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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Resenha Cinema: Pantera Negra



A Marvel tem sua forma de fazer cinema. E pouco sai disso. Exceto nos trabalhos de seus diretores mais autorais, nominalmente os irmãos Russo e especialmente James Gunn, não importa se estamos vendo um filme dirigido por Peyton Reed ou por Kenneth Brannagh, a assinatura da Marvel soterra a voz do diretor.
Pelas impressões iniciais jogadas na internet após o fim do embargo da Marvel à crítica especializada que tivera a oportunidade de assistir Pantera Negra, primeiro longa com um protagonista negro no MCU, tinha-se a impressão (ao menos eu tive...) de que Ryan Coogler, diretor de Fruitvalle Station e Creed: Nascido para Lutar, juntara-se aos criadores capazes da proeza de fazer um filme autoral da Marvel.
Essa perspectiva, sozinha, já seria o suficiente pra me levar pro cinema na pré-estreia da meia-noite do longa. Mesmo se o Pantera não tivesse sido apresentado de maneira tão bacana em Capitão América: Guerra Civil, a simples ideia de um novo Soldado Invernal ou Guardiões da Galáxia já me colocaria na fila ora conferir o longa o quanto antes.
E foi o que fiz.
O longa abre com uma bela sequência animada onde o pequeno príncipe T'Challa pede a seu pai, o rei T'Chaka, que conte novamente a história de seu lar, a nação africana de Wakanda.
Muitos e muitos anos atrás, Wakanda foi atingida por um meteoro. O bólido espacial era composto de Vibranium, o metal mais poderoso do universo Marvel (pré-adamantium). Desse metal precioso, Wakanda colheu os meios para se desenvolver além de qualquer outro lugar no mundo.
Enquanto a seu redor o mundo entrava e saía de guerras, conflitos e crises, Wakanda avançou soberana, mantendo-se à parte, florescendo em segredo até tornar-se um idílio tecnológico inimaginável.
Com suas cinco grandes tribos unidas sob a proteção de um rei que também é o portador de um protetor símbolo da adoração dos wakandanos por Bast, o Pantera Negra, o país encontra-se diante do momento de acolher seu novo monarca.
Após a morte de T'Chaka (John Kani) durante o atentado engendrado por Zemo, T'Challa (Chadwick Boseman) prepara-se para assumir o manto de seu pai.
Para tanto, porém, ele precisará se submeter ao desafio de outros potenciais aspirantes ao trono, passar por rituais preparatórios, e ouvir os conselhos de sua espiã, Nakia (Lupita Niong'o) que vem viajando pelo mundo há alguns anos e não gosta do que tem visto.
Infelizmente para T'Challa, decidir os destinos de Wakanda não é a única preocupação em seu futuro imediato.
Quando descobre que o traficante de armas Ulysses Klawe (Andy Serkis) está de posse de uma pequena porção de vibranium roubada de um museu na Inglaterra, T'Challa decide ir até a Coreia do Sul para impedir a venda do material.
Essa operação o coloca no radar de Eric Kilmonger (Michael B. Jordan), um ex-operativo da CIA que tem planos muito particulares para T'Challa e, especialmente, seu reino.
Para defender Wakanda de Kilmonger, T'Challa precisará decidir que tipo de país deseja comandar, e que tipo de monarca deseja ser.
É bem maneiro.
Entretanto, devo confessar que o hype excessivo provavelmente aumentou minhas expectativas muito além do recomendado.
Claro, Pantera Negra é um filme de super-herói muito bacana. Bonito, com uma história redondinha que se desenvolve de maneira orgânica e sem forçar a barra no roteiro do próprio Coogler mais Joe Robert Cole. Há toda a questão do papel do negro no filme, elevados à condição de protagonistas indiscutíveis em um universo de negros coadjuvantes como Mordo, Falcão e Rodhes. As personagens femininas fortes, de Shuri às Dora Milage, passando pela rainha mãe de Ângela Basset, e, claro, uma preocupação verdadeira com as motivações sociais e raciais dos protagonistas do longa, todas com um pé na realidade contemporânea.
Mas a verdade é que Pantera Negra é muito mais um filme da Marvel do que eu inicialmente supunha. Todas as assinaturas recorrentes dos longas do estúdio estão ali. As três sequências de ação obrigatórias, as piadinhas, a trilha sonora discreta, o 3D caça-níqueis, até a luta final meia-boca contra um inimigo que tem exatamente os mesmos poderes do herói...
Claro... Em time que está ganhando não se mexe, o cinema da Marvel é uma mina de ouro e talicoisa, mas já vimos a assinatura do estúdio ser menos evidente em outros longas.
Ainda assim, o longa é muito bacana, e, necessário em suas mensagens, tanto nas diretas quanto nas subliminares.
Com um bom trabalho de um elenco que conta com nomes como Danai Gurira, Daniel Kaluuya, Winston Duke, Forrest Withaker e Martin Freeman e o valor de produção habitual da Marvel nos cinemas, Pantera Negra é um filme divertido, elevado pela vem-vinda representatividade que simboliza, e certamente vale uma visita ao cinema.
Como de hábito, fique até o final dos créditos.

