Pesquisar este blog

terça-feira, 31 de maio de 2016

Resenha Filme: Zerando a Vida


Eu percebi que, nos últimos anos, venho pegando pesado com Adam Sandler nas minhas resenhas.
Não é pessoal. Não tenho nada contra Sandler, e até dei uma procurada pelo arquivo do blogue pra confirmar isso. Tá Rindo do Quê recebeu uma crítica positiva em 2010, e mencionei Embriagado de Amor e Reine Sobre Mim como filmes dos quais gostava, e tenho certeza absoluta que devo ter mencionado Afinado no Amor de forma positiva em algum momento.
Pra provar que não tenho nenhuma rixa pessoal contra Sandler, deixa eu abrir a resenha de Zerando a Vida, segundo de quatro filmes do acordo da produtora do ator, Happy Madison com o serviço de streaming Netflix, com um elogio:
Zerando a Vida é infinitamente melhor do que The Ridiculous Six.
Pronto.
Minha primeira manifestação sobre o longa é elogiosa.
E sincera.
O novo longa de Sandler, dirigido por Steven Brill e co-estrelado por David Spade é, sim, muito superior ao primeiro filme do comediante em parceria com a Netflix.
Infelizmente isso é provavelmente a única coisa de fato positiva que se pode destacar de Zerando a Vida.
No longa, narrado do ponto de vista de Charlie McMillan (Spade), sabemos através do próprio que ele é a epítome do loser norte-americano.
Charlie chegou aos quarenta e tantos morando na mesma casa onde cresceu, dirigindo o mesmo carro da época de colégio, trabalha em um estande de um banco que fica dentro de um supermercado e casou com a moça por quem era apaixonado no ensino médio, uma tremenda vagabunda que o trai com frequência, e trouxe na bagagem um par de filhos gêmeos que não o respeitam e um ex-marido que é o ficha um nas escapadas da piranha.
As coisas mudam para Charlie quando seu melhor amigo dos tempos da escola o reencontra na reunião de vinte e cinco anos da turma.
Max (Sandler), afirma ter realizado seus sonhos de criança e se transformado em um agente do FBI. Ele conta estar vivendo o sonho e não acredita que Charlie tenha desperdiçado sua vida e seu potencial em uma existência medíocre e infeliz.
Após curtir uma noite de parceria com o antigo amigo, Charlie aceita o convite de Max para um final de semana em seu novo barco.
É durante esse final de semana que Max põe em prática um plano mirabolante de forjar a morte de ambos para que eles possam recomeçar suas vidas da maneira como sonharam, com novas identidades e sem a bagagem dos anos de vida dura atrás de si.
Max consegue realizar a farsa rapidamente com a ajuda de dois cadáveres que ele tirou do necrotério, mas quando a dupla começa a seguir a pista de uma chave encontrada no reto de um dos defuntos, o que os leva a um cofre bancário repleto de dinheiro e à chave de uma mansão à beira mar em Porto Rico, eles percebem que talvez tenham escolhido a dupla de cadáveres errada para personificar conforme se veem perseguidos por assassinos profissionais e enrolados em uma trama que envolve o grandes empresas farmacêuticas, gangues de motoqueiros, a cura do câncer e o American Express.
Como eu já disse, muito melhor do que The Ridiculous Six, mas sejamos francos, isso chega a ser um mérito?
Por mais que road trips sejam um filão fértil que casa muito bem com comédias de ação, isso jamais chega a ser bem aproveitado por Zerando a Vida, um filme escrito sem inspiração por Kevin Barnett e Chris Pappas e dirigido de maneira preguiçosa por Brill.
Sandler interpreta praticamente o mesmo sujeito de todos os seus outros filmes, mas ao menos não é a versão fodona de si mesmo de longas como Zohan e The Ridiculous Six, mas aquela um pouco mais rabugenta e pateta de Pixels e A Herança de Mr. Deeds. Ainda assim, ele é um inexplicável "Action Jackson" capaz de trocar tiros com pistoleiros de aluguel, realizar manobras iradas de carro e só não é mesmo do FBI porque não sabe empinar a sua moto.
Spade, por sua vez, faz o mais clichê do sujeito-de-quarenta-e-tantos-que-não-sabe-onde-sua-vida-deu-errado arrastado para aventuras pelo amigo porra louca a quem não sabe dizer não.
O longa segue religiosamente toda a cartilha do gênero, com o roteiro repetindo e reciclando pequenas reviravoltas que nada têm de surpreendentes enquanto personagem após personagem é revelado gay em piadas que podem ofender os mais sensíveis e os mais frescos mas falham em sua principal tarefa:
A de fazer rir.
Absolutamente previsível, repetindo situações várias vezes ao longo do filme, com um vilão oculto que está na cara e uma grande reviravolta final que, de tão mastigada e regurgitada na audiência perde todo o peso dramático, Zerando a Vida segue a fórmula dos filmes habituais de Sandler com a Happy Madison, incluindo aí pontas para os amigos do ator (o elenco tem, além de Spade, Sandler, Paula Patton e Katherine Hanhn participações de Sean Astin, Luis Guzmán, Nick Swardson e Jackie Sandler, esposa de Adam, além das filhas e do sobrinho dele) a escatologia quase obrigatória e algumas piadas sexuais, o longa só não falha completamente porque tem Paula (ohmeuDeus) Patton, linda de morrer e consegue arrancar alguns sorrisos e ao menos umas três risadas genuínas (pra mim foram exatamente três, casualmente em momentos em que não havia nenhuma pirotecnia ou apelação, mas apenas camaradagem verdadeira entre Sandler e Spade).
Zerando a Vinda é bem superior a Pixels e The Ridiculous Six, empreitadas de Sandler em 2015 que lhe valeram pódio duplo na minha lista de piores do ano, mas isso está longe de querer dizer que o filme é bom.
Ele não é horroroso como os últimos trabalhos do comediante, mas poderia ser classificado, na melhor das hipóteses como "apenas ruim".
Quem sabe o terceiro filme da dobradinha Happy Madison/Netflix seja "razoável" e o quarto "bom"?
Resta esperar.

"-É exatamente por isso que a gente parou de andar junto, Max, eu tô lembrando, você é louco..."

sábado, 28 de maio de 2016

Resenha Cinema: O Jogo do Dinheiro


Uma das coisas idiotas da TV norte-americana que nós (ainda) não adotamos aqui no Brasil foram os programas malucos sobre mercado financeiro.
Nos EUA existem vários.
São programas sobre bolsa de valores, cotação, índices, enfim, todas aquelas coisas das quais a maioria dos espectadores ouve vagamente na hora em que William Bonner mostra um gráfico atrás de si e vala do preço do dólar e se a Bovespa fechou em alta ou em baixa e zero vírgula alguma coisa por cento...
Nos EUA, com uma bolsa de valores consideravelmente maior e mais interesse público no mercado, já que mais gente toma parte, existe um nicho de programas de TV que falam exclusivamente do assunto, dando dicas e mostrando indicadores de uma forma descontraída, repleta de piadinhas e gagues visuais e sonoras, dando sequência à tradição estadunidense de transformar comediantes em apresentadores.
Em O Jogo do Dinheiro, George Clooney interpreta um desses apresentadores. Lee Gates.
Gates apresenta o programa Money Monster do título original, um programa onde analisa o mercado financeiro e dá dicas aos telespectadores de onde colocarem seus caraminguás, tudo isso enquanto dança, canta, simula lutas de boxe, usa cartolas coloridas, solta pombos e todo o tipo de apelação cômico-ridícula que se puder imaginar.
Lee é um sujeito chato e egocêntrico, que acha que os astros orbitam seu umbigo e é cheio daquela fanfarronice e displicência dos famosos, tanto que sua diretora de anos, Patty Fenn (Julia Roberts) está prestes a largar o posto para trabalhar em outra emissora.
É justamente às vésperas do último dia de trabalho de Patty que a Ibis, empresa do gênio dos investimentos Walt Camby (Dominic West), despenca violentamente, perdendo 800 milhões de dólares em capital e destruindo as economias de milhares de investidores após o que a empresa denomina uma "pane" no seu algoritmo.
Prestes a abordar o assunto com sua costumeira irreverência no programa, Lee e Patty são surpreendidos pela chegada de Kyle Budwell (Jack O'Connell, de Invencível).
Jack é um rapaz pobre, que trabalha como entregador, e perdeu todo o seu dinheiro na quebra da Ibis após seguir os conselhos de Lee Gates, que passou semanas falando sobre o quão seguros eram os papéis da companhia.
O desesperado Kyle obriga Lee a vestir um colete de explosivos e mantém o apresentador sob a mira de uma pistola enquanto busca respostas para o que deu errado com a Ibis, e porque ele perdeu tudo enquanto o dono da empresa anda de um lado para o outro em seus jatinhos particulares.
Enquanto a polícia cerca o estúdio julgando que a eliminação de Kyle é a meta e a vida de Lee pode ser dano colateral aceitável, Patty e sua equipe lutam desesperadamente para encontrar o sumido Camby e oferecer ao desesperado investidor as respostas pela qual ele anseia.
É muito bom.
O longa dirigido com segurança por Jodie Foster, afastada da direção desde Um Novo Despertar, é uma bem dosada mistura da crítica ao capitalismo desenfreado de filmes como Grande Demais pra Quebrar e A Grande Aposta, um filme de sítio policial como Um Dia de Cão ou O Plano Perfeito (onde Foster trabalhou e de onde parece ter aprendido um bocado com Spike Lee), e um longa de sátira à mídia como Rede de Intrigas que se equilibra em um roteiro enxuto de Jamie Linden, Alan DiFiore e Jim Kouf e no bom trabalho de um elenco muito seguro que conta com gente como Giancarlo Esposito (o Gus Fring de Breaking Bad), Ron Sprecher (de Argo) e a linda Caitriona Balfe, o foco é todo na trinca de protagonistas.
Jack O'Connell manda bem como o desesperado homem que perdeu tudo enquanto Julia Roberts é uma atriz segura que, à essa altura já deixou claro o quanto é talentosa. Ela é, em grande parte do filme, a voz da razão de Gates, e sua guardiã protetora, movendo céus e terra para mantê-lo o quão seguro for possível, e o faz com graça e segurança, além disso sua química com George Clooney é reconhecida desde Onze Homens e Um Segredo, e continua ativa, ainda que, durante a maior parte da projeção, eles se comuniquem apenas por um ponto eletrônico.
Clooney, por sinal, chegou a um ponto de sua carreira em que encontrou seu lugar especial, e consegue convencer mesmo fazendo apenas variações do mesmo tema como gente do calibre de Denzel Washington.
Seu Lee Gates é um personagem que podemos ler depois da primeira cena. A celebridade que aprenderá a ver a vida com outros olhos após uma dolorida lição. Ainda assim, Clooney o torna convincente, abraça com vontade a tal lição, e a faz crível.
O que vale para Clooney, por sinal, também vale para o longa como um todo. Não há novidades em O Jogo do Dinheiro, é um longa, sob diversos aspectos, absolutamente previsível, mas isso nem sempre é uma coisa negativa.
Quando bem conduzida, ganhando peso nos momentos certos, mesmo a história mais clichê pode deixar o espectador na ponta da cadeira, e mesmo o personagem mais recorrente vai suscitar torcida da platéia.
É o caso em O Jogo do Dinheiro.
Assista no cinema, vale a pena.

"-Você veio aqui atrás de respostas. Você merece conseguir essas respostas."

