Pesquisar este blog

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Ideologia


O Tinoco e o Lourival andando lado a lado pela rua, encontraram-se ao acaso fazendo compras para suas respectivas esposas. À época da faculdade, o Tinoco e o Lourival sempre foram protagonistas de grandes debates que, não raro, terminavam se transformando em acaloradas discussões. Não fossem ambos amantes ardorosos do civismo e vaidosos homens de saber, provavelmente suas discussões acabariam em pancadarias. Como não era o caso, eles sempre encerravam suas discussões com um amigável aperto de mão e promessas de retomar aquele assunto em uma outra ocasião.
Eram, enfim, amigos, e pessoas sensatas, mas também eram militantes. Eram libertários extremados que achavam que qualquer iniciativa que não rompesse total e irrevogavelmente com governos, métodos e normas vigentes de qualquer estirpe estavam fadadas ao mesmo destino das convenções que existiam e, em suas palavras, apodreciam a olhos vistos.
Chegavam a juntar platéia em suas discussões que sempre fomentavam, os professores os adoravam, mesmo sendo, como autoridades mais presentes, constante alvo das investidas da dupla dinâmica, eram admirados e invejados pelos demais alunos da universidade, e chegaram a ser chamados por autoridades pra prestar esclarecimentos na época do AI-5. Trabalharam juntos no movimento Diretas Já, encontraram-se brevemente quando o movimento dos caras pintadas empurrou Fernando Collor pra fora do Planalto, e permaneceram amigos após a faculdade, mas, por essas mazelas da vida, acabaram perdendo contato e distanciando-se.
Então, após anos sem notícias um do outro, encontraram-se no super-mercado. Olharam-se brevemente na fila do panifício, mas incertos um da identidade do outro, mantiveram silêncio. O encontrou repetiu-se no setor de bebidas, onde o silêncio deu lugar a um constrangido aceno de cabeça de parte a parte. Apenas no caixa, quando pararam na mesma fila, um deles finalmente falou. Foi Lourival:
-Tu não és o...
-Tinoco.
-Arrá!
Conversaram animadamente, falaram a respeito do que andaram fazendo da vida, compararam fotos dos filhos e dos netos, títulos dos times do coração, conseguiram evitar política até entrarem em um bar para continuar o papo. Lá, a conversa enveredou pelas questões que eram inevitáveis e que Tinoco estava um pouco ressabiado em discutir. Ainda assim, foi Tinoco quem trouxe o assunto à baila:
-Me diz o que tu achas disso: Alguém falou que se tu não fores um liberal aos vinte, tu não tens coração, mas se tu ainda fores um liberal aos quarenta, tu não tens cérebro.
Lourival disse apenas:
-Já passei dos quarenta, posso me dar ao luxo de não me adaptar à essa norma burra.
Foi o estopim pra que revivessem as conversas, debates, discussões de anos e anos de faculdade e amizade. Falaram do PT, do Fogaça, do FMI, da presença do BNDES na fusão Pão de Açúcar/Carrefour, das medidas de austeridade econômica Gregas, presença americana no Iraque e o escambau, entretanto, Tinoco, até envergonhado, admitiu que amolecera em suas ideologias. Estava mais velho, mais inclinado à conciliação do que à ação. Que até invejava esse fogo de Lourival, que parecia ainda manter a mesma mente de quanto tinha vinte anos, cabelos compridos e barba cerrada.
Após algumas horas agradáveis para ambos, e tensas para os demais frequentadores do bar, os dois caminharam de volta ao mercado, onde os carros de ambos estavam estacionados.
Quando se aproximavam da loja, Lourival olhou para um agente de trânsito, com seu indefectível uniforme azul parado ao lado de um sedã prata. Lourival, correu em direção ao agente de tráfego.
-O que é que tu estás fazendo aí, companheiro? - Perguntou Lourival.
-O que o senhor acha que eu estou fazendo? - Respondeu o azulzinho sem levantar os olhos do palm-top.
-Eu acho que tu estás cometendo um engano, meu querido. - Disse Lourival, irritado.
-Eu acho que quem cometeu um engano foi a pessoa que não colocou a moedinha no parquímetro. - Respondeu o agente, ainda mexendo no aparelho eletrônico.
-Mas tá aqui o comprovante do parquímetro, rapaz! - Esbravejou Lourival enquadrando com as mãos o recido postado junto ao para-brisa.
-Vencido, cavalheiro. Vencido já tem vinte minutos. - Disse o agente de tráfego, finalmente olhando pra Lourival.
Tinoco tentou intervir quando o amigo ficou vermelho de raiva.
-Calma, calma. Será que não dá pra ele colocar mais uma moeda agora? Eu sei que não é a praxe, mas já está tão tarde, ninguém deve ter procurado por essa vaga...
-Não! - Bradou Lourival. Um cidadão nem sequer deveria ter que pagar pra estacionar uma rua que lhe pertence! Pela qual ele paga!
-Calma, Lourival... - Tentou intervir Tinoco.
-Não, não! Sem calma. Escute aqui, funcionário terceirizado da indústria da multa! Para de escrever nesse caderninho, agora mesmo, pois eu sou um indivíduo cumprimdor das minhas obrigações e me recuso a aceitar esse prepóstero.
O agente de trânsito se encrespou:
-Escute aqui o senhor. Eu já multei. E se o senhor não remover esse carro imediatamente, eu vou multar de novo.
-Eu não tiro! Não tiro! Ninguém deveria ter que remover o seu carro da via, o seu carro que tá aqui, com todos os selinhos de inspeção no vidro, com a placa bem cuidada, todos os impostos em dia, numa rua pela qual a gente paga milhões em impostos e nem sequer é um funcionário público que me multa, é um alcaguete terceirizado! - Protestou Lourival, agitando o punho no ar.
-Pois eu não só vou multá-lo, como vou passar um rádio pra central e avisar que o senhor se recusa a remover o veículo, de modo que ele será guinchado. - Devolveu o azulzinho, com pouco caso.
-Isso é um desaforo. Isso é humilhar um cidadão. É esse tipo de coisa que mostra que a sociedade não funciona! No barbarismo, eu pegaria a minha clava e lhe abriria o crânio-
-Calma, Lourival.
-Tô calmo, Tinoco, tô calmo, mas que isso é um ultraje, que isso é uma pouca vergonha, que é um disparate, ah, isso é. - Acalmou-se o Lourival.
O agente de trânsito, braços cruzados, perguntou:
-O senhor vai, ou não, remover o carro?
-Não. Não vou remover o carro. - Respondeu Lourival, resoluto.
Tinoco tentou dissuadí-lo:
-Tira o carro, Lourival, pra que se incomodar?
-Não. Não posso tirar o carro. - Replicou Lourival, seríssimo.
-Ah, meu Deus... - Lastimou Tinoco.
O agente de tráfego andou até a viatura da empresa de transporte e circulação, e falou através do rádio por um breve período.
-Nós vamos estar guinchando o seu veículo, senhor. É a última chance. Vai retirar?
-Não. - Disse Lourival, com desprezo.
-Não vai reclamar depois. - Encerrou a discussão o azulzinho voltando pra viatura.
Tinoco aproximou-se de Lourival.
-Olha, tchê... Tirei meu chapéu pra ti. Não digo que concordo com a tua posição, mas que tremenda firmeza de propósito. Parabéns. - Disse, apertando a mão do antigo colega.
-Ora, o que é isso, obrigado, obrigado. - Agradeceu Lourival, modesto.
-Bueno, preciso ir. Tu queres uma carona pra casa? Deixei meu automóvel no estacionamento do mercado. - Disse Tinoco, olhando pro relógio.
-Não, querido, obrigado, eu vou no meu carro. - Respondeu Lourival, com pouco caso.
-Mas eles vão guinchar o teu carro, Lourival. - Lembrou-lhe o Tinoco, com um meio sorriso, ao que Lourival respondeu:
-Ah, não. Esse carro não é meu.
Sem ter que arcar com as consequências, pensou Tinoco ao despedir-se de Lourival, era fácil manter as ideologias da juventude.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Manhã (quase) perfeita