"-Você é um bom homem. Com um bom coração. É difícil para um bom homem ser rei."

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

O Trailer de Deadpool 2

E depois de ter feito piadinhas a respeito de como a Fox não quis pagar por um espaço para o trailer do longa no intervalo do Super Bowl no domingo, o mercenário tagarela apareceu na web ainda há pouco com o trailer completo da sequência do sucesso de 2016.
Como de praxe, não podia faltar uma tremenda zoeira e a quebra da quarta parede. Confira:



O longa traz de volta o elenco do filme original mais Josh Brolin como Cable e Zazie Beetz como Dominó. Novamente estrelado e produzido por Ryan Reynolds o longa tem roteiro de Drew Goddard, de Perdido em Marte e é dirigido por David Leytch, de John Wick e Atômica. A estréia está marcada para 17 de maio.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Resenha Cinema: A Forma da Água


Guillermo del Toro é muito mais do que o Peter Jackson latino. O diretor mexicano que vai do espetáculo de aventura descerebrado de O Círculo de Fogo à fantasia tocante de O Labirinto do Fauno passando pelo filme de super herói e pelo terror já deixou bastante claro que tem uma voz que é apenas sua, tão particular e única que toda a vez que ele salta fora de um projeto (e, rapaz, como ele salta fora de projetos...) os amantes de bom cinema lastimam uma chance perdida de ver um pouco mais do trabalho dele.
Do último segmento de sua trilogia de Hellboy qe jamais verá a luz do dia até sua versão de O Hobbit, ficamos imaginando como poderia ter sido se del Toro tivesse conseguido tirar sua visão do papel.
A questão é que, se o resultado de del Toro ter ficado de fora de Círculo de Fogo 2, por exemplo, é um filme como A Forma da Água, então, meus amigos, valeu a pena...
No longa conhecemos Elisa Esposito (Sally Hawkins, soberba), uma solitária faxineira muda que mora em um pequeno apartamento em cima de um antigo cinema e é vizinha de Giles (Richard Jenkins, sensacional), um pintor gay de meia-idade.
Elisa trabalha em uma instalação do governo dos EUA em Baltimore onde passa seus turnos de trabalho da madrugada ouvindo o falatório de sua colega Zelda (Octavia Spencer, ótima).
É 1962 e a Guerra Fria anda acelerada por conta do início da corrida espacial e em uma noite como qualquer outra, um novo "recurso" chega ao laboratório sob a supervisão do doutor Robert Hoffstetler (Michael Stuhlbarg) e do chefe de segurança coronel Richard Strickland (Michael Shannon). O recurso em questão, é um homem anfíbio (Doug Jones) dragado das profundezas de um rio no Amazonas, onde era adorado como um deus por uma tribo indígena. Para Hoffstetler, a criatura pode ser a chave para levar o homem ao espaço. Para os militares que comandam a operação, é uma coisa a ser estudada, para Strickland, é uma afronta a Deus.
Para, Elisa, porém, ele pode ser algo totalmente diferente.
Conforme os dias transcorrem, Elisa passa a entrar de mansinho no laboratório. Ela alimenta a criatura com ovos cozidos, ensina a linguagem dos sinais e lhe toca música... Aos poucos um laço se forma entre a faxineira e o homem-peixe, um laço ameaçado quando Strickland, um homem bruto e ignorante afeito a parábolas bíblicas, livros de auto-ajuda e um bastão elétrico de tocar gado, se convence de que a melhor forma de fazer avanços, é realizar uma vivissecção na criatura, abri-la e ver como funciona.
Ante a perspectiva de ver o homem anfíbio morrer, Elisa começa a divisar um arriscado plano para salvá-lo, um plano que não será capaz de realizar sozinha e que, mesmo se der certo, colocará ela e a criatura que deseja salvar em sérios riscos.
É espetacular.
A Forma da Água é, fácil, o melhor trabalho de del Toro desde O Labirinto do Fauno, com o qual compartilha diversas similaridades, especialmente no tom algo fabular e em seu vilão. O Richard Strickland de Michael Shannon é tão obstinado e cruel quanto o Vidal de Sergi López era no filme de 2006, e Shannon faz um excelente trabalho saboreando cada fração da vilania psicopata de Strickland como se fossem os doces que o personagem sempre carrega no bolso.
Na pior dar hipóteses, A Forma da Água seria um filme lindo de se ver.
Com um desenho de produção inspirado de Paul D. Austenberry, rica em verdes e azuis, figurinos espertos, cinematografia linda de Dan Laustsen e trilha sonora de chorar de Alexander Desplat, o longa já mereceria uma visita ao cinema. Mas há muito mais do que mera excelência técnica no longa.
A história engendrada por Vanessa Taylor e del Toro não tem pontas soltas ou arestas, é uma fábula onírica embrulhada em um filme B dos anos 50 sobre não se encaixar no que se considera ideal ou normal por ter nascido muito cedo ou muito tarde, como diz Giles. É sobre ser diferente e estar sozinho por isso, e subitamente descobrir que não é mais o caso.
Essa premissa pode não ter nada de novo, mas a forma que del Toro escolhe para expô-la e o elenco com o qual conta para isso fazem toda a diferença.
Sally Hawkins está fantástica. Sua personagem não é, de forma alguma, a deficiente sonsa que outras produções poderiam retratar. Elisa é corajosa, tem recursos, é assertiva com relação à sua sexualidade e seus desejos de modo geral. Richard Jenkins rouba praticamente todas as cenas em que aparece. Octavia Spencer é toda ternura e emoção. Cada um dos coadjuvantes faz o possível para que seus personagens não pareçam meros coadjuvantes e sucedem. Nós nos importamos com todos eles.
A despeito de certos problemas de ritmo (o segundo ato é algo arrastado, e a transição entre o romance mágico e o thriller sci-fi pode não ser digerida por todos os públicos) o longa sucede e encanta.
Guillermo del Toro ama monstros, e é capaz de estender esse sentimento à audiência através da história de Elisa e sua luta contra a maldade inerente ao ato de negar dignidade a criaturas vivas, mostrando que, na maioria das vezes, as pessoas são os verdadeiros monstros.
Veja no cinema. Aposta fácil na lista de melhores do ano.