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Feliz Dia da Toalha


Se tu sabe onde está a tua toalha após rodar por toda a galáxia, acampar, pedir carona, lutar contra terríveis obstáculos, dar a volta por cima, bem, meus amigos, vocês são dignos de respeito, e nenhum estrito vai ser capaz de lhes negar o empréstimo de algo que vocês acidentalmente tenham "perdido".
Neste 25 de maio, meus honestos e calorosos desejos de um feliz dia da toalha a todos vocês, nerds e não nerds, saibam ou não de quê se trata essa efeméride.
Pra quem não sabe, uma data para lembrar o autor da melhor trilogia espacial em quatro partes dividida em cinco livros já escrita:
O Guia do Mochileiro das Galáxias, Douglas Adams.
O escritor que fez o mundo rir e chorar (de rir) com sua improvável obra de ficção científica é homenageado todos os anos no Dia do Orgulho Nerd com o Dia da Toalha, artefato de suma importância para os mochileiros interessados em desbravar o cosmos, e ao qual Adams dedicou vários parágrafos, e que nerds mundo afora ostentam com orgulho pelas ruas nessa data.
Saiba ou não quem é Zaphod Beeblebrox, o que é um Vogon, quem construiu nossos fiordes, como se pronuncia Slatibartfast, e que a resposta à pergunta definitiva sobre a vida o universo e tudo mais é 42, tendo gostado, ou não, de ...E Tem Outra Coisa, um feliz dia da Toalha pra ti, e não esqueça, aconteça o que acontecer:
Não Entrem em Pânico.

Uma Palavra


O Cássio, arfava sentindo o suor lhe escorrer dos cabelos pela testa e acumular-se em suas sobrancelhas. A transpiração lhe descia abundante, vertendo pelas costas e peito, as gotículas aflorando entre os pelos de seus braços enquanto ele sustentava o movimento ritmado do quadril para e frente e para trás de maneira incansável.
Estava fazendo sexo com Magda.
Magda, vinte e poucos, cabelos negros escorridos do topo da cabeça até a cinturinha de pilão que servia de anúncio aos quadris generosos que Cássio agora segurava com firmeza enquanto mantinha o vai e vem contrito, quase um mantra cadenciado por sua respiração pesada.
Perguntou-se, de súbito, há quanto tempo estava naquilo. Haviam começado fazendo sexo de frente por algum tempo, depois, ela sugerira ficar de quatro. E era como estavam há... O quê? Uns quinze minutos? Vinte? Talvez fossem vinte. Devia ter ligado a TV. Assim teria alguma noção de tempo. Como estavam, no escuro, ele sequer podia olhar o relógio de pulso que pousara sobre o criado mudo. É... Deviam ser vinte minutos...
Torceu para que fossem vinte.
Pois sentiu-se na iminência do orgasmo.
Pudera. Magda era estonteante. Um avião. Mulher bonita, mesmo. Belo rosto. Nariz arrebitado, olhos amendoados, boca bem desenhada, ainda que não muito carnuda e um corpão que, para Cássio, fora, de fato, o diferencial. Não o corpo todo, mas um detalhe em particular.
Ainda que Magda tivesse uma bunda épica, que parecia lapidada de um grande e redondo diamante, tão rija era, uma cinturinha de pilão, e coxas tonificadas, mas não musculosas, nem finas nem grossas demais, o que encantara, de fato, Cássio, fora a barriga de Magda.
Magda tinha barriga de "musa fitness".
Não era uma parede formada por oito ou seis tijolinhos de músculo simétricos, mas uma barriga chapada que, sob a pele fina e bronzeada de Magda revelava, ante certos movimentos, a musculatura trabalhada, mas não hipertrofiada, de um corpo inapelavelmente feminino.
Aquela barriga, atlética, mas que dizia em letras garrafais e néon piscante "Feminilidade", era o diferencial que levara Cássio a cortejar Magda até convencê-la a sair com ele, e então, deixá-lo levá-la para a cama.
Agora, ali estava ele, suando em profusão enquanto se esforçava com cada fibra de seu ser a não arrefecer o ritmo das estocadas que levariam Magda a alcançar píncaros inéditos de prazer.
Ele precisava demonstrar, naquela trepada, toda a sua habilidade de alcova, para que Magda soubesse que, além de bom provedor, inteligente, bom de papo e boa-pinta, Cássio também era um amante a quem ela não quereria perder.
Se nada mais desse certo, se Magda não se impressionasse com retórica, segurança, sucesso financeiro moderado e bom-gosto, ela precisava ficar, na falta de expressão melhor, viciada em sua pica.
E era trabalhando nesse sentido que Cássio caprichara nas preliminares, aplicando uma generosa dose de sexo oral em Magda, muito além do que ele habitualmente fazia, chegando,à certa altura, a sentir dores no queixo pelo tempo demasiado de boca aberta e músculos da mandíbula contraídos, e após essa longa sessão de cunilíngua, ele se mantivera sempre ali, firme e forte, sem se submeter ao cansaço da metelança quase ininterrupta na certeza de quê seus esforços lhe renderiam a chave, se não ao coração, aos centros de prazer do cérebro de Magda.
Imaginou, esperançoso, se enquanto pensava nisso outros cinco minutos teriam se passado...
Não sabia. De qualquer forma, não podia mais resistir. Ver as costas de Magda serpenteando diante de si enquanto arremetia como se fosse um kamikaze no comando de um Zero e Magda um porta-aviões norte-americano era uma imagem tão erótica que mesmo alusões à Segunda Guerra Mundial já não surtiam efeito na tentativa de retardar o inevitável.
Será que já haviam sido trinta minutos?
Seria tão bom se tivessem sido trinta...
Anunciou em um meio ganido, meio suspiro:
-Vou gozar...
-Óquei.
Magda respondeu.
Oh-Oh... Como assim "óquei"? "óquei" sem nem sequer mudar o tom de voz? Cássio esperava ao menos um "Goza, vai."... Alguma coisa do gênero... Um pouco de baixaria não seria ruim. Um lisonjeiro "Isso, junto comigo", nem precisava ser o ideal, um "Vai que eu já fui três vezes"... "Mas óquei"?
Sem nenhuma indicação de que estava agradando?
Sem nenhuma alteração respiratória?
Sem nem um indício de prazer?
Com uma toada monocórdia que praticamente atestava um "até que enfim...".
Brochou.
Lançamento abortado com o míssil no meio do silo.
Caiu sobre os joelhos e tirava a camisinha enquanto Magda se virou, sorriu um sorriso forçado e apanhou o celular na bolsa.
Cássio levantou, foi ao banheiro, e se demorou de propósito esperando que Magda se vestisse.
Ela foi embora após o que pareceu uma eternidade, despediu-se com um selinho célere e um "me liga" sem convicção.
Cássio tentou esquecer do assunto. Supôs que se o enterrasse bem fundo e jamais falasse à respeito, seria como se jamais tivesse acontecido.
Nunca conseguiu superar de maneira completa, porém.
Pelo resto de sua vida, toda a vez que seu olhar se cruzava com o de alguma moça que ria, ele logo pensava se não era uma amiga de Magda a quem ela contara do ocorrido.
O "óquei" deixou uma cicatriz em um lugar que Cássio jamais saberia curar:
Seu ego masculino.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Resenha Blu-Ray: Jogos Vorazes - A Esperança: O Final


Complementando minha dose semanal de Jennifer Lawrence, resolvi, após assistir ao ótimo X-Men: Apocalipse, ver como terminou todo aquele problema em Panem, com as agruras de Katniss Everdeen, Gale Hawthorne e Peeta Melark contra a opressão da Capital e seu ultrajante regime opressor sugando os distritos.
Estou falando, claro, de Jogos Vorazes, a franquia baseada na trilogia literária de Suzanne Collins que rendeu quase três bilhões de dólares em bilheterias com seus quatro filmes (porque trilogias literárias escritas para o público jovem sempre ficam meio Guia do Mochileiro da galáxia e se tornam trilogias em quatro partes quando chegam ao cinema? Seria ganância?).
De qualquer forma, até que demorei para assistir A Esperança - O Final. Havia gostado dos demais filmes da série, ainda que tenha assistido apenas ao primeiro no cinema, e se não voltei à sala escura para as sequências, não foi por mais senão a lotação das salas e o excesso de horários dublados.
Como já havia acontecido nos outros dois longas, não posso dizer que não senti uma ponta de arrependimento por ter deixado de ver o fim da saga de Katniss em tela grande.
O longa abre de onde o anterior havia terminado.
Katniss (Jennifer Lawrence, a delícia talentosa à qual todos nos rendemos) está no bunker sob as ruínas do distrito 13 recebendo atendimento após quase ser estrangulada por Peeta (Josh Hutcherson), que sofreu uma terrível lavagem cerebral enquanto foi refém do presidente Snow (Donald Sutherland) na capital.
Enquanto os rebeldes liderados por Plutarch Heavensbee (O falecido Phillip Seymour Hoffman) e Alma Coin (Julianne Moore) seguem ganhando terreno sobre a Capital, vencendo batalhas e conquistando novos distritos, a possibilidade de uma real invasão ao covil de Snow se torna uma possibilidade cada vez mais discernível no horizonte da rebelião, e diante desse cenário, ser um símbolo e uma poderosa ferramenta de propaganda já não serve mais para Katniss.
Ela planeja se perfilar a seus companheiros rebeldes e pôr um fim definitivo aos desmandos de Coriolanus Snow e seu regime que ceifou milhares de vidas e sangrou toda a Panem em nome do espalhafatoso estilo de vida da Capital. E ela planeja fazer isso enfiando uma flecha no meio dos cornos do ditador.
Para tanto, Katniss se junta ao Esquadrão 451, um pelotão de super-estrelas que estarão sempre alguns dias atrás da infantaria rebelde de modo a ter um pouco mais de segurança, haja vista que são os rostos da causa.
A força-tarefa é composta, entre outros, por Cressida (Natalie Dormer, de Game of Thrones), seus colegas, os irmãos Castor (Wes Chatham) e Pollux (Elden Henson, de Demolidor), mais Finnick Odair (Sam Claflin) e Gale (Liam Hemsworth), sob o comando de Boggs (Mahershala Ali, de House of Cards) se infiltrará na Capital de Panem, transformada em um Jogo Voraz gigante repleto de armadilhas chamadas "Casulos", que contém as mais variadas espécies de máquinas mortíferas preparadas para triturar, perfurar, queimar, explodir ou esfolar quem se aventurar pelas ruas da cidade.
Pra piorar, o esforço de propaganda de Plutarch e da presidente Coin acha que é uma boa ideia ter Peeta tomando parte no grupo, á despeito de ele ainda estar sofrendo os efeitos do período de tortura nas garras de Snow e ter frequentes rompantes homicidas para com seus companheiros de invasão.
Com o destino de Panem na balança, e a invasão se mostrando infinitamente mais complicada do que parecia possível conforme o Esquadrão 451 diminui de tamanho a cada nova armadilha, Katniss ainda precisa lidar com o triângulo amoroso que se desenhou entre ela, Peeta e Gale, enquanto tenta destruir o regime de Snow e trazer paz e união aos Distritos.
Jogos Vorazes: A Esperança: O Final é bem bacana.
O filme mantém o bom nível da série, se mantendo com vantagem de um corpo em relação a qualquer outra franquia para "jovens adultos" no cinema, seja os romances vampiremos de Crepúsculo ou os futuros distópicos de Divergente e Maze Runner, e nem me refiro ao corpinho delicioso de Jennifer Lawrence.
A trama de Jogos Vorazes é mais interessante, consideravelmente mais brutal, esperta e audaciosa do que a concorrência, quase esperta demais para seu público alvo.
Quase.
Pra engrossar o caldo, há uma grande coleção de talentos diante das câmeras que apenas dão mais lastro à série. Quantos filmes podem se dar ao luxo de ter no elenco gente como Jeffrey Wright, Julianne Moore, Phillip Seymour Hoffman e Woody Harrelson além de Lawrence, uma atriz muito acima da média de qualquer outra de sua geração, emprestando à personagem principal um apelo que nenhuma outra protagonista nesse tipo de cinema consegue replicar.
Claro, nem tudo são flores. Em sua ânsia de encher os cofres com um pouco mais de grana a Lions Gate partiu A Esperança em dois o que resultou em um par de filmes que somam quatro horas e vinte minutos das quais poderíamos facilmente dispôr de duas horas.
A primeira hora de A Esperança: O Final é um convite ao cochilo, absolutamente arrastado tendo em vista que a primeira metade de A Esperança: Parte 1 já havia feito o serviço de espalhar as peças sobre o tabuleiro.
O cenário fora montado de maneira mais do que satisfatória nas arrastadas duas horas do longa anterior, de modo que a primeira metade do capítulo final é arrastada pra caramba.
Por sorte, o roteiro de Danny Strong e Peter Craig consegue acelerar o ritmo de maneira bastante satisfatória assim que os rebeldes chegam à Capital. O melhor segmento sem dúvida é a luta entre o Esquadrão 451 e os bestantes subterrâneos nos esgotos de Panem, uma sequência de ação tensa e bem orquestrada onde James Newton Howard faz por merecer seu salário com uma partitura que cai como uma luva.
Além da boa ação, há um plot twist interessante ao final, ainda que ele fosse bastante óbvio à certa altura do longa, e um momento bastante interessante onde Peeta e Gale falam sobre sua relação com Katniss.
Obviamente eu não vou contar com quem a heroína fica no fim das contas, mas deixe-me dizer que, o desfecho no quarto, teria sido um encerramento muito mais condizente com a personagem central do que o desfecho no bosque, que vem logo em seguida.
Apesar disso e da óbvia encheção de linguiça que permeia 50% dos dois últimos longas, Jogos Vorazes é uma boa série. Tem cérebro, coração e colhões, e isso é muito mais do que a maioria das franquias do tipo têm a oferecer.
Katniss Everdeen merecia ser a heroína modelo de uma geração, e, a despeito de eventuais equívocos na hora de encerrar a série, ela a termina com a dignidade intacta.

