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segunda-feira, 24 de maio de 2010

Humano Demais.


Isabela se aproximou e emaranhou o cabelo de Otávio. Assim como adultos fazem quando veem uma criança fofucha que merece um afago. Ele passava do lado dela e ela se inclinou pro lado, como se pra olhá-lo bem, por inteiro, e sorriu, ato contínuo, esfregou a mão espalmada sobre a cabeça de Otávio, escabelando-o. Ainda sorrindo, piscou-lhe o olho esquerdo, e passou a mão em seu ombro enquanto seguia sem caminho.
Otávio sentiu como se tivessem lhe chutado as gônadas e cuspido em sua cara.
Ela, a Isabela, para Otávio, a guria mais gata do terceiro ano, lhe tratava como se trata ao primo retardado que se vê no Natal.
E ele era louco por ela. Ela... Linda, quase um metro e oitenta de altura, esguia, mas não uma tábua, os cabelos castanho-escuros lisos emoldurando-lhe o rosto de feições distintas para então caírem sobre os ombros repletos de sardas, o sorriso franco, os olhos, um capítulo á parte, com aquela dobrinha sob a pálpebra inferior, dando uma aparência mais franca ao sorriso, e fazendo com que os olhos sorrissem com facilidade. Ah, a Isabela.
O Otávio era apaixonado por ela desde o sexto ano do ensino fundamental. Haviam feito alguns trabalhos juntos ao longo dos últimos anos. Ele lembrava de todos. Artes na sexta série. Ele desenhou, ela pintou e apresentou. Matemática na sétima série, ela fez tudo, e foi amável o suficiente pra deixar ele assinar o nome na capa e garantir as nota que lhe salvaria o bimestre. Na oitava, Português, um grupo grande ela e ele mal se falaram, e Biologia, ele fez tudo, ela só fez a apresentação, que Otávio tinha vergonha de fazer, e tirou nota mais alta que ele, que nem se importou, na verdade, achou muito justo. Ele até mencionou o fato numa conversa no ano seguinte, mas ela não lembrava, apenas sorriu, arrancando-lhe um suspiro.
No primeiro ano do Ensino Médio não fizeram nada juntos, mas no segundo trabalharam juntos em Química, trabalho em dupla, ambos sentados côxa á côxa nas classes duplas do laboratório, Otávio fazendo esforço de monge zen-budista pra prestar atenção ás fórmulas das experiências quando as intermináveis pernas de Isabela estavam ali, ALI(!), tão perto, ao alcance da mão, e ao mesmo tempo, tão inatingíveis.
Isabela não era apenas atraente. Na verdade, era bem provável que, se fizessem uma pesquisa entre os alunos do colégio baseada em opinião aleatória, Isabela não estaria entre as dez meninas mais votadas no quesito beleza. Mas, se perguntasse "Isabela é bonita?" a imensa maioria diria que sim. Ela era bonita, quem olhava por un instante e prestava atenção percebia isso claramente, entretanto, ela, á despeito da altura, não tinha o tipo de beleza que saltava aos olhos. Não era uma beleza óbvia, era uma beleza que requeria admiração aos detalhes. Bastava olhar e eles estariam ali, todos os pequenos detalhes que faziam de Isabela uma menina tão bonita.
E Otávio tinha a dedicação necessária. Embora não houvesse, em primeiro lugar, se apaixonado pela aparência de Isabela. Foi pela personalidade dela. Ela era dessas gurias legais que, em algum momento da adolescência, todo o guri quer ter como melhor amiga, ou, com muita sorte, como namorada. Tinha personalidade forte, era expansiva, não era do tipo fadinha, patricinha, praticava esportes, tinha resposta pra qualquer insulto na ponta da língua, ria de piadas e assistia seriados e filmes maneiros, e não as porcarias que as outras gurias gostavam. Isabela era ideal. Era perfeita.
O problema é que Otávio não era.
Otávio era tão na média, mas tão na média, mas tão na média, que em uma enciclopédia de respeito, ao lado do verbete medíocre, poderia, sem nenhuma injustiça, haver uma foto de Otávio.