"-Ah, Deus... A coisa nem mesmo é humana. Deus! ...O que?
Se nós/ Não fizermos nada/ também não somos."

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Não Importa


Tinha a mão dela entre as suas. O cheiro dela em suas narinas.
Despertou e sorriu.
Estava deitado na cama, vestindo apenas um velho calção da Adidas. Branco, com listras vermelhas. O rádio sintonizado em uma FM qualquer tocava músicas hora ruins, hora péssimas, vez que outra boas. Estava quente, mas era um calor facilmente gerenciável com a ajuda do ventilador.
Ela estava deitada junto com ele. Vestia uma camisola curta, que deixava suas pernas à mostra. Não se apaixonara pelas pernas dela. Se apaixonara por suas ideias e pela forma como ela as escrevia. As pernas haviam sido uma grata surpresa. Um inesperado, bem-vindo e apaixonante bônus.
Ela estava ali, deitada de lado, com as pernas encolhidas, mas descoberta. Ele podia ver suas pernas e parte da bunda, mas, fato raro, não tinha nenhuma luxúria enquanto a olhava.
Apenas ternura.
O cabelo dela, a cada volta do ventilador, fazia cócegas no rosto dele. Em outra ocasião, ele teria se afastado. Teria passado a mão no cabelo dela para colocar os fios fugidios em outra direção. Mas não naquela vez. Naquela vez, qualquer contato era acolhido. Qualquer toque era aceito.
Talvez porque, naquele momento, tivesse plena consciência de sua própria fortuna. Da dimensão de sua sorte. Do quanto era feliz ali. E teve no peito uma sensação morna de calidez e completude quando ela despertou levemente, e seus olhos se cruzaram com os dele na penumbra, e ela sorriu antes de voltar a dormir.
Ele ficou ali, deitado, sorrindo, quando subitamente pensou em como estivera perto de colocar tudo aquilo a perder. Em como quase desperdiçara aquela felicidade que mal podia medir. E puxou pela memória pra lembrar de como as coisas haviam se ajeitado. Em qual fora o passo decisivo para que a situação se remediasse e eles tivessem, finalmente, a chance de viver um ao outro da maneira que ele sempre havia imaginado...
E então se deu conta...
Aquele momento não existia.
As coisas jamais haviam se ajeitado. Eles não haviam consertado nada. O que ele havia quebrado, quebrado permaneceu. Não houvera festa de aniversário. Nem viagem. Semana na praia com passeios de mãos dadas à luz da lua e jantares desastrados entre risos. Não houvera mudança. Nem arrumação das estantes. Nem as discussões eventuais... Nada daquilo existira.
Respirou ofegante ao se dar conta de que estava sonhando. E de que iria acordar a qualquer momento sozinho em um apartamento vazio. Ela abriu novamente os olhos, percebeu que ele estava aflito, e se ergueu parcialmente, apoiando-se em um cotovelo. Inclinou-se, fazendo seu cabelo derramar-se sobre o rosto dele. e o beijou nos lábios. Passou a mão em seu rosto e sorriu de novo.
-Tudo bem? - Perguntou.
Ele respirou fundo. Sorriu de volta e assentiu.
Estava tudo bem. Estaria até acordar. Aquele seria um tempo precioso. Talvez o melhor momento de seu dia. E não importava se não fosse durar. Não importava sequer que não fosse real.
Tinha as mãos dela entre as suas. O cheiro dela em suas narinas.