"-Você me ama: Verdadeiro ou falso?
-Verdadeiro."

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Resenha Cinema: X-Men - Apocalipse


Eu confesso que não deixou de me chocar levemente descobrir que existe uma grande rejeição de parte do público à série de filmes dos X-Men, da Fox. Em que se pese a irregularidade dos longas que compõe a série, uma longa e diversa lista de longa-metragens que inclui filmes ruins como X-Men 3 e os dois filmes solo do Wolverine, eu sempre achei os X-Men do cinema, especialmente os dirigidos por Bryan Singer (ou produzidos por ele, já que o ótimo Primeira Classe, é de Matthew Vaughn), adaptações muito boas.
Gosto do tom dos filmes, do elenco, e estou absolutamente pronto para aceitar certas distorções do que li nos gibis para as adaptações em tela grande. E sou o primeiro a dar a mão à palmatória e admitir que sim, as diferenças são gritantes, e no papel de fã de X-Men desde a época de Claremont e Byrne, reconheço todas elas e algumas, de fato, são de amargar. A média da série, porém, sempre me pareceu positiva, e eu ainda tenho X-Men 2 como um dos meus filmes de super-herói preferidos, perfilado a Primeira Classe e Dias de Um Futuro Esquecido, ambos filmes dos quais eu gostei demais.
Foi durante o início da divulgação de Apocalipse, terceiro capítulo dessa segunda trilogia dos X-Men rejuvenescidos, que eu percebi o ódio de muitos fãs à série. Enquanto eu me empolgava feito guri de kichute novo com as fotos da produção o zumbido dos haters se fazia ouvir em alto e bom som nas redes sociais detonando o visual do vilão Apocalipse, a onipresença de Mística como Jennifer Lawrence o tempo todo e até o teaser do Wolverine divulgado alguns dias atrás com tanta veemência que eu estava até questionando se o problema não era comigo.
Ontem assisti à pré-estréia do filme, e quer saber?
Não. O problema é com quem não gosta, mesmo.
X-Men - Apocalipse abre no Egito, 3600 anos antes de Cristo, quando, durante o ritual que dará vida eterna a En Sabah Nur (Oscar Isaac), o déspota é vítima de um complô, e sobrevive apenas através da proteção de seus quatro Cavaleiros, que se sacrificam para garantir a salvaguarda de seu novo corpo, soterrado sob centenas de milhares de toneladas de entulho, onde ele permanece por mais de cinco mil e quinhentos anos, até ser inadvertidamente libertado por um culto que era investigado pela agente da CIA Moira Mctaggert (Rose Byrne).
É 1983, e enquanto Charles Xavier (James McAvoy) e Hank McCoy (Nicholas Hoult) dirigem a escola para jovens superdotados, acolhendo jovens mutantes e os ensinando a controlar seus poderes, casos de Jean Grey (Sophie Turner, a Sansa Stark de Game of Thrones), e do mais novo aluno, Scott Summers (Tye Sheridan), levado ao Instituto Xavier por seu irmão Alex, o Destrutor (Lucas Till), Mística (Jennifer Lawrence) roda o mundo salvando mutantes perseguidos e brutalizados, caso do jovem Kurt Wagner (Kodi Smit-McPhee), forçado a lutar em uma arena na Alemanha Oriental, e Erik Lehnsherr (Michael Fassbender), vive incógnito na Polônia com sua esposa e filha, tendo deixado seu passado de ódio e militância mutante para trás.
O ressurgimento de En Sabah Nur, porém, desencadeia uma série de eventos que tiram todos os X-Men originais de suas rotinas, conforme o mutante com poderes divinos percebe, ultrajado, que os inferiores assumiram o comando do mundo, e um ato de purificação se faz necessário.
Juntando seu séquito de cavaleiros entre os mais fortes mutantes, Nur arrebanha Ororo (Alexandra Shipp), Psylocke (Olivia Munn), o Anjo (Ben Hardy) e Magneto para destruir o mundo dos homens, e sobre os destroços erigir seu novo império.
Para realizar seu plano, En Sabah Nur precisa apenas dos dons de um mutante:
Charles Xavier. E separando o mundo da devastação, seus alunos.
Mantenho:
Não entendo o ranço com a série.
O cada vez mais povoado universo X da Fox, nas mãos de Bryan Singer sempre rende boas histórias, e essa não é diferente. Apocalipse é um filmaço de super-herói.
As pesoas têm facilidade em esquecer que foi Singer, ao lado dos roteiristas Simon Kinberg, Michael Dougherty e Dan Harris que estabeleceram a forma e o conteúdo dos filmes de super-heróis que vemos inundando as salas de cinema a cada dois meses.
Sem X-Men, de 2000 e especialmente X-2, de 2003, jamais teríamos visto o universo cinemático Marvel se tornar o monstro que se tornou, ou o Homem-Aranha de bilhões de dólares da Sony, ou mesmo o Batman de Christopher Nolan.
Singer entende do riscado, e hoje, dezesseis anos após sua talentosa mas algo constrangida estréia no mundo dos quadrinhos, ele está muito à vontade no comando do universo X, e isso fica claríssimo na forma como ele reconfigura esse universo pós-reboot de uma maneira colorida e divertida, dando-se ao luxo até de reparar algumas injustiças da trilogia original.
Não me entenda errado, X-Men - Apocalipse não é perfeito, é tão cheio de defeitos quanto qualquer outra adaptação de super-heróis, mas se tem problemas tanto para agradar fãs hardcore de quadrinhos quanto críticos hardcore de cinema, não falha em oferecer duas horas e meia de aventura divertida e, que diabos, bem estruturada de maneiras como Vingadores: Era de Ultron e Batman v Superman - A Origem da Justiça, por exemplo, não conseguiram.
James McAvoy é um excelente professor Xavier, humano e otimista, Michael Fassbender é um Magneto raivoso e atormentado, Nicholas Hoult é um ótimo Hank McCoy e Jennifer Lawrence é talentosa, uma delícia e por mais holofotes que receba, em meio a tantos personagens, sua Mística está longe de ter a onipresença que o Wolverine de Hugh Jackman teve nos primeiros três filmes da série.
Ao menos dois novos mutantes em velhos papéis recebem um pouco mais de destaque e se provam muito bem escolhidos. Tye Sheridan é um Ciclope muito bacana, com um vestígio da retidão do personagem adulto, mas com mais personalidade e um quê de arrogância juvenil. Sophie Turner, além de ser um mulherão, encontra um tom entre o compreensivo e o apreensivo que vai ao encontro da extensão de seus poderes de fênix, além dos dois, Kodi Smit-Mcphee também tem seus bons momentos.
Com tanta gente nova e mais o retorno do Mercúrio de Evan Peters, que ganha mais espaço e confirma sua relação com Magneto (além de uma versão anabolizada de sua sequência em alta velocidade no Pentágono no filme anterior que é ótima ao som de Sweet Dreams do Eurythmics.) alguns personagens acabam relegados à mera figuração.
Entre a Jubileu de Lana Condor que mal fala, O Anjo que é pouco mais que um acessório, a Psylocke escalada à perfeição na linda Olivia Munn talvez seja o maior motivo de ressentimento por aparecer pouco.
Apocalipse é um bom vilão, amaçador, poderoso e com um vernáculo religioso muito bem sacado. As queixas com relação ao visual do personagem são absolutamente infundadas. Eu acho louvável que a produção tenha tentado aproximar o visual de Oscar Isaac do visto nos quadrinhos com maquiagem protética ao invés de vesti-lo com um paletó, ou criá-lo com CGI. Seus planos maquiavélicos nada têm de novo, mas ei, En Sabah Nur tem mais de cinco mil anos, deem um desconto a ele.
X-Men - Apocalipse é um ótimo filme, duas horas e meia de diversão de ótima qualidade, encontrando um meio-termo muito bem vindo entre a leveza descompromissada dos filmes da Marvel e a tragédia grega dos filmes da DC, e vale demais o valor do ingresso.
Não seja fresco e vá ver no cinema.

"-Você nunca irá me vencer.
-E por que você diz isso?
-porque você está sozinho, e eu não estou."

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Resenha Game: Uncharted 4: A Thief's End