O Jairo acordou naquela manhã gélida de bem com a vida. Era um dia frio, seis graus na rua, e se fora difícil sair de sob as cobertas logo cedo, e ainda mais difícil tirar o pijama do corpo quente para colocar as roupas de trabalho, lá fora o céu faiscava de um azul revigorante e profundo, não havia sequer sombra de nuvem no céu, e sob o olho do sol, a sensação de aquecimento era agradável como só o frio intenso podia fazer o calor ser.
Ao se pôr em movimento com seus grandes fones de ouvido protegendo-lhe as orelhas do vento inclemente ao som de Boys Don't Cry, do The Cure, e a despeito da ardência que o ar gelado causava em suas narinas à cada inspiração, Jairo sentiu um sorriso surgir-lhe no rosto. O sorriso voltou fácil quando ele parou na venda e comprou uma caixinha de suco de maçã, e se alargou quando ele comprou o jornal do dia.
Ao sentar-se em sua mesa no trabalho, porém, o sorriso desvaneceu-se. Jairo sentiu como se houvesse esquecido de alguma coisa. Como se houvesse algo fora de lugar naquele cenário que parecia tão bom momentos antes. O que poderia ser? O que poderia ser...? Pensava a respeito disso enquanto abria o jornal e ligava o computador.
Foi quando viu o recado dela. Ali Jairo percebeu que, por mais que o clima fosse bom, que seu suco de maçã estivesse no ponto, que ele não sentisse frio no pescoço ou nas orelhas, e a música estivesse perfeita no fone estéreo vermelho-vivo e branco que ele usava com prazer, e fosse dia de pagamento, e ele fosse jogar com seus amigos na tarde seguinte, as coisas nunca estavam como deviam ser quando ela não estava por perto. O suco ficou ruim. O frio ficou desconfortável. Os fones demasiado grandes. A música excessivamente alta, Sting & The Police, demasiado chatos...
Chegou a flertar com o mau-humor, mas aí lembrou-se de um detalhe: Muito já havia acontecido e conspirado para apartá-la dele. E nada dera certo. Iria vê-la em breve, sabia. Quando passou à próxima faixa do MP-3 player, sorria de novo. Pois o dia estava frio, ensolarado, o suco delicioso, a música boa, etcetera, etcetera...