Ele tinha estatura média, peso médio, calçava 41, o tamanho médio do pé dos guris de sua idade, branco, cabelos e olhos castanhos, tirava notas médias, enfim, Otávio era uma ode ambulante á mediocridade. A única coisa em que Otávio se sentia, de fato, fora da média, era nos esportes, em que era particularmente ruim, e seu gosto musical, que ele considerava particularmente bom. O problema é que Otávio não via, em nenhum desses pontos, um que pudesse destacá-lo em meio á multidão. E Otávio tinha para si que, se não se destacasse em nada, Isabela jamais o veria como nada além daquele cara com quem ela fizera alguns trabalhos entre o ensino fundamental e o médio, e essa era uma perspectiva dolorosa. Não que Otávio fizesse drama á respeito. Ele gostava de Isabela, claro, mas não era um desses adolescentes deslumbrados que pensa que a sua namorada do ensino médio será o amor de sua vida até o final de seus dias, não, ele tinha a saudável consciência de que, um namoro do ensino médio é um namoro do ensino médio, e estava OK com essa perspectiva, a perspectiva que o assombrava era a de não ter oportunidade de tentar engrenar um relacionamento, por curto que fosse, com a menina de seus sonhos pelos últimos oito anos, mas como obter tal oportunidade quando se é tímido como era Otávio, quando se era tão repleto de insegurança que qualquer interação social que envolvesse mais de três pessoas lhe parecia um sacrifício e qualquer demonstração pública de seus sentimentos representava quase dor física?
Otávio não tinha ideia. E se sentia desolado por conta disso, por que o terceiro ano estava acabando, e, Otávio via se afastarem as possibilidades de ter uma chance de expôr seus sentimentos á Isabela se não tomasse uma atitude. Estaria relegado á emaranhadas no cabelo e sorrisos amigáveis, porém distantes, até a faculdade.
O que ele poderia fazer?
Uma declaração pública de amor, no meio do corredor. Se ajoelharia aos pés de Isabela e pegaria a mão delicada dela entre as suas e diria em bom tom, que a amava, que não conseguia pensar em outra coisa senão no amor que carregava por ela em seu peito.
Seria mentira, ele pensava em várias outras coisas. Além disso, baseado em sua experiência prévia, que não era lá das mais vastas, ele não poderia ter muita certeza de que aquilo que sentia por Isabela era, de fato, amor. Vá saber... Além disso, essa abordagem abria margem pra uma qualidade praticamente absoluta de humilhação pública, coisa com a qual Otávio não poderia arcar.
Ele poderia tentar algo como conversar com ela, mostrar que tinham vários interesses em comum, e então, chamá-la pra sair, como fazem as pessoas normais. Entretanto, em seu íntimo, ele tinha a impressão que que esse tempo havia passado lá pela oitava série, quando ele entrara em uma zona inóqua que não era nem a dos interesses amorosos nem a dos amigos, mas a dos colegas. Não, Otávio não podia mais dar-se ao luxo de abordagens normais. Era tudo ou nada, matar ou morrer.
E Otávio morreria.
Morreria pois era demasiado tímido, demasiado acomodado com as mazelas da vida para tomar uma atitude. Otávio fazia parte de uma geração de homens criados pela mãe, que cresceram sem exemplos masculinos válidos e presentes, e que temia tanto o fracasso que se abstinha de fazer qualquer tipo de tentativa.
Otávio sonhava com feitos simples que, em sua mente, ganhavam contornos épicos, mas que ele não tinha coragem de tentar, ele jamais se sentiria á vontade com o papel ao qual fora relegado nas afeições de Isabela, mas ao mesmo tempo, jamais se sentiria inconformado o suficiente para tomar uma atitude á respeito.
Otávio manteria sua postura amigável, sem grandes arroubos, e, vez que outra, teria seus cabelos emaranhados por Isabela, e, no futuro, talvez por outra moça que ele tornaria igualmente inatingível.
Otávio se conformaria não por não ser capaz de vencer as lutas, mas por ser incapaz de lutá-las.
Otávio era ridiculamente humano, e, de vez em quando, pensaria no que estava perdendo.

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