escapar por entre os lábios entreabertos:
-O que tu não sabe sobre mim enche o Fortaleza, velhinho.
-Quié isso?
-O maior cânion do Rio Grande do Sul, velho... - Suspirou Licurgo mexendo na mochila.
-Ah.
Novo silêncio. Licurgo largou um par de jogos do lado do Manoel.
-Que jogos são esses?
-Hã... Skyrim e Uncharted.
-Porque tu não me trouxe os dois Uncharted que eu tinha pedido?
-Porque não. Se tu não quer o Skyrim eu levo de volta.
-Não, não, eu quero.
Mais silêncio. Licurgo falou:
-E no mais?
-Na mesma. Tranquilo. - Respondeu Manoel.
-Eu não sei se eu ia conseguir me aposentar aos trinta e cinco, velho. - Declarou Licurgo olhando os pratos sujos e os papéis de doce em volta da cadeira de Manoel.
-Ah, tu se acostuma. - Declarou o amigo, fazendo uma careta enquanto controlava oito personagens na tela. - Quer ver o jogo aqui?
-Uh... Não. Vou ver em casa. Comprei Soda Limonada.
-Não comprou Fanta? Que milagre. - Inquiriu Manoel.
-Pra tu ver.
Licurgo se levantou apanhando a mochila. Uma foto de Manoel e sua esposa adornava uma cômoda próxima ao chiqueiro particular do amigo. Licurgo suspirou ao ver Manoel e Clarice de ombros e rostos colados dando sorrisos pra câmera.
Manoel pausou o jogo, se levantou e abraçou Licurgo fraternalmente.
-Eu sei que é uma merda, velho.
Licurgo abriu bem os olhos e encarou o teto. Sempre fazia isso quando achava que podia chorar. Mas não deu:
-É uma merda, mesmo, meu. É foda.
-Eu sei. - Disse Manoel.
Licurgo se desvencilhou do abraço do amigo e sentou novamente no sofá segurando o rosto entre as mãos. Manoel sentou ao seu lado e lhe deu um tapa nas costas.
-Desabafa.
Licurgo ficou em silêncio um instante, mas se ergueu.
-Não. Obrigado, mas não. - Disse enquanto respirava fundo e limpava o nariz. Manoel o olhou com uma expressão séria:
-Tu sabe que... O modo como tu administra a tua vida não é da minha conta mas... Dá margem a muita merda. Quanto tempo tu-
-O tempo que precisar, parceiro. - Interrompeu Licurgo.
-Quanto foi na outra vez? - Quis saber Manoel.
-Seis anos. Oito anos dependendo do ponto de vista. - Rebateu
Licurgo.
-E valeu a pena? - Quis saber o amigo.
-Não. - Respondeu o Licurgo.
-E então?
-Dessa vez é diferente. Eu disse que não iria a parte alguma, e adivinhe?
Manoel deu de ombros.
-Eu sou um homem de palavra e não há monge budista mais paciente do que eu.

