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sábado, 3 de fevereiro de 2018
A Viela
A viela ainda estaria escura mesmo no horário solar. Ás cinco da manhã, quando muito algumas nesgas de cor-de-rosa seriam visíveis no manto negro do céu. No horário de verão, nem isso. Era noite fechada cuja escuridão era quebrada unicamente pela luz amarelada das lâmpadas de mercúrio nos postes de iluminação pública.
Na viela, nem isso.
A viela ligava uma avenida de porte médio à uma rua paralela bastante tranquila, basicamente residencial exceto por um mercadinho e um restaurante que funcionava apenas no horário de almoço. A viela em si, também era residencial em essência, exceto pela lateral de uma antiga igreja de um dos lados da rua, e os fundos de um prédio público, e uma distribuidora de bebidas do outro. A viela tinha uma extensão modesta, metade, quando muito, de um quarteirão normal do bairro. E era iluminada por apenas dois postes, bastante apartados entre si, o que criava um longo percurso de escuridão a ser trilhado por quem quer que se aventurasse a percorrê-la nas horas mortas da madrugada.
Obviamente, um local ermo e escuro, como todos os outros de uma capital, tornara-se ponto de consumo de entorpecentes, e não era incomum ver moradores da região reclamando da onda de assaltos, por vezes violentos, quase na soleira de suas portas.
Os indigentes e sem-teto amontoavam-se junto à grade que cercava a igreja, e ali consumiam suas drogas em cachimbos improvisados com latas de refrigerante madrugada adentro. Durante o dia eram, no máximo, um incômodo, jogados pelas calçadas dormindo e causando mau-cheiro e sujeira. À noite, assustavam os moradores locais, que fechavam suas janelas e gravavam vídeos com os celulares para mandar para a polícia e estações de TV locais pedindo ajuda para lidar com o problema.
A cidade, falida, e a força policial, sucateada, nada podiam fazer.
Consumir drogas deixara de ser crime, com falta de vagas nos cárceres do Estado, apenas os crimes mais terrivelmente eram punidos com privação de liberdade. Normalmente, nem mesmo estes. A leniência da justiça tornara a polícia quase decorativa, sua única forma de impedir crimes não poderia ser através da ameaça de punição, mas da presença ostensiva, impossível ante a falta de aparelhamento, de modo que restava aos moradores da viela apenas resignarem-se, continuar dando graças pelo cenário não ser ainda pior, e evitar suas calçadas estreitas após escurecer. E era o que todos na vizinhança faziam.
Bem... Todos, exceto Úrsula.
Úrsula, todos os dias de manhã, deixava sua casa para o trabalho por volta das dez para as cinco da manhã. Tinha um turno de trabalho que considerava bom, das seis da manhã às duas da tarde de segunda a sexta. Trabalhava em um banco, na parte de computação, e seu turno era diferenciado porque ela era responsável por, em outras palavras, calibrar os bancos de dados dos computadores garantindo que tido estivesse funcionando na hora em que a agência abrisse suas portas.
Era um bom emprego.
Não requeria contato com o público, pagava um salário digno, e tinha o horário, que deixava quase toda a tarde livre para Úrsula fazer quaisquer atividades que desejasse.
Ela se lembrava de, ao ter conseguido o trabalho, pensar em todas as coisas que poderia fazer entre a tarde e a noite. Imaginara-se fazendo cursos, frequentando a academia, fazendo natação, viajando nos finais de semana e evitando os horários de movimento na estrada... Úrsula poderia realizar tanto...
Isso fora há três anos. E desde então, Úrsula se matriculara em uma academia duas vezes, apenas para desistir de frequentá-la antes do quarto dia de presença. Sequer pesquisou o preço da natação. Não fez nenhum curso, exceto um tornado obrigatório pelo banco quando o sistema operacional dos computadores foi alterado, e não fora viajar nenhuma vez.
Úrsula não era uma mulher feia.
Era murcha. Como uma planta abandonada ao sol.
Não namorava há quase oito meses, seu último relacionamento terminado por conflitos de agenda. Seu namorado, Argeu, queria fazer mil coisas. Ela não queria fazer nada.
Se Úrsula perguntasse a alguém "quantos anos tu achas que eu tenho?", a pessoa provavelmente responderia, politicamente, "trinta!", imaginando que ela tinha trinta e dois, talvez trinta e cinco. Quiçá trinta e sete...
Mas Úrsula tinha vinte e oito, quase vinte e nove.
Mais do que atrativos, faltava-lhe viço.
Úrsula, infelizmente, não ligava. E nem sabia ao certo por que. Onde aquilo se tornara regra. Mas tornara-se. Não era, que ela imaginasse, efeito de nenhuma desilusão amorosa, embora tivesse tido algumas. Tampouco de suas relações familiares. Úrsula crescera em um lar disfuncional como o de qualquer outra família, mas jamais fora exposta a abusos ou traumas de nenhuma espécie.
Ela chegara à conclusão de que o problema dela era ela própria.
E aceitava.
Via-se presa em uma vida repetida. Com dias iguais aos anteriores e nenhuma mudança à vista. Com nenhum sonho há muito almejado desfraldando-se no horizonte. Sem nenhum objetivo de médio, longo ou mesmo curto prazo a ser aguardado, Úrsula apenas existia.
Foi quando ela ouviu de uma vizinha do prédio, no elevador, o relato da viela.
De como aquele fosso de perigo e pavor formara-se no seio do bairro. Ali, a menos de duas quadras de onde estavam, podiam-se ver usuários de crack dopando-se em qualquer horário da noite. Que aquela viela era evitada por todos. Que não dava mais para transitar por ali mesmo de dia.
Num primeiro momento Úrsula não ligou.
Apenas mais tarde, tomando banho após uma ida obrigatória ao mercado relembrou da conversa, na verdade um monólogo, com a velha, e tomou uma decisão.
Da manhã seguinte em diante, Úrsula passaria a ir para o trabalho fazendo um itinerário que incluísse a viela.
Sairia de casa às cinco da manhã, e por volta e cinco e dez, ainda na penumbra noturna, estaria na entrada da viela para cruzá-la de uma ponta à outra, da pequena rua residencial até a avenida, onde tomava o ônibus.
Na manhã seguinte, Úrsula acordou antes da hora. Tivera uma noite de sono inquieto. Acordou-se duas ou três vezes das dez da noite até o despertador tocar, às quatro e meia.
Levantou-se e foi ao banheiro. Fez suas necessidades. Escovou os dentes. Tomou banho.
Escolheu uma roupa igual a que escolheria em qualquer outro dia, vestiu-se e saiu.
Andou da frente do seu prédio por um quarteirão e meio até a esquina onde a sua rua se encontrava com a viela, e parou.
Titubeou quando viu o negror da viela. Estacou sob o facho de luz amarela do poste, e observou por breves segundos a escuridão diante de si. O longo trajeto de breu até o facho de luz seguinte.
O medo a fez hesitar, mas também fez seu coração bater mais forte. E ela adentrou a treva com passos decididos em seus sapatos baixos e uma única esperança:
Ser assassinada antes de chegar à próxima lâmpada.
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