Foi por causa de dois jogos que eu corri para comprar um playstation 4 gastando os tubos ainda no ano de 2014. Curiosamente, ambos foram adiados após eu ter comprado o console, e me forçaram a jogar games não tão bons, ou games repetidos em versão remasterizada, para suprir as lacunas até o lançamento.
Se eu estava curioso para jogar o correto misto de RPG e jogo de tiro de The Division, e adorei o futebol cadenciado e cerebral de FIFA 16, eu comprei meu PS4 ansiando por Batman - Arkham Knight e por Uncharted 4.
Eu me tornei um fã de Uncharted quase ao acaso. Ganhei o Uncharted 2: Among Thieves de presente de uma morena muito cheirosa, e joguei muito mais por consideração à ela do que por curiosidade ou interesse no "joguinho de aventura", conforme meu irmão o definiu.
Que sorte.
Among Thieves era um jogo tão bom que me fez correr atrás de Uncharted - Drake's Fortune, primeiro game da série, e esperar ansioso (e comprar na estréia) o terceiro game, Uncharted 3: Drake's Deception.
Não é difícil se afeiçoar a Nate Drake, Victor Sullivan e Elena Fischer. Os personagens são adoráveis, bem escritos e interpretados por uma equipe de atores/dubladores que os enchem de personalidade e tornam o jogo uma ótima mistura de matiné aventuresca com um viciante game de tiro, luta, puzzle e exploração entrecortado por gloriosas sequências de ação de povoar os sonhos de Michael Bay.
Uncharted 4: A Thief's End se passa três anos após os eventos do game anterior. Nate e Elena estão casados, e tentam deixar para trás suas vidas de aventura em nome de uma existência normal.
Elena escreve artigos para revistas de viagens enquanto Nate trabalha em uma empresa de resgate de cargas onde, na maior parte do tempo, faz trabalho burocrático.
A vida mundana onde o caçador de tesouros tenta se encaixar desesperadamente é sacudida quando seu passado volta na forma de Sam, seu irmão mais velho dado como morto quinze anos antes.
Sam esteve, na verdade, preso após ser ferido enquanto procurava pelo tesouro do notório pirata James Avery com o caçula. Sua libertação está diretamente ligada a retomar essa caçada e encontrar os quatrocentos milhões de dólares em ouro do pirata, algo que Sam não pode fazer sozinho.
Com a vida do irmão pendendo na balança, Nate não tem alternativa senão abandonar a aposentadoria e sair com Samuel em busca do ouro dos bucaneiros, uma caçada que os coloca em rota de colisão com o antigo sócio da dupla, Rafe Adler, e seu exército privado, a empresa de segurança particular Shoreline de Nadine Ross, uma incansável mercenária com recursos suficientes para lutar uma guerra numa corrida onde os Drake terão que usar toda a sua experiência, habilidade e esperteza para se manter um passo à frente da feroz competição, uma missão que se torna mais complicada conforme os exploradores descobrem que o ouro de Avery é apenas a ponta do iceberg, e que podem estar atrás de algo muito maior.
Uncharted 4 foi um game que sofreu bastante durante sua produção.
Além dos sucessivos adiamentos e trocas no elenco de atores/dubladores, talvez a grande perda do título tenha sido a de Amy Henning, a escritora dos games anteriores. Sua saída para a Visceral Games deixou a Naughty Dog em uma posição delicada com sua maior franquia, e a desenvolvedora não tardou para substituir a roteirista pelo que, no momento, era seu dream team:
Neil Druckmann e Bruce Straley, responsáveis pelo sensacional The Last of Us.
A mão dos dois se faz notar nas maiores qualidades e nos piores defeitos de A Thief's End, um game onde o herói juvenil que Nathan Drake tem sido desde o primeiro contato que tivemos com ele, se vê obrigado a crescer como fizeram seus fãs.
Talvez a grande qualidade à qual me referi ali em cima seja justamente essa. Druckmann e Straley transformam as sequências cinemáticas do game em um autêntico filme. Os flashbacks que apresentam Sam e mostram a dinâmica da relação entre ele e Nate são sensacionais, assim como é sensacional o interlúdio que mostra Nate e Elena vivendo uma vida mundana e comum após anos de aventuras potencialmente mortais.
A preocupação do game e de seus desenvolvedores em oferecer uma voz e uma psicologia críveis aos personagens e torná-los irremediavelmente vivos é flagrante. Não há diálogo desperdiçado, as relações são todas táteis, calorosas, todas elas importam pois todos os personagens importam em uma característica que sempre esteve presente em Uncharted (quem não se lembra do laço mudo que se formava entre Nate e Tenzin, seu guia nepalês em Among Thieves?), mas foi aprofundada ao nível de fossa oceânica de The Last of Us.
É divertidíssimo explorar Uncharted apenas com Nathan, mas é muito mais interessante fazê-lo junto com um de seus companheiros.
A dinâmica da jogabilidade não é afetada pelo amigo digital, já que os personagens são hábeis e sabem se cuidar de uma maneira que, ao invés de precisarem de ajuda o tempo todo, por vezes a oferecem, seja durante escaladas, saltos, brigas ou tiroteios.
A ótima jogabilidade da série foi aperfeiçoada tornando as escaladas de Nathan ainda mais fluidas e contínuas, existe a possibilidade de dirigir possantes veículos 4x4 e um gancho com corda foi adicionado ao equipamento de Nate, tornando possível fazer rapel, escorregar pela corda ou se balançar feito Tarzan, aumentando a gama de possibilidades nas paredes rochosas, enquanto os terrenos ganharam rampas de pedra escorregadias por onde Nate desliza para penhascos despenhadeiros oferecendo uma divertida refrescada em uma das mais características facetas da série, mas sem a tornar particularmente desafiadora.
Muito mais desafiadores se tornaram os combates.
Se na hora do mano a mano Uncharted não oferece muita coisa além de bater e rolar, os tiroteios podem ser uma dor de cabeça para o jogador. A inteligência artificial dos inimigos somada a ambientes consideravelmente amplos torna alguns cenários bastante complicados. Os inimigos se mantém em movimento, atacam de maneira coordenada, flanqueiam Nate e seus aliados tornando o antigo expediente de se abaixar atrás de um pilar indestrutível e recuperar o fôlego praticamente inviável. É necessário correr o tempo todo, procurando ângulos e proteções de maneira dinâmica de modo a superar uma variedade bacana de inimigos com ou sem armadura, com lança-foguetes, rifles de precisão e que não tem vergonha de desentocar o jogador enchendo ele de granadas.
Essa adição à dificuldade torna cada tiro na cabeça um deleite (eu sinto algum orgulho dos meus 196 headshots na primeira vez jogando a campanha), e cada vitória em um cenário apinhado de inimigos mais satisfatória.
Os cenários de inimigos, por sinal, agora oferecem alguma possibilidade de adaptação ao estilo do gamer, podendo ser vencidos de acordo com a preferência de quem segura o DualShock 4. Seja um vida louca que gosta de chegar atirando granadas e deitando a porrada geral ou um discípulo de Solid Snake pronto para se esgueirar por detrás dos inimigos na grama alta e colocá-los para dormir com um nocaute silencioso, ou puxando-lhes os tornozelos de uma beirada, Uncharted 4 te deixa escolher como abordar certos confrontos, um respiro interessante para uma série com os dois pés cravados na linearidade.
A beleza gráfica do game é testemunho da necessidade dos adiamentos. Uncharted jamais foi tão belo. Nate e seus amigos têm expressões faciais de fazer Kristen Stewart corar de inveja, se os cenários amplos, as enormes catacumbas e as vistas do alto de uma torre em meio à floresta sempre foram uma marca registrada da série, Uncharted 4 volta a mostrar todas essas belezas, mas também encanta pelo detalhe da neve se acomodando em uma estátua num cemitério escocês, no detalhamento de um galeão afundado na costa do oceano índico, ou na forma como a ferida no nariz de Sam brilha com o sangue fresco.
Além de tudo isso, há ainda um modo multiplayer onde cenários do jogo são reimaginados como arenas para confrontos de 4 contra 4 ou 5 contra cinco jogadores, muito bem renderizados e explorando de maneira divertida a jogabilidade clássica da série.
A despeito da larga lista de predicados, nem tudo são flores, porém.
Uncharted 4 tem alguns problemas. Um dos grandes é a baixa dificuldade dos puzzles. Não existe nenhum quebra-cabeça desafiador no game, uma tremenda escorregada para um jogo que sempre se notabilizou pelo bom equilíbrio entre ação e enigmas. O combate mano a mano, é outro ponto. Estamos em 2016, e após os combates de Assassin's Creed III e de todos os games da série Arkham, algo mais bacana poderia ter sido imaginado para Uncharted. Os cenários de confrontos contra inimigos múltiplos são um pouco sacanas, pois em um mundo onde os inimigos se colocam de prontidão ao menor sinal de problemas deveria existir um mecanismo para permitir que o jogador arrastasse inimigos nocauteados ou mortos pra fora das vistas de seus colegas.
Além disso, a ambientação em Libertalia, por bela que seja, é repetitiva, e à certa altura, o jogador se vê em um espiral de escala, salta, desliza, atira que se estende além do necessário em uma floresta belíssima mas sem nada de novo a oferecer, um segmento excessivamente longo que trava uma história que fluía de maneira prazerosa até ali, e, por fim, a ausência do elemento sobrenatural que havia sido regra nos demais títulos da franquia.
Ainda assim, o trabalho de produção, da atuação e dublagem de um elenco que aprendemos a amar (Nolan North, Emily Rose, Richard McGonagle e Troy Baker), a boa jogabilidade mais as tradicionais sequências de ação (em particular a perseguição em Madagascar) e o toque especial de Drunkmann e Straley para o lado humano dos personagens faz Uncharted 4 ser uma experiência particularmente agradável, e seu grande senão talvez seja justamente o fato de ser o último capítulo da série.
Apesar das declarações dos desenvolvedores, não seria difícil retomar Uncharted após os eventos de A Thief's End, e qualquer fã consegue imaginar ao menos dez maneiras bastante clichê (mas tão sólidas quanto o resto da franquia) de meter Drake, Elena, Sully, Sam, Cassie e Vic em novas enrascadas.
Eu espero, francamente, que, ainda que o quarto game seja o fim de um ladrão, não seja o fim do explorador mais maneiro dos games.
Nós sempre podemos escalar, correr, esmurrar e atirar um pouco mais ao lado de Nate e companhia.

"-Destruí meu casamento, afastei meu melhor amigo, e agora perdi meu irmão. Ao menos não tem ninguém aqui pra me chamar de idiota."

quinta-feira, 12 de maio de 2016

O trailer de Assassin's Creed

E saiu o trailer de Assassin's Creed, que no Brasil provavelmente se chamará Assassin's Creed - O Filme, o que é uma lambança mas em se considerando o histórico das distribuidoras brasileiras não chega a ser uma desgraça já que escapamos de algo como "A Doutrina dos Assassinos", "Assassinos", ou "Assassinos, Credo!".
Na prévia de pouco mais de dois minutos vemos Callum Lynch (Michael Fassbender), um condenado à morte que após sua "execução" desperta em um laboratório onde a personagem de Marion Cotillar lhe informa que ele se tornará uma cobaia do Animus, um aparato que será usado para vasculhar as memórias genéticas de seus ancestral, um assassino da época da Inquisição Espanhola, morto 500 anos antes.
Confira o show de parkour, pancadaria e a mistura de épico histórico e ficção científica espertamente sugerida no trailer:



Maneiro, né? Eu confesso que estava otimista com Assassin's Creed (O Filme), e a prévia só justificou meu otimismo. Detalhes como um Animus muito mais interativo do que o aparelho de ressonância magnética futurista do game, as tatuagens faciais dos assassinos, a presença constante a águia e o destaque do Salto de Fé dão a impressão de um longa capaz de se sustentar sozinho e fazer o fan service sem se perder.
O filme dirigido por Justin Kurzel (de Hamlet) e que ainda tem no elenco Jeremy Irons, Ariane Labed e Alfred Molina estréia em agosto, e é uma co-produção entre a Fox e a Ubisoft, desenvolvedora da série de games.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Compras