sábado, 3 de fevereiro de 2018

A Viela


A viela ainda estaria escura mesmo no horário solar. Ás cinco da manhã, quando muito algumas nesgas de cor-de-rosa seriam visíveis no manto negro do céu. No horário de verão, nem isso. Era noite fechada cuja escuridão era quebrada unicamente pela luz amarelada das lâmpadas de mercúrio nos postes de iluminação pública.
Na viela, nem isso.
A viela ligava uma avenida de porte médio à uma rua paralela bastante tranquila, basicamente residencial exceto por um mercadinho e um restaurante que funcionava apenas no horário de almoço. A viela em si, também era residencial em essência, exceto pela lateral de uma antiga igreja de um dos lados da rua, e os fundos de um prédio público, e uma distribuidora de bebidas do outro. A viela tinha uma extensão modesta, metade, quando muito, de um quarteirão normal do bairro. E era iluminada por apenas dois postes, bastante apartados entre si, o que criava um longo percurso de escuridão a ser trilhado por quem quer que se aventurasse a percorrê-la nas horas mortas da madrugada.
Obviamente, um local ermo e escuro, como todos os outros de uma capital, tornara-se ponto de consumo de entorpecentes, e não era incomum ver moradores da região reclamando da onda de assaltos, por vezes violentos, quase na soleira de suas portas.
Os indigentes e sem-teto amontoavam-se junto à grade que cercava a igreja, e ali consumiam suas drogas em cachimbos improvisados com latas de refrigerante madrugada adentro. Durante o dia eram, no máximo, um incômodo, jogados pelas calçadas dormindo e causando mau-cheiro e sujeira. À noite, assustavam os moradores locais, que fechavam suas janelas e gravavam vídeos com os celulares para mandar para a polícia e estações de TV locais pedindo ajuda para lidar com o problema.
A cidade, falida, e a força policial, sucateada, nada podiam fazer.
Consumir drogas deixara de ser crime, com falta de vagas nos cárceres do Estado, apenas os crimes mais terrivelmente eram punidos com privação de liberdade. Normalmente, nem mesmo estes. A leniência da justiça tornara a polícia quase decorativa, sua única forma de impedir crimes não poderia ser através da ameaça de punição, mas da presença ostensiva, impossível ante a falta de aparelhamento, de modo que restava aos moradores da viela apenas resignarem-se, continuar dando graças pelo cenário não ser ainda pior, e evitar suas calçadas estreitas após escurecer. E era o que todos na vizinhança faziam.
Bem... Todos, exceto Úrsula.
Úrsula, todos os dias de manhã, deixava sua casa para o trabalho por volta das dez para as cinco da manhã. Tinha um turno de trabalho que considerava bom, das seis da manhã às duas da tarde de segunda a sexta. Trabalhava em um banco, na parte de computação, e seu turno era diferenciado porque ela era responsável por, em outras palavras, calibrar os bancos de dados dos computadores garantindo que tido estivesse funcionando na hora em que a agência abrisse suas portas.
Era um bom emprego.
Não requeria contato com o público, pagava um salário digno, e tinha o horário, que deixava quase toda a tarde livre para Úrsula fazer quaisquer atividades que desejasse.
Ela se lembrava de, ao ter conseguido o trabalho, pensar em todas as coisas que poderia fazer entre a tarde e a noite. Imaginara-se fazendo cursos, frequentando a academia, fazendo natação, viajando nos finais de semana e evitando os horários de movimento na estrada... Úrsula poderia realizar tanto...
