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quarta-feira, 12 de maio de 2010

Sensatez


Enquanto Francisco empilhava as suas roupas na bolsa de viagem e ouvia os gritos de Cecília na sala. Ela, de quando em quando, surgia na porta do quarto, e despejava uma pequena, porém bastante variada, série de impropérios e insultos, cerca de seis ou sete xingamentos bastante contundentes. De início, Francisco contou, esperando que ela repetisse algum, porém, após a quinta série sem nenhuma reprise, ele desistiu.
Abriu a gaveta do guarda-roupa e a encarou com tristeza. Como separar as suas meias soquete brancas das de Cecília? Não compravam meias por número, por tamanho, apenas compravam, e as partilhavam depois. Estavam juntos á tanto tempo, partilhavam tanta coisa, que as meias eram irrelevantes. Meias brancas, de usar com tênis, claro, eles tinha meias que eram apenas de um ou de outro, as meias sociais que ela insitia em chamar de "carpim", que ele usava com sapatos quando ia trabalhar, ou os meiões de futebol que ele usava com chuteiras, ela tinha suas meias longas de ginástica, que ele insitia em chamar de "pulligan", as meias-calça, de usar com saia e salto-alto, e meias elásticas que iam até pouco abaixo do joelho e que melhoravam a circulação.
Mas as meias brancas, as meias soquete, essas estavam todas juntas numa mesma gaveta.
Francisco poderia começar a contar as meias, e pegar metade dos pares. Mas a verdade é que não estava com vontade de fazer isso. Pegou cinco pares, jogou na bolsa, e partiu pra próxima gaveta. Apanhou suas cuecas, nem sabia que tinha tantas, Umas quinze cuecas. Por que raios precisaria de quinze cuecas? Poderia perfeitamente sobreviver com três. Imaginava se "Dirty" Harry Calahan, o personagem imortalizado por Clint Eastwood no cinema, teria uma gaveta com quinze cuecas. Claro que não. No máximo uma meia-dúzia. William Munny, então? Ou Blondie? Esses deveriam ter uma cueca. Duas, no máximo. Três, vá lá. Uma no corpo, outra no varal, e a terceira de back-up. Homens sensatos não precisam de mais de três cuecas. A quarta cueca é um símbolo de insensatez, de insegurança. Francisco largou novamente as cuecas no fundo da gaveta. Elas eram um símbolo de insensatez.
Assim como era Sofia.
Sofia era a causa da gritaria de Cecília, era a razão pela qual Francisco estava fazendo as malas. Sofia era a amante de Francisco. Quer dizer... Amante é um exagero. Amante evoca a ideia de uma teúda e manteúda sustentada por Francisco e que á qualquer momento poderia ter um filho dele. Não era o caso. Sofia era uma amiga de Francisco. Uma amiga antiga, de antes de Francisco conhecer Cecília. Sofia era loira, bonita, magrinha e baixinha demais pra o gosto de Francisco, que se sentia atraído por mulheres mais fartas, fornidas, por assim dizer. Francisco gostava de ter carne onde enfiar os dentes. Talvez por isso, na juventude, quando conheceu Sofia, jamais tentou levar as fronteiras do relacionamento de ambos para além da amizade. Era uma amizade divertida. Sofia era divertida. Haviam perdido contato após a faculdade, quando Sofia foi viajar para a Europa pra passar um tempo lá.
"Coisa de americano", como dizia Francisco, que após se formar imediatamente foi trabalhar na empresa de engenharia de um amigo do pai.
Lá conheceu Cecília. Cecília, com quase um metro e oitenta, cabelos castanho-escuros longos e lisos, e volume acumulado nos lugares certos imediatamente chamara a atenção de Francisco.
Ele a cortejou, ela aceitou, e logo estavam namorando. Eram muito diferentes, mas, apesar diso, se davam bem. Mantinham acordos tácitos, de abrir precedentes. Ele abria precedentes para programas de Cecília, Cecília abria precedentes para programas de Francisco, e assim iam.
Um dia jantavam fora e iam ao cinema, ou ao teatro, programas que agradavam á Francisco, em outro iam á um bar, ou fazer compras, programas de Cecília.
Entretanto, conforme o tempo foi passando, Francisco foi se tornando a parte que abria mais e mais precedentes, enquanto Cecília abria menos e menos precedentes.
Aquela situação incomodava Francisco, o fato de Cecília fazer o possível e o impossível para não atender aos programas que lhe cabiam, e, ao mesmo tempo, fazer um escândalo cada vez que ele tentava, de algum modo, escapulir dos programas dela.