terça-feira, 13 de março de 2012

Amigo Belicoso


-É o caralho! - Disse o Everaldo sentado na mesa do bar, ao lado de um sorridente Paulo Roberto e de um boquiaberto Geferson.
O Geferson, com "G", mesmo, e sem acento, era colega de trabalho do Paulo Roberto, e já ouvira falar do Everaldo, antes, mas achava que o Paulo Roberto exagerava. Não acreditava que o Everaldo fosse de verdade. Aconteceu que o Paulo Roberto, chamado Paulo Roberto em homenagem ao maior jogador de futebol a flanar pelos campos do Rio Grande do Sul, Paulo Roberto Falcão, e colorado até a medula, tinha discussões recorrentes sobre futebol com o Geferson, gremista crescido nos anos noventa, quando o time da Azenha viveu o ponto alto dos seus anos de glória.
O Paulo Roberto, cansado de discutir com o Geferson, encontrou a proverbial gota d'água quando o colega lhe disse que a torcida gremista jamais fora racista. E, quando interpelado por Paulo Roberto a respeito dos cantos de "macaco" direcionado pela torcida tricolor aos colorados, rebateu dizendo que tais cantos faziam referência ao fato de que a torcida do Inter imitava as iniciativas da torcida gremista.
Eis que entrou na equação Everaldo, torcedor gremista, ao menos na teoria, e filho de um pai tão fanático que o batizou homenageando ao lateral-esquerdo gremista que jogou na Seleção Brasileira de 70, e amante de histórias sombrias e de alcova.
Paulo Roberto, que achava exaustivas essas discussões futebolísticas, especialmente com fanáticos como Geferson encerrou a discussão, e, casualmente, o convidou para tomar um chope depois do trabalho. Lá, após apresentar Geferson ao Everaldo, e pedir as bebidas, Paulo Roberto, ardilosamente, levantou novamente o assunto do apelido de macaco da torcida colorada, e assim que Geferson falou, novamente, da tese das imitações, surgiu, em alto e bom som, o "é o caralho", lá do início.
-Todo mundo sabe, rapaz, que o grito de "macaco" tem cunho racista, não admitir isso é hipocrisia ou ignorância. O Inter abriu as portas do clube aos negros primeiro, buscando jogadores na antiga Liga da Canela Preta, pois negros não podiam jogar futebol com brancos, então tinham uma liga só sua. Claro, o Inter levou mais tempo pra abrir as portas do clube aos negros do que alguns clubes do centro do país, mas fez isso antes do Grêmio, que era um clube elitista comandado por alemães irredutíveis, que, diga-se de passagem, permanecem no comando do clube através dos seus descendentes e são responsáveis por muito dos infortúnios dese time.
O Geferson, engoliu em seco, olhou pro Paulo Roberto, que sorria sardônicamente, e perguntou ao colega:
-Ele é colorado?
-Colorado é a puta que te pariu, seu peidão! - Gritou Everaldo. -Eu sou gremista, mas ao contrário de ti, com essa cara de quem caiu da mudança, não nasci em 95, rapaz. Eu conheço a história do meu clube e do futebol, já pra saber o que há de errado.
-Argumenta, argumenta... - Encorajou Paulo Roberto, maquiavélico.
Geferson titubeou, mas respirou fundo e começou:
-Mas eu sabia que o troço aí do "macaco" era por causa da imitação...
-Que imitação, o quê, criatura? Tu não conhece o... O... Como é o nome do cara aquele, Pê Erre? Que foi rei Momo de Porto Alegre duzentos anos?
-Vicente Rao. - Acudiu Paulo Roberto.
-Isso, porra, Ricente Vao, o cara era do carnaval, e foi quem iniciou esse jeito de torcer com batuques, foguetório, cantos na arquibancada e o caralho a quatro. Claro, hoje em dia as torcidas do Brasil e da américa do Sul inteira imitam umas às outras, mas esse jeito de torcer do Rao e da torcida do Inter foram copiados por várias torcidas, inclusive a do grêmio.
-O que resultou na legendária faixa "Imitando Crioulo, hein?" em 1945, época do Rolo Compressor, que, por sinal, foi ele quem batizou. - Complementou Paulo Roberto.
Geferson bebeu um gole do seu chope. Estava vermelho, provavelmente de raiva:
-Bom, isso não importa. Eu continuo sendo gremista e não sou racista. - Sentenciou.
-Nem eu, ô palhaço filho de uma puta, mas esse papo de imitação é coisa de cagões de merda hipócritas feito o Odone, o Guerreiro e os outros politiqueiros filhos de um zorrilho que comandam o clube a décadas. Nunca vão chegar perto de um Fábio Koff... - Replicou Everaldo.
-Nem do Fernando Carvalho... Do Vitório Píffero, do Hermann, do Balvé... - Falou Paulo Roberto, casualmente.
-Cala a boca, Pê Erre, não fode.
Geferson não disse mais nada, terminou seu chope, largou uma nota de cinco em cima da mesa, e se despediu dizendo "até amanhã" pro Paulo Roberto, e "satisfação" pro Everaldo.
Quando Geferson saiu, Paulo Roberto deitou a cabeça na mesa, rindo, então se ergueu e olhou pro Everaldo:
-Cara, eu queria ter metade da disposição que tu tem pra discutir e contradizer todo mundo. Eu acho isso tão exaustivo, mas pra ti sai ao natural!
-Pois é, Pê Erre. Isso é uma forma de arte. Eu te diria que um dia tu chega lá, mas pelo formato da tua cabeça, eu acho que tu não tem o perfil pra isso.
-Everaldo, a frenologia foi considerada pseudo-ciência lá no século dezenove...
-Não, peraí, caralho, vamos falar melhor sobre isso, ô, garçom, traz mais um chope e uma coca, aqui, e gelado, hein ô, filho da puta...
Paulo Roberto não disse nada, sabia que não dissuadiria o amigo de sua defesa à frenologia, nem queria, sabia das vantagens de ter um amigo de verdade belicoso como Everaldo.