Sueli saiu do serviço naquela terça-feira triste.
Aliás, ultimamente, andava triste quase o tempo todo. Apesar de ter uma vida acadêmica e profissional plena, Sueli sentia-se incompleta.
Faltava algo. E ela sabia o que era.
Era um amor.
Sueli estava sozinha há bastante tempo, mais de um ano. E não era por opção.
Ao menos não por opção consciente.
Sueli não era uma mulher bonita. Antes pelo contrário.
Era feia.
Tinha alguma semelhança com a atriz Nia Vardalos, mas era baixinha e contava com alguns quilos além do recomendável.
Se ser uma mulher de limitados atrativos físicos era complicado pra ela, que sonhava em encontrar seu príncipe encantado e ter uma vida a dois, não era essa a única razão para o insucesso afetivo da Sueli...
Talvez a condição mais preponderante para sua solidão, fosse um radar extremamente desregulado.
Explica-se:
Com seu passo desajeitado e cara de Nia Vardalos, Sueli tinha uma inabalável certeza de que, em alguma esquina, se depararia com um Brad Pitt que seria capaz de olhar para ela e ver sua extensa lista de predicados antes de seu exterior.
Essa ideia de que, por ser uma mulher inteligente e bem-sucedida, ela encontraria um homem ideal, igualmente bem-sucedido, inteligente, e ainda por cima atencioso, modesto e bonito, talvez fosse o grande entrave na vida pessoal de Sueli, que chegara a dispensar pretendentes perfeitamente aceitáveis por conta de sus exigência absolutamente fora da realidade.
Sueli queria um homem perfeito por mais que suas amigas dissessem que aquilo não existia. Sueli chegava a brigar com suas amigas teimando que encontraria o homem dos seus sonhos fazendo pouco dos conselhos que recebia em nome da certeza inabalável de que "O Cara" estava ali, em algum lugar, apenas esperando uma troca de olhares.
Mas naquela terça-feira, Sueli estava triste.
O Aristides, colega de trabalho divorciado na faixa dos quarenta, alto, cabelos bons, sorriso bonito, que se exercitava, comia direito e tinha hábitos de higiene extremamente rígidos e no qual Sueli investira alguns meses de papo e flerte assumira-se, em uma conversa na hora do cafezinho, estar "meio que namorando" a professora do filho, Pedrinho.
Sueli sorriu amarelo, dentes trincando, perguntando se aquilo não era errado, antiético, moralmente reprovável ou algo do tipo, mas quando Aristides respondeu com olhar perdido que "nada tão bom podia ser errado" e passou a mão no ombro da Sueli como quem emaranha o cabelo de um moleque ao se despedir, ela percebeu que aquela era uma batalha perdida.
Entretanto Sueli concatenou que poderia ter se saído melhor na contenda se estivesse se cuidando melhor.
O trabalho e o doutorado estavam consumindo todo o tempo de Sueli, que jamais fora de se exercitar muito, e, com a correria do dia a dia, vinha comendo muito e muito mal, algo que se refletia na balança, que reagia ao peso de Sueli como o velocímetro de um carro de corrida, e nas roupas, cada vez mais justas na região da barriga.
Era hora de dar um jeito naquilo.
Uma mulher inteligente e bem-resolvida como Sueli não podia se entregar aos desmandos de uma vida atribulada e ficar "toda trôncha" como dizia sua mãe.
Não.
Sueli enfrentaria a vida de faca entre os dentes. Afinaria sua silhueta e esfregaria um corpinho de vinte e poucos, ou trinta e poucos bem cuidados, vá lá, na cara de Aristides, aquele desavergonhado.
Começaria cuidando melhor de sua dieta.
Entrou no mercado decidida. Era terça-feira, bom dia de começar a dieta. Sem as pressões de uma segunda-feira, quando a geladeira pode estar repleta de sobras do final de semana.
Na terça, não.
Na terça a geladeira estava desabastecida, e Sueli estava mais do que disposta a colocar lá dentro uma quantidade modesta de alimentos, preferencialmente saudáveis e que não engordassem.
Passou pelos corredores contando calorias de tudo o que pegava na calculadora do celular, e, ao constatar que carregava consigo o suficiente para uma semana de refeições frugais, dirigiu-se ao caixa na certeza de que ali, começava um novo dia.
Ao chegar às registradoras, carregando o pesado cesto de compras, o rapaz à sua frente gentilmente acomodou seus itens de modo a abrir espaço para Sueli.
Ela agradeceu com um sorriso.
O homem, alto, magro, vestido de preto era atraente.
Os cabelos negros e lisos levemente desalinhados, os olhos de cílios grandes, tão grandes e em tanta quantidade que pareciam pintados. As sobrancelhas arqueadas que pareciam esmeradamente tiradas com pinça...
Vestia-se de preto, botas, calças e uma camiseta preta justa, sobre a qual usava um blazer de couro negro nitidamente envelhecido, e um cachecol de lá escura jogado sobre o pescoço como uma echarpe.
Ele correspondeu ao sorriso de agradecimento dela com uma piscadela cúmplice jogada de esguelha.
Ela quase pôde sentir o deslocamento de ar causado por suas longas pestanas.
Ele passou suas compras:
Uma garrafa de vinho tinto, uma lata de patê e uma caixa de bolachas salgadas. Sacou do bolso interno do blazer um pequeno maço de dinheiro bem organizado em um pegador prateado. Ao receber o troco, organizou o dinheiro novamente com cuidado, e tornou a guardar o maço. Percebeu que ela observava suas compras, e sorrindo marotamente, repetiu o gesto de maneira ostensiva, encarando as compras dela, e as listando em voz alta:
-Dois pacotes de alface-americana, um queijo de minas, um pacote de maçãs da Mônica, um iogurte light, um pacote de peito de frango sem pele temperado e congelado, uma Coca-Cola verde e duas águas minerais com gás, tomates-cereja, óleo de canola, meia-dúzia de ovos e cenouras anãs...
Olhou pra ela, que sorria inebriada com o curso dos acontecimentos.
Disse, entortando um sorriso pro lado:
-Tu és solteira, não?
Ela ergueu a sobrancelha, admirada, pensando como ele podia saber apenas olhando para as suas compras.
Confirmou:
-Sou... Como é que o senhor sabe?
Ele sorriu apanhando sua sacola de compras:
-Porque tu és muito feia.
E saiu.
Nos dias vindouros Sueli flertaria com a ideia de parar de se depilar e se transformar numa dessas militantes feminazis que bradam aos sete ventos contra a existência dos machos exceto como veículos de reprodução.
Viktor de SanMartin, o imensuravelmente cruel, atacara novamente.

Rapidinhas do Capita


O Ernesto viu a menina vindo na direção contrária e não conseguiu desgrudar o olho.
Era uma deusa.
Loira, alta, magra mas com aqueles volumes estrategicamente colocados aqui e ali... Busto, quadris, coxas... Devia ter mais de um metro e setenta e cinco, músculos tonificados mas não volumosos, bonitona, mesmo.
Ernesto não se aguentou. Parou no meio da calçada e ficou olhando enquanto ela passava. Quando estavam lado a lado, falou:
-Êêêêêêêêêêêêêêêita, éguaaaaa!
Assim, mesmo, com o "ê" e o "a" espichados. Algumas pessoas virara pra olhar, houve quem risse.
A bonitona olhou pra ele balançando a cabeça da esquerda pra direita em sinal de reprovação, fazendo cara de nojo, e seguiu andando.
Ernesto não entendeu.
Na sua cabeça, de algum modo, era um elogio.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

-Me bate... - Arfou Angelina, de quatro, sem virar o rosto.
-Quê? - Arfou de volta Floriano, confuso, franzindo o cenho e tentando manter o ritmo das estocadas com a pélvis.
-Bate em mim... - Arfou novamente Angelina, empinando levemente o traseiro, convencida de que aquilo bastaria.
Mas Floriano perguntou de novo:
-Como assim? - Tirando uma das mãos do quadril de Angelina e a apoiando na lombar dela.
-Bate em mim, Floriano. - Disse Angelina, virando a cabeça. -Me dá uns tapas.
-Onde? - Perguntou o Floriano, parando quase por completo os movimentos.
-Na minha bunda, né, criatura? - Disse a Angelina, incrédula.
-Ah... - Assentiu o Floriano.
E paf.
Deu um tapa de leve na bunda da Angelina, ainda totalmente parado.
-Mais um? - Perguntou Floriano, incerto.
-Quer saber... - Disse a Angelina, pensativa. -Deixa pra lá. Continua fazendo o que tu tava fazendo, antes.
-Tá bem. - Respondeu o Floriano, retomando os movimentos ritmados e agarrando vigorosamente o quadril da Angelina.
"Não adianta", pensou ela, antes de se deixar levar pelo ato novamente, "ás vezes é melhor a gente se contentar com o que tem."

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

-Eu sei de cor o nome de todos os filmes do Guerra nas Estrelas. - Ela disse, fazendo cara de sabida do outro lado da mesa.
-Sério? - Ele indagou, surpreso, sem tirar os olhos do poço verde que eram os olhos dela.
-Arram... - Ela respondeu, ainda fazendo cara de sabida. -E vi todos os filmes da Marvel no cinema. Menos o do Hulk. - Ela completou, ainda parecendo orgulhosa.
-Ah, o Hulk é ruinzinho, mesmo. - Ele desdenhou, desviando o olhar pro decote dela.
Antes do fim da noite, estariam na cama juntos, nus e suados, e dali oito meses, dividiriam um apartamento e planejariam uma viagem a Porto de Galinhas. Tudo isso antes de ele descobrir que:
Ela só queria o dinheiro dele, não gostara de nenhum dos filmes da Marvel, e, pior de tudo, estava mentindo a respeito de saber o nome dos sete filmes de Star Wars.

terça-feira, 10 de maio de 2016

Orgulho Paterno


A Valquíria, oito aninhos, cabelos castanho-escuros presos em maria-chiquinhas nas laterais da cabeça, vestido cor-de-laranja, pés enfiados em tênis All-Star azuis tamanho 25, deitada no chão fazendo a lição de casa, perguntou, casualmente ao Sandoval, seu pai, quarenta e tantos, sentado na poltrona lendo o jornal qual era o nome dos três reis magos.
-Paiê... Qual é o nome dos três reis magos? - Quis saber com a voz estridente, apenas erguendo a cabeça do caderno.
-Três reis magos. - Respondeu Sandoval, monocórdico, sem tirar os olhos do jornal.
-Quê? - Quis saber a Valquíria, confusa.
-O nome dos três reis magos é três reis magos. Que eu saiba eles não tem nenhum outro nome... - Esclareceu Sandoval.
-Não, pai... - Suspirou Valquíria. -O nome de cada um deles, não do grupo.
-Ah... - Entendeu Sandoval.
E congelou.
Após oito anos de paternidade, deparava-se com uma fronteira absolutamente nova:
Não sabia o que responder para a filha.
Sandoval não lembrava dos nomes dos três reis magos. Pra ele eram apenas os três reis magos. Nem sabia que eles tinha nomes além daquilo, ora que diabos. Mas fazia sentido. Os Vingadores eram Capitão América, Homem de Ferro, Hulk, Gavião Arqueiro, Viúva Negra e Thor, as Meninas Super-Poderosas eram Florzinha, Lindinha e Docinho, os Três Reis Magos não deviam ser Um, Dois e Três.
Que diabos... Como se chamavam os três reis magos? Eles traziam ouro, incenso e mirra, será que tinha relação?
O que trazia ouro se chamava Midas, o que trazia incenso se chamava Hippie, e o que trazia mirra... O que é que era mirra, mesmo? Uma planta? Um óleo? Um óleo de planta?
Meu Deus do céu... Os três reis magos... Como eles chamavam?
Sandoval fizera catequese, era um lance meio compulsório quando ele era criança, então ele estudou isso. Toda a quarta depois da aula na quinta série, tinha catequese. Ele ia até lá, o padre conversava com a criançada... Sem putaria. Era um padre muito camarada. Gostava de futebol. Padre Gérson. Gente boa, mas gremista... Putz, na ponta da língua, se lembrasse do primeiro os outros dois viriam na carona... Era um nome de cantor...
Caralho... Era capaz de lembrar da escalação do time principal do grêmio em 95, e isso que era colorado, mas não conseguia lembrar dos três reis magos. Sabia de cor e salteado o hino do Inter, as músicas da torcida na Libertadores de 2006 e 2010, sabia a escalação da seleção brasileira de 94 e de 2002, mas não conseguia lembrar da porcaria dos nomes dos três reis magos.
Sabia nomear, em ordem os presidentes da época da ditadura, da época da política do café com leite, roteiristas do Homem-Aranha desde Stan Lee, filmes com Leonardo DiCaprio, o Conselho Jedi, capas da Playboy desde 1993... Meu Deus...
Tá, calma. Não é uma competição. Não é o que eu consigo lembrar, pensou Sandoval, respirando fundo.
Era o que ele não conseguia.
Enfim, não lembrava. Era só assumir. Mexer no celular. O Google tava ali, ao alcance dos dedos.
"Val, o pai não lembra, mas vamos dar uma olhada aqui na internet..."
Olhou a filha. Ela o encarava com os grandes olhos castanhos esperando a resposta, mexendo os pezinhos enquanto aguardava.
Que tipo de mensagem aquele curso de ação passaria?
Que todas as respostas estavam na internet? Que a filha não precisava estudar, bastava ter banda larga em casa?
Não. Era melhor ele ir até a estante, pegar a Bíblia que ganhara da mãe e, junto com a Valquíria, procurar pela resposta.
Melhor ainda.
Deveria mandar que ela procurasse sozinha.
Aprender que, ás vezes, a nós temos que procurar pela solução de nossas dúvidas nós mesmos...
Mas a Val só tinha oito anos...
Ela se voltara ao pai procurando por respostas... E ele lhe falharia tão cedo? Com uma questão tão mundana?
Ainda se a Val tivesse vinte e seis anos e perguntasse qual o sentido da vida... Pôxa, seria mais fácil dizer que não sabia. Ainda que fosse de maneira mais edificante... Mas ela com oito anos. Oito!
Querendo saber só quais eram os nomes dos três reis magos. E ele a desapontaria ali? Cinco passos depois da linha de largada?
Como ela manteria a confiança na sapiência paterna se, em uma questão tão mundana, ele já a decepcionava?
Ela o olhava, os pés balançavam mais rápido, estava impaciente. Desmascararia-o em instantes, não importava o quanto ele continuasse olhando pro jornal.
Era isso. Ou desapontava a filha ou fingia uma síncope. Ia cair pro lado, babando e fingindo se afogar na própria respiração.
Entre desapontar a filha e traumatizá-la, mil vezes a segunda opção.
Foi quando teve uma luz: Não inscrevera a filha nas aulas de religião. Ele próprio um ateu convicto, queria que a Valquíria tivesse liberdade para escolher a fé que lhe agradasse mais quando tivesse idade para entender os preceitos de religiosidade. Valquíria já fora batizada à revelia de sua vontade por pressão das avós. Ora, se aquilo era matéria de religião, Valquíria não precisaria estar fazendo aquela lição.
-Isso é pro teu tema de casa? - Perguntou.
-Não - Respondeu a Val, voltando a rabiscar no caderno. Eu só vi num filme hoje de tarde, eles levando presentes pra Jesus, e fiquei pensando quais era os nomes deles...
Sandoval iluminou-se. Não era pra lição. Recostou-se na poltrona, aliviado.
-Pai? - Valquíria chamou-lhe a atenção.
-Quê? - Perguntou, Sandoval, saindo do torpor de alívio.
-Quais eram os nomes deles? - Ela inquiriu, grafando cada palavra do questionamento com uma ginga de ombros e uma erguida nas sobrancelhas tênues.
Sandoval continuava na encruzilhada. Mas tinha um trunfo: Não era oficial.
Sorriu:
-Torquato, Serapião e Amázio.
Valquíria riu:
-Que nomes engraçados!
-Sim - Concordou Sandoval, falso. -São os nomes daquela região...
Valquíria voltou à lição de casa. Mais tarde, quado perguntasse quais eram mesmo os nomes dos três reis magos, ele não precisaria mentir que eram Torquato Serapião e... E... Evilásio? Enfim, não importava, ele já teria pesquisado e descoberto que eram Belchior, Baltasar e Gaspar.
Filho da puta!
Belchior, Baltasar e Gaspar.
Caceta. Tava na ponta da língua.
Enfim... O importante é que o orgulho paterno e a confiança infantil permaneciam incólumes.
Ou quase...