O relacionamento se tornou um jogo de empurra, e foi, aos poucos, afastando Francisco de Cecília.
Cecília, que via todas as suas vontades prevalecerem, sequer notou o que acontecia, mas Francisco foi perdendo o interesse na relação, a identificação, e foi vendo seus sentimentos por Cecília empalidecerem. Talvez ele devesse ter deixado Cecília e seguido seu caminho. Teria sido mais honesto. Mais correto. Mas Francisco era demasiado acomodado. Pra ele parecia, á despeito da estagnação de seu relacionamento com Cecília, mais cômodo aguentar as pontas do que ter todo o trabalho de acabar um relacionamento, ou passar pelo estresse de sentar com Cecília e falar de suas aflições como seria mais sensato. Então, á despeito de a situação estar longe de ser a ideal. Ele foi levando com a barriga.
Eis que, por acaso, numa tarde após escapulir do trabalho para comer um pastel de palmito da pastelaria do Japonês, Francisco encontrou Sofia.
Ela havia morado fora do Brasil por 8 anos, vivera na Grécia, no Marrocos, na Espanha, mas voltara, não só por estar com saudades de casa, mas também por que sua mãe estava doente e carecia de cuidados.
Acabaram comendo juntos na pastelaria. Sofia continuava agradável, continuava divertida e bonita.
E estava de volta á vida de Francisco. Retomaram a antiga amizade, saíam juntos, iam ao cinema, ao teatro, eis que, em um momento de fraqueza, suas mãos se tocaram, o toque involuntário levou á toques voluntários, carícias, beijos, até que estavam ambos nus, suados e resfolegantes no carro de Francisco.
Um deslize. Conversaram, perceberam que fora um erro. Francisco era casado, Sofia ainda estava buscando estabilidade, não podiam seguir com aquilo, nem queriam, estragaria sua amizade, fora um momento de fraqueza, de insensatez.
Entretanto, á despeito de terem combinado que as coisas permaneceriam como estavam, que seguiriam sendo amigos, o imponderável surgiu em meio ao acordo de Sofia e Francisco.
Cecília e Franscisco estavam indo ao mercado fazer compras, quando Cecília se esgueirou pra apanhar o brilho labial que derrubara, e, sob o banco do carona, encontrou um sutiã.
O sutiã de Sofia.
Ele ergueu a peça e a olhou por longos minutos, sob uma expressão aturdida de Francisco. Então lhe mostrou á peça rendada e perguntou:
-O que é isso?
Ele não sabia o que responder. O que diria? Que o sutiã pertencia á Cecília e ela não lembrava? Que era melhor ela não tocar pois podia ser macumba?
Francisco, tomado por uma coragem inédita, contou a verdade. Era de Sofia.
De quem? Sofia, sua amiga, patati, patatá, contou tudo.
Cecília mandou levá-la de volta pra casa. Foram em silêncio todo o caminho.
Ao chegarem á garagem do prédio, Cecília sentenciou:
-Arruma tuas coisas e some.
Agora ali estava Francisco, pagando pela própria irresponsabilidade, pela própria covardia, pela própria insensatez.
Encarou a gaveta de cuecas com uma expressão torta.
Enquanto Cecília, com o rosto molhado de lágrimas e vermelho de raiva, encarava a TV desligada, Francisco passou em direção á porta.
Ele olhou para a mulher com quem dividira a vida por anos, e se amaldiçoou por não ter falado com ela antes. Pensou em se despedir, mas desistiu. Saiu sem dizer nada.
Cecília foi ao quarto, as gavetas do armário abertas, numa delas, vários pares de meias soquete brancas, na outra, uma dúzia de cuecas.
Enquanto o elevador levava Francisco ao térreo, ele apalpou as três cuecas no bolso da mochila.
Ligaria para um hotel, depois ligaria para Sofia. Contaria tudo o que acontecera pra ela, diria tudo pra ela. Falaria de suas aspirações, vontades e desejos.
Dali em diante, seu mote seria sensatez.

5 comentários:

  1. Ops! Um ato falho na história... Se ele tinha 15 cuecas, levou três... como ficaram duas dúzias de cuecas para a ex contar????

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  2. Francisco se amaldiçoa por não ter falado com Cecília ANTES ... seria sobre o relacionamento em si, da maneira que estavam ... ou ANTES de Cecília encontrar a prova evidente??
    ( by Yone )

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  3. Ah, sem dúvida a primeira opção, Yone, o Francisco não é tão desprezível.

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  4. Rodrigo, não digo desprezível, mas, porém, contudo, todavia .... rsrs

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