domingo, 11 de março de 2012

Across The Stars 2


Eram sete e vinte e sete da manhã, hoje, quando nos meus fones de ouvido tonitruaram as notas fantásticas de Across The Stars.
Eu estava assistindo Star Wars: Episódio II - O Ataque dos Clones e foi nessa hora em que Padmé e Anakin entraram, ambos algemados, na arena de Geonosis onde seriam executados por Darth Tyrannus e seus separatistas.
Eu não estava com vontade de dormir. Não queria mais jogar video game com meu joystick vermelho, nem ficar na internet pensando em coisas que haviam acontecido. Queria fazer alguma coisa pra me distrair por algum tempo, pra não precisar pensar em cheiros, sabores e imagens que ainda estão muito vivas na minha cabeça e me pareceu que ver um filme que eu adoro, com o som a todo o volume nos fones de ouvido enuanto tomava Fanta fosse a melhor maneira.
Ainda assim... O único filme que me ocorreu assistir foi Star Wars. Ainda assim, um Star Wars que tivesse Across The Stars tocando em altíssimo e bom som.
Nem que eu pudesse. Nem que eu soubesse como. Nem que eu quisesse, eu conseguiria parar de pensar a respeito. Imagine esquecer.

sábado, 10 de março de 2012

Resenha Cinema: John Carter - Entre Dois Mundos


Não é de hoje que John Carter, personagem criado por Edgar Rice Burroughs em uma série de contos publicados em revistas pulp cem anos atrás flerta com o cinema.
O filme já teve diversos nomes, conceitos, e diretores ligados ao projeto.
Quase decolou como A Princesa de Marte nas mãos de Robert Rodriguez algum tempo atrás. Já esteve sendo entregue a John Favreau, pouco depois, e isso só pra ficar no passado mais recente, depois que a Paramount comeu bola e perdeu os direitos sobre o filme.
A questão foi que, após essa bobeada da Paramount, John Carter caiu nas mãos da Disney. E a casa do Mickey, abraçou John, e lhe deu um novo protetor, Andrew Stanton, diretor da Pixar que ganhou o Oscar por Wall-E e dirigiu Toy Story e Procurando Nemo. Foi quando John finalmente decolou, e ganhou uma cara.
Na trama que adapta o primeiro dos onze(!) livros de Burroughs conhecemos um planeta Marte diferente do que estamos acostumados. Barsoom, o nome local do planeta, já foi repleto de vida, mas vem sendo sistematicamente destruído pela guerra.
O embate entre Helium e Zodanga vem devastando Marte, em especial depois que o Jeddak de Zodanga, Sab Than (Dominic West), recebe uma arma de grande poder dos Therns.
E o que o tal do John Carter (Taylor Kitsch), um capitão veterano da Guerra Civil norte-americana no fim do século XIX tem a ver com isso?
Nada.
Ao menos até ele, acidentalmente encontrar um alienígena Thern em uma caverna na terra e, após um grave mal entendido, ser transportado para Marte.
Lá, John se vê mais forte e rápido do que os locais e capaz de saltar sobre montanhas graças ao campo gravitacional, isso não o impede, porém, de ser feito prisioneiro pelos Tharks, uma raça de bárbaros marcianos com quatro braços e três metros de altura. Entre os Tharks John é acolhido como "braços direitos" do regente Tars Tarkas e, mais adiante, ve-se em um papel decisivo na guerra entre Helium e Zodanga, em especial depois de conhecer a princesa de Helium, Dejah Thoris (Lynn Collins, recheando com graça os trajes não tão sumários quanto gostaríamos da princesa marciana).
John Carter é um bom filme, tem um roteiro coeso e sem furos, cortesia do próprio Stanton, de Mark Andrews e de Michael Chabon. O elenco cheio de nomes reconhecíveis (Willem Dafoe, Samanta Morton e Thomas Haden Church, cobertos de pixels, Ciarán Hinds, James Purefoy, Mark Strong, Bryan Cranston e Daril Sabara) segura bem a peteca, e as sequências de ação, em sua maioria, não são gratuitas.
John Carter, porém, sofre por ficar com a cara de mais um filme repleto de efeitos visuais e herói com abdôme à mostra. As qualidades do filme, e há várias, não parecem suficientes para manter sua cabeça acima de outros espetáculos visuais sem o mesmo conteúdo.