A Era do MiMiMi


Foi ainda no domingo. Pouco após o árbitro Anderson Daronco encerrar a partida final do campeonato gaúcho entre Internacional e Juventude que coroou o Colorado, mais uma vez, campeão estadual, que começou a polêmica.
Na tradicional matada de tempo entre o fim do jogo e a entrega das taças ao campeão e vice, a rede de TV que transmite o certame enche a teça com animações, toca o hino do campeão na gaita (o que o pessoal de fora do RS chama de acordeão ou sanfona), e mostra uma imagem do mascote do clube vencedor com os dizeres "Campeão Gaúcho" do ano corrente.
Já vimos isso mil vezes.
A imagem do mascote colorado, o Saci, foi o pivô da polêmica do momento. É exatamente aquele da imagem que aparece entre o título e o texto.
Vou confessar que não gostei muito do desenho. Achei pobre em termos de qualidade de traço. É um Saci desenhado em estilo quadrinhos dos anos noventa, época em que artistas brasileiros emulavam o estilo dos comics norte-americanos com resultados que de OK não passavam, e eram algo artificiais, como se pudéssemos ver que aquele não era o modo como o desenhista teria feito sua ilustração se pudesse escolher.
Não sei quem é o responsável pela arte do Saci que surgiu na tela da TV no domingo. Tampouco conheço seu estilo, não o estou acusando de nada, apenas dizendo a impressão que o desenho me causou.
Não foi boa.
É um Saci que andou tomando bombas, whey protein e suplementação alimentar, mais ou menos como o Giuliano, ex-Inter, hoje no grêmio, e ficou excessivamente parrudo. Tem cara de cantor de grupo de pop music, e um sorriso pretensioso que não me agradaram.
Mas enfim, é uma porcaria de uma alusão gráfica de alguns segundos na TV, algo que, acreditava eu, ninguém, em sã consciência se prestaria a analisar.
Ledo e Ivo engano.
Pouco mais de duas horas após o encerramento do certame, a deputada estadual do PCdoB Manuela D'Ávila postou nas redes sociais a seguinte mensagem:


Manuela, aparentemente viu o Saci na TV, e o achou muito branco. Bom, em uma TV com brilho, contraste e saturação de imagem customizados, é possível que tenha-se tido essa impressão. O Saci que eu vi na minha TV, por exemplo, era bastante semelhante ao que ilustra a postagem.
Negro.
Quiçá mais escuro...
Não era retinto como o Saci desenhado por Ziraldo, que é tão preto que tem seus traços faciais mostrados em branco para que se enxergue, mas certamente não era o Saci branco da postagem da deputada.
Mas era tarde. A internet se inundou de gente reclamando do "whitewashing" do Saci do Inter. Nas redes sociais de quê participo, formaram-se falanges de detratores do Saci "moreninho", "pardo" ou "melanina 10%" apresentado. Algumas pessoas explicavam ter visto um Saci negro, que inclusive ficava mais negro dependendo do tipo de TV, aparentemente em TVs de tubo, dos modelos antigos, o Saci ficava "Rentería" enquanto em TVs de LED, ele ficava "Paulo Zulu", mas isso não convenceu os ofendidos, que seguiam fazendo queixas veladas ou abertas de que estavam descaracterizando o mascote Colorado, que era uma afronta às minorias, um desrespeito ao Clube do Povo e ao povo do clube.
A celeuma foi tanta que até a rede de TV que transmite o estadual e mostrou o Saci se justificou dizendo que houve um problema de concepção da imagem, que ficava muito clara em determinados televisores, mas o debate segue.
Quase quarenta e oito horas após a veiculação da imagem, após pessoas terem atestado e mostrado imagens de um Saci mais negro de algumas TVs e infinitamente mais brancos em outras, a discussão segue.
O mundo indo pro buraco e ainda tem gente brigando porque o Saci pareceu muito branco em algumas TVs.
Eu sou Colorado de quatro costados, conhecedor da História do meu time, e orgulhoso (mas não iludido) das raízes populares do meu clube do coração. Reconheço a importância de ter um mascote negro (o único mascote negro entre os grandes clubes do Brasil conforme disse Manuela D'Ávila) para o Internacional e não me agradaria ver um Saci branco da mesma forma que não me agradaria ver um Pantera Negra branco, um Othelo branco, ou um Shaft branco, meu ponto não é esse.
Meu ponto é que o Saci que desencadeou toda essa discussão não era branco.
Era negro.
Talvez não fosse preto como um tiziu, talvez não fosse tão negro quanto A, B, C ou D gostaria que fosse, mas era negro.
Aparentemente, vivemos em uma época onde é mais importante reclamar do que ter lastro para a reclamação. A queixa é a razão de ser de uma geração e uma sociedade que parece ser incapaz de resistir à polêmica vazia. Todos policiam todos, todos têm um discurso politicamente correto na ponta da língua para acusar uns aos outros mas poucos praticam tal correção. Uma autoridade política, antes mesmo de verificar a veracidade de um fato, corre pra rede social pra publicar um discurso populista pseudointelectual de modo a agradar suas bases. Vivemos em um mundo de idiotas choramingões que prestam um desserviço à cada uma das causas que julgam defender, que parecem viver encolhidos gritando "não me bate" cada vez que alguém passa por perto.
Eu gostaria imensamente de ver um quinto da disposição que as pessoas têm para recriminar os outros na internet ser direcionada à alguma atividade produtiva.
Qualquer uma.
Estudos, trabalho, luta efetiva por alguma causa além da própria... Qualquer coisa além da queixa pela queixa. Qualquer coisa lém da polêmica pela polêmica. Qualquer coisa além do mimimi.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Larry


Em onze de julho de 1954, o Internacional entrava em campo para enfrentar a equipe do Floriano (que mais tarde se tornaria o Novo Hamburgo) pelo Torneio Extra, no estádio da Timbaúva.
A novidade no time do Inter que entraria em campo naquele dia era um jovem centroavante chegando do Fluminense para pegar experiência no sul:
O friburguense Larry Pinto de Faria.
Larry marcou seu primeiro gol com a camisa vermelha aos 25 segundos da primeira etapa da partida contra o Floriano.
Com um minuto de jogo, já havia anotado o segundo tento.
Com tal cartão de visitas, não chega a ser surpreendente que Larry viesse a se tornar, nos seis anos em que defendeu a camisa do Colorado, um dos maiores artilheiros da história do clube com 176 gols marcados.
Um dos maiores avantes a vestir a camisa do Internacional, Larry fez parte do Rolinho, a equipe que, entre as décadas de cinquenta e sessenta, sucedeu o temido Rolo Compressor.
Entre seus feitos, está a participação maiúscula na goleada de 6 x 2 que o Internacional aplicou no grêmio no torneio de inauguração do estádio Olímpico, partida onde Larry deixou sua marca quatro vezes.
A ligação de Larry com o Internacional não acabou quando ele encerrou sua carreira de jogador. Larry foi treinador e dirigente do Inter, e a memória viva de um dos grandes escretes da centenária história colorada.
Hoje, por volta das seis e quinze da manhã, Larry faleceu, em decorrência de complicações provenientes de uma pneumonia. Ele tinha 83 anos de idade.
O corpo de Larry será velado na capela do Beira-Rio a partir das 15 horas de hoje, e merece todas as homenagens que o Internacional, instituição e torcida, puder lhe render.
O Cerebral deixa os campos terrenos, e se torna mais um dos astros que cintilam no céu sempre azul dos eternos ídolos vermelho e brancos.
Obrigado por tudo, Larry.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