Isso fora há três anos. E desde então, Úrsula se matriculara em uma academia duas vezes, apenas para desistir de frequentá-la antes do quarto dia de presença. Sequer pesquisou o preço da natação. Não fez nenhum curso, exceto um tornado obrigatório pelo banco quando o sistema operacional dos computadores foi alterado, e não fora viajar nenhuma vez.
Úrsula não era uma mulher feia.
Era murcha. Como uma planta abandonada ao sol.
Não namorava há quase oito meses, seu último relacionamento terminado por conflitos de agenda. Seu namorado, Argeu, queria fazer mil coisas. Ela não queria fazer nada.
Se Úrsula perguntasse a alguém "quantos anos tu achas que eu tenho?", a pessoa provavelmente responderia, politicamente, "trinta!", imaginando que ela tinha trinta e dois, talvez trinta e cinco. Quiçá trinta e sete...
Mas Úrsula tinha vinte e oito, quase vinte e nove.
Mais do que atrativos, faltava-lhe viço.
Úrsula, infelizmente, não ligava. E nem sabia ao certo por que. Onde aquilo se tornara regra. Mas tornara-se. Não era, que ela imaginasse, efeito de nenhuma desilusão amorosa, embora tivesse tido algumas. Tampouco de suas relações familiares. Úrsula crescera em um lar disfuncional como o de qualquer outra família, mas jamais fora exposta a abusos ou traumas de nenhuma espécie.
Ela chegara à conclusão de que o problema dela era ela própria.
E aceitava.
Via-se presa em uma vida repetida. Com dias iguais aos anteriores e nenhuma mudança à vista. Com nenhum sonho há muito almejado desfraldando-se no horizonte. Sem nenhum objetivo de médio, longo ou mesmo curto prazo a ser aguardado, Úrsula apenas existia.
Foi quando ela ouviu de uma vizinha do prédio, no elevador, o relato da viela.
De como aquele fosso de perigo e pavor formara-se no seio do bairro. Ali, a menos de duas quadras de onde estavam, podiam-se ver usuários de crack dopando-se em qualquer horário da noite. Que aquela viela era evitada por todos. Que não dava mais para transitar por ali mesmo de dia.
Num primeiro momento Úrsula não ligou.
Apenas mais tarde, tomando banho após uma ida obrigatória ao mercado relembrou da conversa, na verdade um monólogo, com a velha, e tomou uma decisão.
Da manhã seguinte em diante, Úrsula passaria a ir para o trabalho fazendo um itinerário que incluísse a viela.
Sairia de casa às cinco da manhã, e por volta e cinco e dez, ainda na penumbra noturna, estaria na entrada da viela para cruzá-la de uma ponta à outra, da pequena rua residencial até a avenida, onde tomava o ônibus.
Na manhã seguinte, Úrsula acordou antes da hora. Tivera uma noite de sono inquieto. Acordou-se duas ou três vezes das dez da noite até o despertador tocar, às quatro e meia.
Levantou-se e foi ao banheiro. Fez suas necessidades. Escovou os dentes. Tomou banho.
Escolheu uma roupa igual a que escolheria em qualquer outro dia, vestiu-se e saiu.
Andou da frente do seu prédio por um quarteirão e meio até a esquina onde a sua rua se encontrava com a viela, e parou.
Titubeou quando viu o negror da viela. Estacou sob o facho de luz amarela do poste, e observou por breves segundos a escuridão diante de si. O longo trajeto de breu até o facho de luz seguinte.
O medo a fez hesitar, mas também fez seu coração bater mais forte. E ela adentrou a treva com passos decididos em seus sapatos baixos e uma única esperança:
Ser assassinada antes de chegar à próxima lâmpada.