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Crendices



O Eriberto ficou olhando meio de soslaio pra cigana velha a sua frente dentro do barraco mal-iluminado por velas em uma zona periférica da cidade que ele só conhecia de vista enquanto rumava pro litoral.
A velha perguntou, olhando pra ele, com um olho aberto e o outro fechado sob a cabeleira cinzenta desgrenhada, se ele queria uma leitura. Ele hesitou um segundo, e então disse que sim. Que queria uma leitura.
Eriberto era assim. Crédulo. Acreditava em tudo. Rezava na igreja, rezava junto com o tele-pastor da TV, também. Ia ao Centro Espírita receber passes, lia o horóscopo no jornal e conferia pra ver se batia com a previsão do horóscopo On-Line, já fora a todo o tipo de vidente que conhecia, das tradicionais quiromancistas, até as exóticas leitoras de borra de café, passando pelas tarólogas, leitores de búzios, astrólogos, tudo, incrivelmente tudo parecia fazer sentido pra ele.
Eriberto consumia com voracidade tudo o que se referia a exoterismos de qualquer espécie, e mitologias religiosas. Agora, namorando a Mariana a pouco mais de três meses, e apaixonado que só, ele se viu quase na obrigação de buscar informações a respeito do futuro.
Pra ele, parecia tudo certo. Eriberto adorava Mariana, não tinha como não gostar dela, ela tão bonita, tão boa, tão gentil, e prendada. Era tudo o que ele queria em um invólucro depele macia e lábios carnudos. Parecia óbvio então, que, mesmo sendo louco por Mariana, dando-se muito bem com ela, conhecendo Joelmir, pai dela, e dona Juracy, a mãe, e dando-se bem com ambos, também, e tendo estabilidade suficiente na vida pra levar a relação a um novo patamar de maneira saudável e sem sobresaltos, Eriberto fosse deixar as coisas transcorrerem dentro da normalidade.
Parecia. Mas não era.
Eriberto não resistiu. E, aconselhado por sua colega Suely, uma gordinha solteira de quarenta e poucos anos que tingia os cabelos de preto-azulado com reflexos lilazes e vivia sozinha com um gato chamado Carlos Gardel, foi até a tal vila afastada do Centro da cidade pra encontrar a cigana que fazia leituras de futuro em ossos de galinha!
"É batata, Eri! A mulher é uma bruxa, totalmente do mal! Não cobra dinheiro pelas leituras quase nunca, já me disseram que ela cobrou um botão da roupa da pessoa, um chumaço de cabelo, e uma lembrança! Coisa mais horrível, mas acerta tudo!" Foi o que lhe disse Suely com a voz aguda soando mais esganiçada que o habitual por conta da excitação.
"E tu já foste lá?" O Eriberto perguntou. "Eu, não! Deus me livre, que medo!" foi o que Suely respondeu fazendo o sinal da cruz enquanto batia na madeira e beijava o relicário que sempre trazia amarrado ao pulso.
Eriberto não resistiu. Enquanto via o relacionamento com Mariana se tornar mais parecido com sua ideia de felicidade perfeita, precisava de mais evidências de que o futuro não lhe reservava nenhuma espécie de percalço. Ligou pra Suely, que lhe deu o endereço da tal bruxa, e lá foi-se o Eriberto encontrar a velha em um beco qualquer de um região dominada por traficantes, ele tinha certeza.
Parou em frente ao barraco e bateu na porta de metal descascado com folhas de papelão onde deviam ser os vidros, e viu a figura sombria de uma velha medonha abrir a porta.
E então surgiu o diálogo lá do início:
-Tu qué uma leitura, filim?
Após hesitar brevemente, Eriberto assentiu, e a velha juntou um prato de sobremesa de porcelana suja e trincado debaixo de uma folha de jornal.
Enfiou as mãos nos bolsos sacando deles ossos de galinha ressecados e foi os atirando sobre o prato. Largou o prato sobre a mesa e cuspiu em cima dos ossos. Uma cusparada grande. Mordeu uma ponta de pele ressecada no canto da unha escurecida, e puxou rasgando a pele até protar sangue. Espremeu o dedo ferido em cima do cuspe no prato com os ossos, e, pousando a mão sobre o prato, o sacudiu com firmeza sob o olhar aturdido de Eriberto.
Ela largou o prato novamente sobre a mesa, aproximando-o de uma das velas. Os ossos, a saliva e o sangue formavam um conjunto asqueroso e ininteligível para Eriberto, a velha, porém, aproximou-se com os olhos apertados e ficou encarando a nojeira como se estivesse, mesmo, lendo alguma coisa.
-Tu tem um pobrema com uma mulé. - Disse.
-Bom... Não chega a ser um problema... - Ponderou Eriberto.
-Ainda... Mas vai sê. - A velha replicou agourenta.
-Vai ser o quê? Um problema?
-Sim. Pobrema dos brabo...
-Com a Mariana?
-Mariana... É... É o nome que eu tô veno aqui...
-Mas que problema... É alguma coisa séria? Ela tá doente?
-Não... Num tá doente, não... É... É uma velha... a mãe dela é viva?
-A dona Juraci?
- Juraci! Sim! É ela.
-O que tem a dona Juraci?
-Treis tigela de ódio. Ela vai te oferecer três tigela de ódio. E se tu tomá alguma delas, acabou tudo entre tu e a menina!
-Ah, meu Deus! Como assim três tigelas de ódio?
-Tu já comeu alguma coisa que a véia te ofereceu?
-Sim!
Eriberto lembrou-se do consomé de frango que dona Juraci mandara quando ele ficou gripado um mês atrás, e também do ravióli ao molho quatro queijos servido por ela no jantar seis dias antes. Amaldiçoou a própria estupidez com as mãos na cabeça.
-Mas foram só duas coisas!
-Num come a terceira! Num pôe na boca nada que essa vaca do inferno te ofereça! É a terceira tigela de ódio! Vai acabar contigo e a Mariângela!
-Mariana. - Corrigiu Eriberto, ainda assustado.
-Foi o que eu dizeu! Mariana. - Encerrou a velha bruxa.
Pra alívio de Eriberto, ela não combrou nenhum botão de sua roupa, nem tufo de cabelos, nem lembrança de infância, pediu sesenta reais, mas não tinha troco, então Eriberto deixou por setenta. No dia seguinte confirmou à Suely todas as qualidades da bruxa cigana, que adivinhou tudo, e ainda lhe deu receitas pra não ser pego de surpresa pelas artimanhas da macumbeira safada daquela velha miserável da Juraci, que ainda tinha a desfaçatez de tratá-lo cheia de mimos após ter-lhe feito comer duas tigelas de ódio e ficar insistindo pra ele comer a terceira oferecendo a ele todo o tipo de guloseimas e mandando docinhos e iguarias pela filha, que, sem saber das más intenções da mãe, tornou-se uma mensageira da discórdia e da tormenta.
O relacionamento deles azedou. Ele sabia por que. Duas tigelas de ódio o haviam tornado mais irascível. Preferiu não comentar nada, simplesmente não comeria mais nada que a velha demoníaca enviasse, pra não consumir a terceira tigela de ódio, e tentaria se controlar para se purificar do ódio que já consumira. Podia fazer isso. Seu amor por Mariângela era mais forte que o ódio de Juraci.
Mariângela, não. Mariana.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Culpa tua...