Quando John Carter - Entre Dois Mundos termina, percebe-se que os produtores estão babando pra seguir contando as histórias da Saga de Barsoom de Burroughs, mas há audiência para mais um filme desses, por melhor que seja quando comparado à maioria?
John Carter é uma aventura competente e divertida, mas não tem o cacife de Matrix, A Sociedade do Anel ou Uma Nova Esperança.
Se surgir uma nova viagem a Marte, certamente comprarei minha passagem e irei ao cinema para acompanhá-la, mas não vou roer as unhas de antecipação e não sei se alguém o fará.

"-Eu já cheguei atrasado uma vez. Não vou deixar isso acontecer novamente."

sexta-feira, 9 de março de 2012

Pra esquecer... Ou não.


Há coisas nessa vida que a gente não consegue esquecer. Uma vez, quando eu era piá, estava saindo de um mercadinho e um cachorro, desses pequenininhos, tipo chihuahua, latiu pra mim, e eu, assustado, corri pra dentro do mercadinho com meu gibi do Homem-Aranha e meu Chicabon. Tinha uma fila no orelhão (É, pra tu ver como eu sou velho, quando eu era criança, telefone em casa era raridade, e celular era coisa do Dick Tracy.), e todo mundo começou a rir de mim. Foi um dos momentos mais humilhantes da minha vida. Me lembro que tinha um sujeito na fila, e ele pareceu mais... Não sei. Mais acessível do que o resto do pessoal Ele parou de rir antes dos outros, e eu, sei lá, naquela minha situação tão terrível pro meu universo de oito anos, procurei o olhar dele como quem busca um abrigo. Um pouco de cumplicidade ou compreensão. Qualquer coisa que me afastasse da tragédia social que aquela risada coletiva pareceu pra mim naquele momento.
Mas não, ele balançou a cabeça negativamente e deu mais uma risada. Deixando claro que não. Não havia abrigo, cumplicidade ou compreensão naquela fila, e que eu deveria remoer aquele susto e aquela humilhação sozinho no travesseiro durante aquela madrugada.
É engraçado o tipo de coisa que a gente guarda, e a riqueza de detalhes. Eu me lembro do meu blusão azul marinho com uns cubos colordos na frente. Da calça de abrigo cinza e dos tênis All Star azul escuro. Lembro do picolé, e da capa do gibi, um Homem-Aranha número setenta e sete em que três quadros mostravam o Aranha ajeitando o seu equipamento ao lado de uma imagem do herói em pé, em uma posição meio ameaçadora. Lembro do cara que me negou compreensão, e do seu blusão branco e do seu cabelo com mullet, que naquela época todo mundo usava mullets... E eu me lembro de que, várias vezes, ao longo dos anos seguintes, eu me senti mal ao lembrar daquela noite. Como se, cada vez que eu me lembrasse, eu sentisse novamente aquela humilhação, aquele embaraçamento quando todos riam de mim.
Não sei o peso que aquele susto e a consequente humilhação daquela noite teve impacto sobre a minha personalidade como adulto. O quanto ser destemido se tornou importante pra mim por conta dos medos e das humilhações infantis. Realmente não sei.
Mas sei que tem coisas que eu simplesmente não soube esquecer, mesmo que quisesse. Essa foi uma delas.
E tem outras tantas, que eu não conseguiria equecer mesmo se quisesse, uma categoria onde se encaixam algumas poucas coisas... Alguns sabores, odores, pessoas e histórias.
Eu não tenho todas as respostas. Eu não consigo agir sempre com a frieza que a coisa certa exige. Eu tento ser o melhor possível, e faço isso na certeza de que não vai ser o suficiente. Faço o possível sabendo que, em algum momento, alguém vai se magoar, e infelizmente não serei só eu. E tento arcar com as consequências. Outra coisa que nem sempre é possível.
Mas tem coisas que eu não consigo esquecer. Nem fingir que não aconteceram. Eu mantenho comigo. Sempre comigo. Não importa o quê.