"Con Migo" Ninguém Pode


A Cristina, deusa, deliciosa, linda de morrer, morena de pele clara, bunda bonita, pernas bonitas, braços bonitos, rosto bonito... Era tudo aquilo e ainda por cima inteligente.
Não uma pseudo-intelectual pedante, mas esperta, de raciocínio rápido, preparada para enfrentar o inesperado.
Estava sentada na praça de alimentação do shopping tomando um café e pensando na crise financeira. Não era uma grande investidora. Nem pequena ou média. Não era uma empresária acossada pela desproporcional carga tributária e nem mesmo estava de malas prontas para uma viagem ao estrangeiro que seria encarecida pelo aumento do IOF.
Nada disso.
Apenas uma frequentadora de supermercados e lojas que percebia a diminuição sistemática de seu poder de compra cada vez que entrava em uma loja qualquer.
Foi percebendo a dupla de rapazes que a secava de maneira acintosa algumas mesas adiante que se flagrou pensando que, com tantas bolsas e programas sociais, deveria existir um programa Bolsa Gostosa... Uma ajuda financeira para homens sem poderio financeiro poderem se relacionar com mulheres de estampa além de seu poder de conquista inato.
Os dois sujeitos que a olhavam agora, por exemplo. Nenhum dos dois era bonito. Não eram feios, também. Aparência mediana.
Mas não pareciam ter grandes atrativos.
Fossem inteligentes ou espirituosos não estariam olhando para Cristina feito dois psicóticos de maneira incessante por quase dez minutos, confundido aquilo com algum jogo de sedução. Como dissera certa feita Irene Adler, "inteligente é o novo sexy", mas os dois jovens não eram nem uma coisa, e nem a outra.
Se existisse um Bolsa Gostosa, talvez aqueles dois pudessem se vestir com distinção, dirigir um bom carro, mesmo que alugado, e ter condições de outorgar à uma bela mulher um programa capaz de oferecer entretenimento e diversão além do que eles eram capazes de oferecer apenas com suas personalidades e aparência.
Sorriu pensando na perspectiva recém elucubrada.
Perguntou-se se existiria mulher capaz de se submeter a um relacionamento, ou mesmo a um encontro baseado unicamente no ganho material que poder-se-ia arrancar de tal enlace, e suspirou a dar-se conta de que era claro que existiria.
Notou, aflita, que um dos rapazes se aproximava, cheio de coragem. Amaldiçoou a própria distração. Ao sorrir para si mesma por conta do absurdo da ideia do "Bolsa Gostosa" acabara mandando o sinal errado para os dois sujeitos.
Preparava-se para o discurso do "desculpe, não estou interessada" ou "sou comprometida", mas surpreendeu-se ao ver que o rapaz passou reto por ela, pousando um guardanapo dobrado sobre sua mesa.
Ergueu as sobrancelhas bem desenhadas em admiração.
Um torpedinho de papel à moda antiga. Não era uma coisa que se via todo o dia em tempos de revolução digital onde 24 horas de Whats-App quase lançavam o país nos horrores de uma guerra civil.
Perguntou-se se não fora demasiado dura ao julgar os dois sujeitos. Talvez fossem mais do que a primeira vista sugeria, talvez fossem mais do que postulantes ao Bolsa Gostosa...
Abriu o pedaço de papel e lia-se:
"Oi, limda
Quer sentar con migo?".
Cristina esperou que os dois rapazes estivessem juntos novamente. O que deixara o bilhete voltou à mesa, carregava consigo dois chopes. Entregou um ao amigo, e ofereceu um brinde. Tocaram as caneca. E voltaram a olhar para Cristina.
Ela dobrou novamente o guardanapo, olhou com resolução para os dois, e rasgou o bilhete no máximo de pedaços que conseguiu, jogou os fragmentos dentro do copo de café vazio, se levantou e foi embora abanando a cabeça em sinal de negativo.
Aquele tipo, sentenciou para si mesma, nem com todos os Bolsa Gostosa do mundo.
"Con migo", não. "Con migo", ninguém pode.

Star Wars Day 2016


Pra todos vocês que, quando percebem que o time adversário tirou um centroavante de área apagado e colocou um meia ligeirinho bem aberto pra jogar nas costas do teu lateral que sobe muito, diz: "Eu tenho um mau pressentimento sobre isso.".
Pra todos aqueles que, quando ouvem de um colega que não existe a mais remota chance de aquela loira bonita de um metro e oitenta da odonto querer sair com um pé-rapado feio que nem tu, responde: "Eu acho a tua falta de fé perturbadora...".
Para todos aqueles que notaram que a morena com abdominal de seis gomos, coxas de zagueiro de time ucraniano e costas largas de nadador dando bola pro teu amigo pinguço na boate não era bem o que parecia e advertiram: "É uma armadilha!".
Pra cada um dos que resolveram virar a noite jogando Zelda antes da prova do professor Pedro Oliveira e ao ouvir que existiam pouquíssimas chances de passar na prova sem estudar, responderam: "Nunca me fale as chances."
Para todas que pediram ajuda na mudança, e descendo a escada com aquele armário de três portas que não desmontava pediu que o amigo erguesse o seu lado mais um pouco e ao ouvi-lo dizer que tentaria replicou: "Faça ou não faça. Não há tentar."
Para todos os que já se gabaram de ter conseguido fazer a volta de Kessel em menos de doze parsec...
Que são capazes de reconhecer quando alguém é poderoso na Força...
Que já disseram que uma pessoa amada era sua única esperança...
Que já quiseram revelar de surpresa ser pai de alguém...
Que já responderam "Eu te amo" com "Eu sei."...
Para todos vocês, seres iluminados, ocultos nessa rude matéria.
Um feliz dia de Star Wars.
May the 4th Be With you All.