São as coisas que tu diz, eu acho... Não que todo o resto não seja sensacional, que todo o resto não seja excelente, lindo, tudo e bom. Não... Tudo o mais é tudo de bom, é lindo, é excelente, é sensacional. Não que sentir a tua pele nos meus lábios não seja algo que eu não posso e nem vou tentar expressar em palavras. Não que o teu cheiro, a maciez dos teus cabelos e a textura das tuas pernas não sejam experiências divinas. Não que os teus olhos, teus sorrisos e teus beijos não sejam o ponto alto da minha vida nos últimos anos... Eles são.
Mas o que tu diz... O que tu diz me faz querer ser um pouquinho menos pessimista. Um pouquinho menos cínico, sarcástico, maquiavélico e pragmático. Me faz querer ver mais O Sol É Para Todos, mais Antes do Amanhecer, mais Simplesmente Amor... Eu, fã do Schwarzenegger e do Stallone, eu que só não tenho um retrato do Chuck Norris na carteira por que carregar retrato na carteira é coisa de boiola, vendo Simplesmente Amor, e sorrindo feito idiota quando o Colin Firth entra no restaurante onde a Lúcia Moniz trabalha e fala com ela em português... Sabe? Eu não sou assim. Eu não sou pessoa de sorrisos fáceis e brincadeiras bobas... Eu sou sério. Eu sou quieto. Eu sou pragmático. O meu problema é tu... É tu, com o teu sorriso, com as tuas graças com as tuas idiossicrasias e a tua altura... É tu, e o que tu diz, o antídoto doce pro meu veneno amargo. O bálsamo das minhas dores. O oásis da minha peregrinação pelo deserto, e todos os outros símiles cafonas que tu puder lembrar. É tudo tu, a tinta que dá cor pros meus dias cinzas e solitários ao som de Oasis e Coldplay, que antes pareciam suficientes, e que agora, agora são apenas intervalos entre os momentos em que nós conversamos. Culpa tua...