terça-feira, 6 de março de 2012

Resenha Cinema: Poder Sem Limites


Quando vi o trailer de Poder Sem Limites eu confesso que achei o filme com a maior cara dessas porcarias tipo O Último Exorcismo, Apollo 18, Atividade Paranormal 2 e todas essas produções capengas que acham que uma câmera tremida vai dar a ideia de estética documental e salvar a lavoura gerando um lucro absurdo. Na verdade, achei que fosse uma mistura desse tipo de filme com aquele O Pacto, um filme de horror meia-boca situado na high school querendo atrair fãs de filmes de horror e da miserável Saga Crepúsculo.
Entretanto a torrente de boas críticas que o filme recebeu me fizeram repensar a minha ideia inicial de ver o filme em DVD e olhe lá, e encarar uma sessão de cinema da produção.
Foi munido do generoso e tradicionalíssimo milk shake de chocolate do Bob's que eu me sentei confortavelmente pra assistir ao filme no Shopping Total, e devo dizer que, se não fosse pelo trio de cretinos sentados na minha frente, e que não conseguiam ficar calados durante o filme (Sério, qual é o problema dessa nova geração? Será que é tão difícil fazer silêncio por oitenta e três minutos enquanto se vê um filme?), teria sido uma sessão de cinema perfeita.
Não que Poder Sem Limites seja um filme perfeito, claro que não, longe disso. Mas é, sim, um ótimo filme.
A trama é centrada no jovem Andrew Detmer (Dane DeHaan), o típico nerd excluído do microverso do ensino médio norte-americano. Andrew é isolado, vítima de bullying na escola e em casa e não tem amigos, exceto pelo primo Matt (Alex Russell), pseudo-filósofo que não chega a ser um exemplo de sociabilidade, mas está anos-luz à frente de Andrew, que não anda com gurias, e, pra piorar, ainda tem a mãe com uma dioença grave.
Um dia, Andrew decide que vai gravar toda a sua vida com uma câmera, e é com essa câmera que, durante uma rave, Andrew e seu primo Matt, mais o atleta popular Steve Montgomery (Michael B. Jordan) encontram uma estranha caverna, e, ao entrar nela, se deparam com alguma coisa que não conseguem explicar. Após esse contato, os três amigos passam a desenvolver habilidades super-humanas, e imediatamente começam a usá-las em prol de... Pregar peças um no outro e de curtição.
Essa honestidade para o que moleques do ensino médio fariam se desenvolvessem super-poderes é um dos pontos altos de Poder Sem Limites. Eu desafio qualquer moleque normal a assistir o filme e dizer, honestamente, que não faria exatamente a mesma coisa com suas habilidades.
Andrew, Matt e Steve não tem nenhuma tragédia na sua vida para direcionar seus grandes poderes ao encontro de grandes responsabilidades, de modo que, pra eles, essas habilidades são apenas novidades para serem aproveitadas.
As sequências em que eles aprendem a usar seus poderes rendem cenas muito divertidas, repletas de boas sacadas e referências sutis (Ou nem tanto) que vão de Star Wars ao trailer do Superman de 1978.
Conforme os três amigos vão desenvolvendo suas habilidades e se tornando melhores no seu uso (é como um músculo, diz Matt à certa altura.), eles amadurecem, também, como ser humano, o que não significa, necessariamente, bons resultados.
Mesmo sendo um filme curto, de 83 minutos, Poder Sem Limites tem como grande trunfo centrar a atenção em seus protagonistas, fazendo com que nos reconheçamos naqueles personagens e nos preocupemos com eles. Ainda oferece uma interessante visão filosófica da trama através de Matt, e vai levando as coisas em um agradável banho-maria até um desfecho literalmente explosivo.
O diretor Josh Trank, co-roteirista ao lado de Max Landis consegue criar um ótimo filme de origem de super-herói, e mostrar que, por mais pirotecnias que se queira usar em um super-filme, nada supera o desenvolvimento de personagens e a honestidade de um bom roteiro.