terça-feira, 3 de maio de 2016

...A Colher


A Luísa morava no 405, vizinha de janela do Fábio, do 407. Era bonita a Luísa. Morena, olhos castanho-claros, miudinha e bem proporcionada. Era de Casca, no interior do estado, e tinha um pesado sotaque da região dos vales do norte do Rio Grande do Sul.
Fábio, nascido e criado em Porto Alegre, alto, parrudo, cabelos e olhos castanho-escuros tinha aparência mediana. Poderia ser bonito fosse mais cuidadoso com sua aparência. Não o era. Era a figura do desleixo com relação ao próprio visual, representante de uma rara linhagem de homens à moda antiga que acreditava apenas em higiene, e não em cosméticos.
Se fosse um transeunte qualquer, ou um dos muitos clientes que Luísa atendia na loja onde trabalhava, Fábio provavelmente passaria batido para a jovem Casquense.
Mas Luísa via Fábio dia após dia. Geralmente pela manhã, quando se encontravam casualmente na área de serviço, ela, pendurando a toalha que usara no banho matutino, ele apanhando os tênis que calçaria para ir trabalhar.
Ela, sempre adiantada mais de uma hora para o trabalho, ele, sempre no limiar de se atrasar alguns minutos.
Começaram apenas sorrindo um para o outro.
Timidamente.
O sorriso tímido escalou para sorrisos mais abertos. Os sorrisos abertos para bom-dias conservadores, e os bom dias para ois e pequenos dedos de prosa que começaram com meteorologia "e esse frio?", passaram a papo-furado de vizinho "nem me fala, tô com uma rinite horrível, nasci pra ser alérgica.", até reminiscências e anedotas familiares "Meu irmão é a pessoa mais alérgica que eu conheço. Tem alergia a tudo. Uma vez comeu uns bombons e ficou inchado feito um baiacu!".
Luísa, ás vezes, notava as camisetas de super-herói vestidas por Fábio.
Nomeava aqueles que reconhecia, Capitão-América, Superman, Homem-Aranha, e perguntava quem eram os que lhe eram desconhecidos, V, Quarteto Fantástico, Demolidor...
Trocavam palavras amigáveis na área de serviço todas as manhãs. Vez que outra uma careta solidária quando a chuva os fazia correr para recolher as roupas do varal no meio da noite. Uma felicitação numa data comemorativa como o natal, ou uma risada cúmplice quando o sexo barulhento do casal do 506 os fazia abrir a janela escandalizados ao mesmo tempo.
Fábio tinha trinta e poucos, Luísa vinte e um anos.
Fábio já havia reparado em Luísa, e chegado a pensar que, em outra situação, a teria convidado pra sair.
Ir ao cinema, jantar... Alguma coisa.
O problema é que Luísa era casada.
Aos vinte e um anos, era casada com Emerson, vinte e quatro, gringo alto e magro feito uma taquara, cabelo castanho-claro cortado rente à cabeça, olhos azuis-escuros muito juntos e nariz adunco que denunciava a origem italiana do natural de Marau.
Quando Luísa dissera ser casada, Fábio não conseguiu evitar a nota de pavor na voz, dizendo "Casada?", ao que a jovem confirmou com um sorriso terno.
Emerson era policial da brigada militar, a quem os gaúchos convencionam chamar de "brigadiano".
Emerson era um sujeito caladão. Cumprimentava Fábio com acenos de cabeça, muito sério. Inicialmente, Fábio achou que poderia ser ciúme por causa das conversas do vizinho com sua esposa. Percebeu que não era o caso.
Emerson parecia tímido e naturalmente sorumbático. A única vez que Fábio vira o vizinho sorrindo, fora dentro de uma viatura. Eram mais de onze da noite e o veículo oficial estava parado na frente do prédio, luzes acesas, repleto de policiais fardados dentro, entre eles, Emerson, que ria divertido conversando com os colegas.
Fábio não entendia o que Luísa vira em Emerson.
O policial era um homem feio, não parecia sujeito de muitas luzes intelectuais e, ainda ensimesmado, muito diferente de Luísa, com seu jeito expansivo de moça do interior querendo conhecer e saber um pouco mais de tudo.
Emerson devia ser um namorado de infância com quem ela trocara juras de amor eterno que, por milagre, acabaram se cumprindo.
Fábio olhava com com curiosidade quase acadêmica para os dois. Imaginando que cósmica combinação de fatores aleatórios formara aquele casal tão discrepante.
A primeira vez que ouviu, de fato, a voz de Emerson, foi numa madrugada de sexta para sábado, o ruído contínuo o fez baixar o volume da TV para tentar ouvir os dois discutindo do outro lado do poço que separava os blocos.
Emerson falava alto, uma voz tonitruante que Fábio não imaginava na boca do magrão quase mudo que vivia ao lado. Ele dizia a Luísa que, se ela não queria cuidar da casa, que arrumasse suas coisas e voltasse pra barra da saia da mãe.
Na verdade disse "Mamãe".
Fábio apiedou-se de Luísa. Era uma moça jovem. Trabalhadora e trabalhadeira. Poderia ter ficado, de fato, na barra da saia da mamãe e ter estudado, levado uma vida com menos perrengues, mas preferira se mudar pra capital para viver uma vida de casada ao lado de Emerson, e ele a tratava daquela forma?
Ameaçando fazer suas malas e jogá-las na rua às três da madrugada?
Tão subitamente quanto começara, a discussão terminou.
No dia seguinte, Fábio não viu Luísa na área de serviço.
Voltou a vê-la na segunda, quando ela o cumprimentou com um "oi" baixo e um sorriso triste que fez o coração de Fábio se estilhaçar.
Parecia envergonhada. Decerto que sabia que Fábio ouvira a altercação de duas noites antes, e parecia constrangida com a situação.
Fábio entendia.
Ele próprio ficara constrangido.
As coisas voltaram a normalidade na sequência, com Emerson voltando à invisibilidade e Luísa voltando a sorrir e conversar despreocupada na área de serviço, e eventualmente na entrada do condomínio. Por alguns meses tudo esteve na mais perfeita ordem, até que, em uma manhã de sábado, Fábio acordou novamente com gritos de Emerson.
Ele dizia que se Luísa não abrisse a porta do banheiro, a derrubaria.
À ameaça seguiu-se um estrondo seco, e então outro.
Fábio abriu as janelas fazendo alarido, tentando mostrar que o ruído era demasiado. Foi aquilo em que conseguiu pensar no calor do momento.
Mas dali pra frente, reinou o silêncio, e Fábio não soube se sua tentativa de constranger Emerson dera resultado.
Não viu Luísa naquele dia, mas flagrou-se pensando nela.
O que poderia fazer para ajudá-la?
Deveria meter a colher naquela briga entre marido e mulher?
Tinha óbvia vergonha de falar com ela sobre o assunto. Não queria parecer um vizinho enxerido. Pensou em fazer uma denúncia, mas adiantaria? Emerson era, afinal de contas, um policial, e a verdade é que, a despeito dos gritos e ameaças, Fábio jamais o vira ou ouvira agredir Luísa de fato, mesmo sendo vizinho de janela. Não queria demonizar um agente da lei por quem, a bem da verdade, tinha muito respeito.
Não conseguia imaginar o tamanho do estresse de um policial militar, mal pago e mal equipado para agir como barreira entre a sociedade e o crime.
Não era um detrator da polícia e tampouco achou que viveria para ver consumada a expressão "mulher de brigadiano" para se referir à esposas que gostavam de apanhar.
Questionava-se se adiantaria alguma coisa fazer uma denúncia sem uma agressão consumada? Mais do que isso, adiantaria fazer uma denúncia sem um flagrante? E Luísa confirmaria a agressão? Fábio era um rematado pragmático, um sujeito prático acima de todas as outras coisas. Não era capaz de entender porque uma guria bonita e nova ficaria ao lado de um cavalão que dava achaques e derrubava portas dentro de casa, mas sabia que, em muitas ocasiões, mulheres que vítimas de abuso doméstico tinham dificuldade em apontar seus agressores. Não era psicólogo nem nada, mas supunha que a jovem bonita do interior, sozinha com o marido na capital encaixar-se-ia no modelo de vítima que teria pudores em denunciar seu algoz.
Fábio pensou muito a respeito, pensou de verdade, mas não foi capaz de encontrar uma solução para a situação, e como Luísa e Emerson pareceram ter voltado às boas nos dias seguintes, também aquilo, como tudo na vida, acabou suplantado pelo dia a dia, e foi apenas semanas mais tarde, ao chegar em casa e encontrar a diarista, que Fábio voltou a pensar no assunto.
Dona Eugênia o recebera com o sorriso de sempre, anunciando, didática, todas as limpezas que havia feito e onde deixara cada uma das coisas que Fábio mantinha estrategicamente jogadas pela casa. Após receber o pagamento pela faxina, fez uma careta de reprovação e perguntou à boca pequena como quem alcovita, se Fábio conhecia a moça do lado. Ao que ele confirmou, dizendo tratar-se de Luísa.
Dona Eugênia, compadecida, narrou então uma discussão entre Luísa e Emerson, que culminara com o "cavalão" dando um tapa no rosto da menina.
Por alguma razão, Fábio sentiu sua boca se inundar de um sabor amargo.
Não soube explicar o porquê. Talvez fosse culpa. Vergonha da própria inação.
Mas garantiu a dona Eugênia que faria alguma coisa.
E fez.
Depois de flertar com a ideia de falar com Luísa, da qual foi demovido pela timidez, ligou para o disque-denúncia.
Ligação anônima, feita de um orelhão, coisa que fê-lo sentir-se como se traísse a longa linhagem de quadrinhos de super-heróis que lia desde antes de saber ler mas, ainda assim, pareceu o curso de ação mais correto e seguro.
Fábio ligou, disse que não gostaria de dar seu nome, mas que queria denunciar um caso de violência doméstica.
Deu o endereço, o número do apartamento vizinho, e narrou os episódios que testemunhara e mais a agressão testemunhada por dona Eugênia.
Dias se passaram sem que Fábio soubesse se alguma autoridade tomara providências com relação ao caso. Foi só então que deu-se conta de que jamais saberia se algo tivesse ocorrido a menos que Emerson fosse preso e olhe lá. Trabalhava fora quase o dia inteiro, via Luísa apenas brevemente pela manhã, se uma assistente social ou policial fosse ao apartamento e Luísa se recusasse a denunciar o marido, Fábio jamais saberia se sua tentativa de ajudar rendera algum fruto.
Duas semanas se passaram com os dias sendo contados pelas conversas de Fábio com Luísa junto à mureta da área de serviço sem que ele percebesse qualquer mudança na rotina dos vizinhos, até a segunda-feira em que chegou à área de serviço para apanhar os tênis e deparou-se com Luísa.
Ela sorriu pra ele:
-Deixa eu ver a de hoje.
Fábio sorriu e exibiu a camiseta do Batman que vestia. Cinza, morcego preto no meio do peito sem elipse amarela estilo Frank Miller.
-Esse eu conheço. - Sorriu Luísa. Já foi ver o filme novo?
Fábio confirmou que fora na estréia, como era seu hábito.
-Eu ainda não entendi por que o Super-Homem tá brigando com o Batman...
Enquanto Luísa falava, Emerson surgiu na cozinha, e deu dois tapas fortes no balcão de aço inox da pia.
Luísa sorriu amarelo, e se despediu com um tchau afônico.
Fábio se perguntou se aquilo era apenas ciúme do macho-alfa interiorano ou um indício de que sua denúncia fora levada adiante, ao menos até certo ponto. De que, conforme temera Fábio, Luísa não teve coragem de acusar o marido confirmando as agressões e feito a coisa toda havia se perder, deixando apenas a suspeita de Emerson de que o responsável pelo constrangimento era o vizinho do lado, sempre de olho em Luísa.
Não teve certeza.
Apanhou seus tênis como fazia sempre, sentou-se à mesa para calçá-los e, pela fresta entre as venezianas da sua janela, viu Emerson, no apartamento ao lado, empurrar Luísa para dentro da sala com violência.
Estavam os dois em silêncio, ela, de cabeça baixa, ele a olhando de cima. Ela virou-lhe as costas e deu um passo que a tirou do campo de visão de Fábio. Com apenas um dos pés calçados ele manquitolou até a janela quando Emerson a seguiu pra fora da fresta num movimento brusco que foi seguido por um baque.
Fábio abriu a janela, Emerson estava de pé no centro da sala, olhando pro chão. Aparentemente havia empurrado Luísa, que caíra.
Fábio via, na expressão de Emerson, que ele estava enfurecido. Tentava concatenar o que fazer. Chamar a polícia? Era isso? Ficaria de braços cruzados enquanto uma mulher era covardemente espancada a menos de dez metros de distância?
Não. Não fora o que aprendera na vida.
Calçou o outro tênis rapidamente e correu para o corredor do prédio, esmurrando a porta do apartamento vizinho.
Após segundos de silêncio, Emerson abriu.
Era mais alto que Fábio, o encarava com olhos injetados de ódio.
-Que tu quer? - Perguntou.
Fábio o ignorou. Procurou por Luísa atrás dele, a viu sentada no chão junto à parede da sala.
-Tudo bem contigo? - Quis saber.
Emerson o agarrou pela camisa na altura do ombro:
-O que é que tu quer?
Fábio deu um safanão com o braço, livrando-se da mão de Emerson.
-Deu pra ti, meu. Eu vou chamar a polícia. - Disse.
Chegou a procurar o celular no bolso da calça, mas deu-se conta de que, na pressa, deixara o aparelho em casa. Tudo bem. Eram poucos metros. Deu as costas a Emerson, que disse "Mas tu não vai, mesmo!", puxou Fábio pelo ombro, o colando de costas na parede como quem se prepara para algemar um suspeito, estavam dentro do apartamento, no pequeno hall que ligava a entrada à sala, o espaço era exíguo e Fábio não era nenhum raquítico. Jogou o peso do corpo pra trás, desvencilhando-se de Emerson. Olhou para Luísa, que chegava, tinha os olhos marejados:
-Emerson, pára com isso...
Emerson não parou, agarrou Fábio pelo pulso, e fez o movimento de uma torção. Fábio entendeu o que iria acontecer, e virou o corpo, dando as costas à Emerson e evitando a chave de braço. Deu um passo pra trás, braço erguido tentando abrir espaço entre si e seu agressor. Falou com Luísa:
-Eu vou pra casa e vou chamar a polícia. Eu acho que tu devia vir comigo. - Falou, respirando pesado. A adrenalina da situação e o esforço físico súbito aceleravam seu pulso.
Emerson riu:
-Cara de pau... Quer tirar minha mulher de dentro de casa, né?
Luísa falou novamente:
-Amor, pára... Não é isso.
Fábio surpreendeu-se que, em meio a tudo o que acontecia, ainda tenha encontrado disposição para sentir uma pontada de repulsa quando Luísa se referiu a Emerson como "amor".
Emerson, porém, não parecia amoroso. Olhou pra Luísa com faíscas nos olhos e bradou:
-Puta!
Luísa estremeceu, estacando onde estava. Fábio odiava gritos. Crescera em uma família de gente gritona, que achava que berros e achaques os faziam mais homens e resolviam qualquer situação. Fábio tinha ojeriza a gritos:
-Tá. Deu. - Disse, mantendo a voz baixa. -Luísa, vem comigo. Eu te levo na minha casa e a gente liga pra polícia...
Emerson o interrompeu desferindo um soco. Fábio se esquivou por milímetros, sentiu o deslocamento de ar do golpe na barba, e bateu com a cabeça na parede atrás de si ao pendular o tronco superior para trás. Colou na parede com um baque, a tempo de ver Emerson atacando de novo. Tinha os dentes rilhados, o cenho franzido e os punhos levantados, esmurrou de direita tentando o rosto, mas Fábio ergueu o braço, defendendo-se, o segundo golpe, de esquerda, o atingiu na altura das costelas, fazendo-o contorcer o rosto em uma careta.
Fábio respirou fundo. Emerson era um militar treinado, era poucos centímetros mais alto, mas Fábio era ao menos dez quilos mais pesado. Se fossem lutadores jamais partilhariam a mesma categoria.
Fábio resolveu usar isso em seu favor. Jogou o corpo pra frente, eliminando a distância entre os dois e acabando com a vantagem de alcance de Emerson, passou o braço esquerdo por sob a axila direita do policial e com a mão direita o pegou por trás da coxa esquerda como um amante querendo ser enlaçado pela perna da amada.
Não encontrou dificuldade para erguer Emerson do chão, enquanto o projetava pra trás pelo tronco. Emerson segurava a camisa de Fábio com tenacidade, e os dois caíram no chão com um estrondo quando a cabeça do primeiro atingiu o chão de parquê cor de mogno.
Fábio, por cima, colou o antebraço esquerdo no pescoço de Emerson, e o esmurrou com vontade com a mão direita, soco desferido ás cegas, que acertou o policial na maçã do rosto. Emerson segurou o pulso direito de Fábio com a mão esquerda enquanto, com a direita, agarrou sua garganta, estavam os dois ruborizados, fazendo ruídos de asfixia, quando um som de clique atraiu a atenção dos dois. Fábio ficou aliviado ao se deparar com Luísa segurando a pistola ponto quarenta de Emerson, engatilhada e apontada para onde estavam. Emerson ergueu os olhos e sua expressão era indefinida.
Luísa falou:
-Solta ele, Fábio.
Fábio tirou o peso do corpo do pescoço de Emerson jogando-se para trás e livrando-se da mão em seu pescoço. Emerson inspirou profundamente fazendo um ruído como um rosnado conforme a vermelhidão deixava seu rosto. Fábio levantou-se trôpego, apoiando-se na parede sentindo a ardência na laringe conforme tentava engolir a saliva. Quando falou, sua voz soou rouca:
-Eu vou ligar pra polícia...
Mas Luísa o deteve:
-Não. Não liga pra ninguém.
Fábio não entendeu. Olhou para Luísa com o que, acreditava, era uma expressão absolutamente confusa, que só piorou quando ele percebeu que ela apontava a arma pra ele, e não para Emerson.
-É sério? - Perguntou, ainda massageando o pescoço.
-Tu acha o que, Fábio? Que eu vou deixar meu marido por causa de uma briga? Que tu tá aqui pra me salvar?
Apontou com o queixo pra camiseta de Batman que o Fábio vestia:
-Vai pra casa. - Disse com desdém.
Fábio olhou para Emerson. Ele estava no chão. Chorando copiosamente como uma criança.
Luísa agachou-se ao lado dele, e soltando a pistola, começou a ajudá-lo a levantar.
Fábio, balançando a cabeça negativamente, saiu do apartamento, e andou os metros que o separavam de sua casa ainda massageando o pescoço. Dona Lydia, do 406, olhava pela janelinha da porta com curiosidade:
-Que foi tudo isso, Fabinho?
Fábio apenas balançou a cabeça. Entrou em casa, apanhou a carteira, as chaves e o telefone, e foi trabalhar.
Nas duas semanas seguintes, não viu Luísa na área de serviço nenhuma vez. Pouco ouviu dos vizinhos, também. Foi no terceiro sábado subsequente que ouviu a movimentação no apartamento ao lado e percebeu uma mudança.
Luísa e Emerson se foram. Fábio ouviu de dona Lydia que haviam se mudado para uma casa maior, num bairro mais afastado do Centro onde o aluguel era mais barato.
Mesmo semanas após a mudança, Fábio ainda se flagrava tentando entender o que levara Luísa a tomar o partido de Emerson.
Não esperava, francamente, que ela caísse em seus braços e que vivessem uma tórrida história de amor após o episódio, mas não entendia o que havia mantido a jovem bonita de Casca ao lado do marido abusivo de Marau. Senso de responsabilidade? Uma noção irreal de compromisso? Sentimento de culpa? Apenas hábito?
Fábio não sabia.
Olhou a camiseta do Homem-Aranha que vestia sentado no sofá da sala olhando para as venezianas fechadas do apartamento vizinho, e teve apenas uma certeza:
Algumas pessoas simplesmente não querem ser salvas.