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Repelir


-Há coisas - Disse o Eusébio, sentado à mesa do bar. - Que tu nunca vai me ver fazer.
A Carlota ficou só olhando pra ele, com cara de quem diz, "tá, e daí?". O Eusébio, mesmo sem encorajamento verbal, continuou:
-Tu nunca vai me ver fumar um cigarro. Eu meio que me acostumei com o cheiro, pois quase todo mundo que eu conheço fuma, mas eu tenho asco da ideia de fumar. Aquele negócio esponjoso na boca, tirando fumaça daquele cilindro de papel... É horrível.
O Eusébio conjecturava enquanto mexia os dedos das mãos casualmente. Ele parecia querer pegar algo que flutuava no ar.
-Tu nunca vai me ver de porre, também. Eu não bebo. Não tenho nenhuma vontade de beber. Acho que não gosto de estados alterados de consciência. Eu também não gosto do sabor da maior parte das bebidas alcoólicas, então, meio que junta a fome e a vontade de comer.
A Carlota continuava olhando pra ele, embora tenha parado brevemente pra olhar o relógio. Ele seguiu:
-Tu nunca vai me ver comer cebola. Especialmente cebola crua. Cebola, é o inferno, não gosto nem do cheiro, nem da textura, nem do sabor, nada. Cebola, longe de mim. Também não gosto de fígado. Fígado é horrível, tenho horror de fígado. Tu também não vai me ver ouvindo música a todo o volume. Exceto, talvez, com fones de ouvido. Mas em casa, não. Nunca. Eu gosto de música, não de todas, mas gosto de várias músicas, mas sou meio egoísta com relação a isso, eu prefiro que as pessoas não ouçam minhas músicas.
A Carlota suspirou um "OK" com os lábios entreabertos, e olhou pra cima. O Eusébio continuou olhando pra ela.
-Chato, né? - Perguntou.
-Um pouco. -Ela assentiu.
-É... Eu sei. - Ele completou.
Continuaram sentados na mesma mesa, mas quando deu meia-noite, a Carlota olhou pro relógio com cara de espanto, e disse que precisava ir embora. O Eusébio se ofereceu pra levá-la, mas ela disse que não precisava. Ele disse que não ia pegar o número dela, pois se sentiria tentado a ligar, ela sorriu e não insistiu. Eles não voltaram a se ver.
Ás vezes, os opostos simplesmente não se atraem, apenas se desgastam.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Eles sabiam


Desde que Indiana Jones e Marion Ravenwood enfrentaram os agentes nazistas do Reich no bar dela, que, se não me falha a memória, era na Sibéria, eles sabiam.
Desde que a Mary Jane parou na porta e disse pro Peter Parker que ele era um gatão e devia encarar o fato de que havia tirado a sorte grande, eles sabiam.
Desde que Padmé Amidala e Anakin Skywalker entraram na arena de Geonosis, eu sei que ela morre dando à luz e ele vira o Vader, ainda assim, eles sabiam.
Desde que o Jesse perguntou pra Céline se ela sabia o que aquele casal discutia em alemão no trem em direção à Viena, eles também sabiam.
Assim como Clementine Kruzynski e Joel Barrish sabiam.
Pato Donald e Margarida, sabiam.
Ricky e Ilsa, apesar de tudo, sabiam.
Por que ás vezes é assim... Ás vezes a gente apenas sabe.
Tu sabe.
Eu sei.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Safron.



-Safron.- Ele disse olhando pra um lado e sorrindo pro outro. Ela não acreditou:
-Mentira. - Disse sem esconder o pavor.
-Não, não. Sério. - Ele afirmou.
-Capaz... Não pode... - Ela disse ainda parecendo fisicamente incrédula.
-Tô te dizendo, guria. Safron. - Ele repetiu, tinha até um certo orgulho na voz.
-Mas... Mas por quê? - Ela perguntou cobrindo a boca com a mão enquanto ria.
-Ah, sei lá... Em inglês, acho que é o nome de uma flor, mas com dois efes. Meu nome tem um efe, só. Provavelmente minha mãe nem sabia disso. Ouviu a palavra e gostou do som, e pronto. Eu sou, muito provavelmente o único Safron homem na face da terra que não ganha a vida vestido de mulher, nem nada do tipo. - Ele riu.
-Não pegavam muito no teu pé, na escola? - Ela quis saber.
-Ah, um pouco. Nada de grave. Ás vezes me chamavam de "açafrão", "sifão", ou bobagens do tipo. Nada de traumático. No começo, claro, eu ficava bravo, magoado, mas depois a gente supera. - Ele falou olhando pro infinito, como se tivesse, por um breve instante, sentido novamente a alfinetada de anos pretéritos.
-Óóóóin... - Ela gemeu penalizada enquanto pousava a mão esquerda no ombro dele.
Horas mais tarde, os dois na cama de um motel meia-boca em algum recôndito feioso do Centro de Porto Alegre, faziam sexo apaixonadamente.
Foi sensacional, suado, resfolegante, selvagem. Passaram horas nisso. Quando o sol começava a se erguer acima da linha do horizonte, ela acariciava o peito dele fazendo movimentos circulares com a unha, imaginava se aquele seria o homem de sua vida.
Se chamaria o pai dos seus filhos de Safron. Podia acostumar-se com isso.
-Ai, Safron... Foi tão bom... - Ela miou.
-Ah, foi graças à tua presença. Sem tu por perto teria sido horrível. - Ele respondeu acariciando-lhe os cabelos. - Mas - Ele continuou. - Eu preciso te confessar uma coisa.
-O quê? - Ela quis saber, virando-se de bruços e olhando pra ele com um sorriso enquanto apoiava o rosto no punho.
-Meu nome... - Ele hesitou. - Não é Safron.
-Quê? - Ela perguntou incrédula.
-É... Olha, desculpa se isso te desaponta, mas eu precisava de um jeito de chamar a tua atenção. Assim que eu deitei o olho em ti, eu sabia que precisava falar contigo. E, sei lá, achei que, a única forma de uma mulher linda como tu reparar em mim seria assim, entende? Com alguma coisa estrambólica, como se chamar Safron.
Ela se levantou, enrolando-se no lençol e descobrindo-o. Ele virou o corpo pra esconder a própria nudez.
-Qual é o teu nome? - Ela perguntou, austera.
-Olha... - Ele começou, mas foi interrompido:
-Qual teu nome?
-É Douglas. - Ele respondeu conformado.
-Douglas... - Ela repetiu incrédula.
-É, mas olha, tirando isso, eu fui totalmente sincero sobre todo o resto, e se tu me der a oportunidade, eu vou me dedicar a apagar essa mancha no início da nossa relação.
-"Relação"? - Ela perguntou apontando os cantos da boca pra baixo. E seguiu:
-Tu acha que eu vou manter uma "relação" com alguém que nem tu? Quem mente descaradamente pra arrastar uma mulher pra cama? Com um pusilânime de duas caras que quer basear todo um relacionamento em cima de uma mentira? Não mesmo. Não senhor. Eu: Fora. Tu podes tentar isso lá com as tuas negas, comigo, não. Até porquê, o senhor nunca mais vai me ver.
Ela juntou suas roupas e saiu, ofendidíssima.
Ele fez menção de ir atrás dela, mas ela bateu a porta com tanta violência que ele desistiu. Caminhou com um sorriso até o criado-mudo, apanhou sua carteira e sacou de lá o cartão de crédito onde lia-se:
Safron Gomide de Souza.
Enquanto ligava para a recepção para pagar pela estadia, pensava que ainda não haviam inventado forma melhor de tornar sexo casual mais livre de vínculos do que uma briga depois do ato. E que fazer seu nome parecer uma mentira inventada pra obter atenção, ainda era a melhor forma de conseguir a tal briga.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Invernos