"É, dessa vez foi o cara negro."

Resenha Cinema: Drive


Conforme vão surgindo na tela os créditos com uma letra emendada em pink, de imediato nós sabemos que estamos diante de um filme galgado, mais do que no visual, na referência.
Desde o início Drive deixa claro que as referências são uma parte importante da identidade do filme, e se estendem muito além dos créditos de abertura, oitentista até a raíz da alma, essas referências vão se sobrepondo conforme a trama anda.
O herói sem nome (Outra referência, que serve para lembrar um mundaréu de faroestes...) vivido por Ryan Gosling existe apenas no momento. O personagem, conforme conta seu amigo Shannon (Bryan Cranston) surge de lugar nenhum pedindo emprego, e, ao final do filme, fica nebuloso também o seu futuro, o que importa é o que ele faz entre uma coisa e a outra, no agora.
E, como bom herói sem nome que é, o personagem faz o que for necessário, seja trabalhar em uma oficina, realizar trabalhos de dublê em cenas perigosas com automóveis, ou pilotar carros de fuga, contanto que isso não macule o seu código de honra.
Confesso que, ao começar a ver o filme, fiquei com muito medo da sequência inicial, excessivamente parecida com o começo de Carga Explosiva, a série de filmes descerebrados de Jason Statham e Luc Besson. Ledo engano.
Quando eu achei que a ação degringolaria pra uma perseguição desenfreada chupada de um dos filmes da série Bourne, fui surpreendido pela sequência tensa e comedida que se seguiu nas mãos do diretor Nicolas Winding Refn.
Esse espaço inicial do comedimento vai sendo ocupado apenas pela tensão conforme o protagonista se envolve com a vizinha Irene (Carrey Mulligan, uma gracinha.), uma garçonete que cuida sozinha do filho Benício (dois clichês.) enquanto o marido está na prisão (Ops, três.).
É justamente quando o marido, Standard Gabriel (Oscar Isaac) sai da penitenciária que o herói se vê obrigado a agir. Para pagar uma dívida de Gabriel com gângsters, topa fazer um trabalho em um assalto. Quando tudo dá errado, o mocinho precisa lidar com os problemas e se abster de suas regras, fazendo o que for necessário pra permanecer vivo e proteger Irene e Benício.
O festival de situações e personagens recorrentes e quase caricatos misturados à estética oitentista do longa lhe dão todo um charme kitsch. A despeito dos exageros visuais, e da teatralidade de certas situações, o filme embala, e os personagens unidimensionais a ponto de praticamente usarem uniformes (Jaqueta de escorpião e palito de dentes pro mocinho, agasalho esportivo pro mafioso), mas bem interpretados, acabam gerando a simpatia ou a repulsa que exigem.
Os mafiosos judeus vividos por Ron Perlman e um surpreendentemente convincente Albert Brooks são tão malvados quanto requer a cartilha dos vilões que geram grandes heróis, e algumas das sequências, como a visita mascarada à pizzaria, ou a cena do beijo no elevador, são lindas, sem contar um par de boas cenas de perseguição que um filme com esse título obviamente demanda.
No fim das contas, não achei que Drive seja "o grande esquecido do Oscar", essa, pra mim, foi Tilda Swinton, mas certamente é um filme que reúne qualidade mais do que suficiente pra merecer ser assistido.