O Luciano, jovem, alto, forte, subia a rua a passos lentos naquela manhã gélida de junho. Caminhava devagar pois estava adiantado para o trabalho. inha aproveitando o frio. Adorava o frio. Caminhava sentindo o ar gelado entrar pela abertura do casaco escuro e fustigar-lhe o torso.
Foi quando viu um velhinho:
Eradir, cabelos brancos, olhos fundos atrás das lentes esverdeadas de um óculos imenso, cachecol marrom enrolado no pescoço enrugado, parecia um robô, tanta roupa havia por cima do homem a impedir-lhe os movimentos caminhando no sentido oposto. O velhinho praguejava contra o frio. Amaldiçoava o inverno, reclamando baixinho, mas não baixo o suficiente, do ar congelante que lhe enrigelava os ossos.
Luciano, jovem, viril, camiseta de mangas curtas sob um casaco de lã o olhou com pouco caso. O ancião viu. Olhou para Luciano, também com pouco caso detrás do cachecol que se enrolava por sobre sua boca e nariz e serpenteava por dentro da camiseta de física que usava sob uma camiseta de mangas longas, uma camisa de flanela, um pulôver, um blusão de lã, um agasalho de moletom e uma jaqueta parka.
Ali estavam, dois representantes totalmente diferentes de uma mesma espécie. Se um deles era aquecido pela própria vitalidade, pela própria juventude, o outro, já em idade provecta, não tinha outros interesses que não fossem manter-se quente e reclamar.
Eram diferentes em tudo. Visão política (Um liberal, o outro, conservador.), time de futebol (Um colorado, o outro, gremista.), gosto pra filmes (J. J. Abrams, Hitchcock), pra músicas (Radiohead, Chico Alves), prato preferido (Xis-Bacon, mocotó.), bebida preferida (cerveja, licor de menta.), tudo.
Se olharam como devem fazer os leões quando o líder do bando percebe outro macho jovem se aproximando para desafiá-lo. Encaravam-se sérios, sisudos, quase raivosos.
Foi quando passou entre eles uma moça.
Era linda. Alta, cabelos loiros muito lisos, olhos muito azuis, quase faiscantes, vestia um casaco curto de couro, e um short jeans cavadinho sobre meias de lã que envolviam-lhe as pernas quilométricas terminando dentro de botas de caubói.
Ela passou entre os dois, e ambos olharam para ela com olhos desejosos.
Luciano ergueu os olhos a tempo de perceber que Eradir olhara para o mesmo lugar que ele.
Ergueram as sombrancelhas e baixaram os cantos da boca em sinal de admiração.
-Ô lá em casa! - Disse Luciano.
-Benzadeus! - Disse Eradir.
Há coisas que os homens têm em comum, que nem o passar de todos os invernos muda.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Resenha Cinema: X-Men - Primeira Classe


Em 1998, um filme estrelado por um herói do terceiro escalão da Marvel mostrou ao mundo que super-heróis podiam ser rentáveis no cinema. Esse super-herói, era Blade, e o filme em questão, era Blade - O Caçador de Vampiros. Sem o super-herói marrento interpretado por Wesley Snipes, nós jamais teríamos tido Homem-Aranha, Homem-de-Ferro, Thor e Capitão-América desembarcando no cinema a cada seis meses, certo?
Quase.
Na verdade, o sucesso de Blade, um flme de orçamento médio, e olhe lá, com um super-herói que era coadjuvante no gibi A Tumba de Drácula e que nem fãs de quadrinhos conheciam direito, não era garantia alguma de que os super-heróis da Marvel poderiam ter vida longa na tela grande. Pra isso, um super-herói mainstream precisava aparecer na tela em um filme de grande orçamento, e fazer bastante dinheiro além de boas críticas (O contrário do que a cine-série do Batman vinha fazendo nas mãos de Joel Schumacher.).
Quem resolveu arriscar foi a Fox. O estúdio da raposa e os produtores Lauren Schuler-Donner e Tom DeSanto ofereceram o projeto de X-Men, filme à ser baseado no gibi hit de vendas criado por Stan Lee e Jack Kirby em 1963 e que se tornara um estrondoso sucesso nas mãos de Chris Claremont e John Byrne, ao diretor Bryan Singer... ?
Sim, Bryan Singer, o homossexual judeu e adotado (Sem nenhum preconceito, mas são três crachás de pessoa sensível) que dirigira os excelentes Os Suspeitos e O Aprendiz, filmaços, sim, mas que eram muito mais suspenses cerebrais do que filmes de ação.
Singer aceitou o trabalho, e, á despeito da pilha de problemas que foram desde a substituição do ator principal (Dougray Scott, inicialmente seria o Wolverine, mas acabou substituído por Hugh Jackman), passando por orçamento e prazo de conclusão do projeto apertados, ao crivo destrutivo dos fan-boys via web, então uma novidade, o filme foi lançado.
E obteve sucesso.
Sucesso o suficiente pra dar origem ao excelente X-Men 2, novamente dirigido por Singer, e muito melhor do que o antecessor.
Com a franquia estabelecida, Singer trocou os mutantes da Marvel pelo Homem do Amanhã da DC e foi filmar o sem-graça Superman - O Retorno, ao mesmo tempo em que a Fox entregava X-Men 3 nas mãos de Matthew Vaughn, que acabou saltando fora do projeto, que caiu no colo de Brett Ratner. Daí pra frente, a franquia X só piorou. X-3 foi um fiasco, e o spin-off solo do mutante canadense Wolverine, dirigido pelo promissor cineasta sul-africano Gavin Hood, conseguiu a proeza de ser ainda pior.
Não era de se espantar, então, que ninguém levasse fé em X-Men - Primeira Classe. Filme que aparentemente reboota a série recontando a origem da escola Xavier para Jovens Superdotados desde o primeiro encontro de Charles Xavier e Eric Lehnsherr.
O elenco, encabeçado por James McAvoy, de O Procurado, e Michael Fassbender, de Bastardos Inglórios não convenceu ninguém à época de seu anúncio. A direção, novamente entregue nas mãos de Vaughn, que após saltar fora de X-3, fugiu, também de Thor, levantava a questão "será que dessa vez ele fica até o final?".
Tudo isso somado ao fato de o novo longa ser o reboot de uma série que já contava com quatro filmes, sendo dois deles excelentes, não podiam, mesmo, deixar nenhum fã contente.
Mas havia um trunfo na manga da Fox.
Bryan Singer havia voltado. Não como diretor, mas como produtor e roteirista. Eu me lembro que, em 2009, quando se comentava que ele dirigiria X-Men Primeira Classe, eu disse em um fórum, "Singer e os mutantes, parceria das boas.".
Acabei perdendo a esperança conforme iam sendo anunciadas as novidades do filme, e acabou que no sábado, assisti a película quase ao acaso.
Após duas horas e doze minutos de projeção, devo dizer que tinha razão: Singer e os mutantes, são, mesmo, uma parceria das boas.
O longa mostra, na década de sessenta, Charles Xavier e Eric Lehnsherr, dois jovens mutantes com visões e propósitos totalmente antagônicos formando uma aliança em meio a uma crise internacional maquinada por um mutante:
Sebastian Shaw (Kevin Bacon, extremamente à vontade, se divertindo no trabalho.), o líder do misteroso Clube do Inferno, que usa seus poderes, influência e capangas (Azazel, interpretado por Jason Flemming, Maré Selvagem, vivido por Álex Gonzáles, e a Rainha Branca da deliciosa January Jones.) para manipular líderes militares de EUA e URSS e deixar o mundo á beira da terceira Guerra Mundial na famosa Crise dos Mísseis em Cuba.
Para impedí-lo, os dois criam um grupo de jovens mutantes subsidiado pelo governo, que precisam aprender a controlar seus poderes e hormônios antes de ir ao campo de batalha encarar o grupo de Shaw, uma tarefa que se torna mais complicada a medida em que a proposta de Shaw para um mundo de mutantes e a desconfiança dos humanos comuns podem empurrar os jovens para o lado errado do conflito.
Se existem super-poderes, um vilão que quer destruir o mundo, e ação (e tudo isso existe), tudo isso é pano de fundo, e fica em segundo plano.
X-Men - Primeira Classe, é um filme sobre as diferenças, não apenas entre pessoas com aparências e poderes incomuns, algo que fica evidente no arco destinado à Mística (A ótima Jennifer Lawrence) e Fera (Nicholas Hoult, competente), mas também entre pessoas com diferentes backgrounds.
Eric Lehnsherr é obcecado com a ideia de vingança, e quem pode culpá-lo, após crescer sofrendo tormentos ímpares nas mãos de nazistas em um campo de concentração?
Charles Xavier é um jovem divertido e bon-vivant, que nasceu em berço de ouro acreditando que poderia construir pontes entre as pessoas comuns e os mutantes.
As diferenças entre os dois, suas discussões e ideais semelhantes mas diversos, são o ponto alto do filme, e as atuações de Fassbender (raivoso, enfurecido, sanguíneo) e de McAvoy(Não menos brilhante em sua suavidade e charme.) nos ajudam a crer que ali estão os homens que, no futuro, se transformarão no Ian McKellen e no Patrick Steweart da trilogia original.
Claro, não adiantaria estar recheado de boas ideias dos roteiristas e atuações do elenco (Que ainda tem Rose Byrne, Oliver Platt, Calleb Landry Jones, Edi Gathegi, Lucas Till e Zoë Kravitz) se a ação não convencesse. Mas ela convence, é bem coreografada, excitante, e convence como deve, sendo o acessório que é pra um longa onde as ideias não são sobrepujadas pelo hype, e onde as atuações não ficam escondidas sob os efeitos visuais.
Obrigado, Bryan Singer, você conseguiu de novo. Não fique fora tanto tempo da próxima vez.