"Existem três mil ruas nessa cidade. Você não precisa conhecer a rota. Você me dá uma hora e um local, eu te dou uma janela de cinco minutos. Qualquer coisa que aconteça nesse período, e eu sou seu. Não importa o quê. Qualquer coisa que aconteça um minuto antes ou depois disso, e você está por conta própria. Eu não participo do trabalho, eu não carrego armas. Eu só dirijo. Você entendeu?"

segunda-feira, 5 de março de 2012

Resenha Blu-Ray: Amor À Toda Prova


Foi na qualidade de alguém que não gosta de comédias românticas, mas que é fã de Julianne Moore e de Steve Carrel que eu aluguei essa Amor à Toda Prova na sexta-feira passada sem lá grandes expectativas. Expectativas, aliás, que foram ficando mais baixas quando o filme ficou pouquíssimo tempo em cartaz aqui em Porto Alegre.
Mas o filme foi uma grata surpresa, em especial por se distanciar de maneira saudável da cartilha tradicional das comédias românticas.
No longa conhecemos Cal (Carrel) e Emily (Moore) Weaver, um casal de meia idade, que namora desde o ensino médio, e que depois de quase vinte e cinco anos de casados, com três filhos, e uma vida construída já não tem mais a chama de outrora.
Isso fica bastante evidente quando, após um jantar, Emily pede o divórcio a Cal, e o informa que dormiu com outro homem.
Após alguns dias curtindo a inevitável fossa do fim da relação, Cal recebe de Jacob Palmer (Ryan Gosling), um conquistador local, a oferta de auxílio para se reencontrar enquanto homem, e tocar em frente a nova vida de solteiro.
Algumas das boas sequências cômicas do filme estão no treinamento de Cal, enquanto ele é "Miyagizado" por Jacob de modo a voltar à pista pra negócio.
O filme, ainda bem, não se restringe apenas a este núcleo, muito do que há de tocante no filme está no elenco de apoio e nas subtramas paralelas, como do filho mais novo de Cal e Emily, Robbie (Johna Bobo), que vive um romance infantil que não soa forçado ou cretino, no drama da babá Jessica (Analeigh Tipton) e seu amor não correspondido, e em Hannah (Emma Stone) que se cansa de esperar pelo príncipe encantado.
A qualidade do elenco (Que ainda tem Kevin Bacon, Marisa Tomei e , capaz de expressar muito sem precisar mastigar nada pra audiência, e essa variedade de ramificações na trama ajudam o espectador a não se entediar e a se importar com todos os personagens, talvez a coisa mais importante quando se assiste a um filme.
Amor À Toda Prova pode não ser o grande filme da carreira de nenhum dos envolvidos, mas ao menos refresca um pouco o cenário das comédias românticas, adicionando um pouco da acidez do drama e da honestidade à uma mistura que já anda enjoativa não é de agora.

"-Foi um ano difícil, não é?
-Como assim?"