"-Ouça-me com atenção, meu amigo. Matar não lhe trará paz.
-Paz nunca foi uma opção."

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Dizer... Não dizer.


A lídia estava parada na frente do rpédio onde morava. À sua frente, repousavam na calçada duas bolsas de viagem, uma mochila, e uma daquelas malas com rodinhas e uma alça telescópica. Estava bonita a Lídia. O cabelo castanho-escuro comprido e encaracolado caindo de dentro de um gorro de pelúcia sobre os ombros envoltos por um casaco de lã cinza-chumbo, o rosto fino e bem desenhado atrás de enormes óculos escuros, e as mãos delicadas protegidas do frio abraçando o torso esguio enquanto ela batia, impacientemente um dos pés na calçada.
Lídia olhava pros lados, tinha o nariz bonito vermelho. Seria o frio? Podia ser o frio. Foi o que pensou Oscar enquanto se aproximava com seu passo retraído pela calçada, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco preto, o cabelo escuro molhado e jogado pra trás dando-lhe aparência de cantor de tango. Parou na frente de Lídia e olhou pra ela com os olhos apertados e o cenho franzido. Apontou a bagagem no chão com o queixo:
-Até parece que tu tá te mudando.
Ela riu. Brevemente, mas riu. Oscar ficou feliz. Era bom saber que ainda a fazia rir. Ela olhou pra ele.
-Tá quase na hora.
-Eu sei. - Ele assentiu.
Ficaram ali parados, um do lado do outro. Um minuto. Dois. Em silêncio. Quando ele foi falar, ela começou ao mesmo tempo. Ele riu.
-Desculpa, pode falar.
-Não, não, fala, tu. - Ela replicou.
-Não, tu. - Ele insistiu.
Ela concordou:
-Não, eu só ia te perguntar se tu não queria pegar aqueles DVDs... O Antes do Amanhecer e o Antes do Pôr-do-Sol.
-Ah, não... Não... Eu não ousaria te deixar órfã do Jesse e da Céline. Não, mesmo. Como eu iria dormir à noite? Além do mais, foram presentes. Eu não posso pegar de volta.
Ela sorriu sem dizer nada. Olhou pro chão. Olhou pro céu.
-Que tempo feio.
-Eu até gosto. Dias nublados, frios e carrancudos me fazem sentir em casa. Acho que refletem meu estado de espírito permanente. - Ele riu.
-Não é tão permanente. - Ela respondeu.
-Mas tá com frio, né?
-Um pouco. - Ela reconheceu esfregando a mão esquerda no braço direito.
-Tô vendo. - Ele continuou. - Nariz vermelho.
Ela puxou o ar com força pelo nariz, fazendo um ruído.
Ele sorriu olhando pra ela. Viu, bem longe, vindo pela rua de paralelepípedos, o táxi branco e azul do aeroporto.
Ela também viu. Virou pra ele sorrindo.
-É... Aqui vou eu. - Suspirou.
Ele ficou nervoso. Sorriu mas não sabia o que dizer. Pensou em tocar nela. Chegou a erguer a mão, mas deteve-se. Ela ia apanhar a mochila e colocá-la nas costas, mas ele a impediu.
-Não, peraí, deixa que eu pego.
Abaixou-se, e puxou a mochila pela alça grunhindo, estava muito pesada.
-Credo... Olha, não adianta fugir do país pra evitar a lei se tu tá levando o cadáver contigo. - Bufou.
Ela não entendeu a piada:
-Quê?
-Nada. - Ele se endireitou.
Apanhou, também, as duas bolsas de viagem. Ela agarrou a alça da malade rodinhas.
O táxi estava mais perto, agora, menos de duas quadras.
Ela sorriu de novo. O nariz muito vermelho. Seria mesmo o frio?
-Tira essa fantasia de vespa pra me dar tchau. - Ele pediu fingindo intransigência.
Ela riu, enquanto o táxi parava junto ao meio-fio. O motorista desceu do carro, e caminhou a passos lentos até atrás do carro abrindo o porta-malas. Oscar andou com alguma dificuldade até o porta malas e acomodou a mochila e as duas bolsas. Apanhou a mala de Lídia e a colocou ali, também. Ficou um pouco amontoado, mas coube. Ela parou junto à porta do automóvel, os braços estendidos junto ao corpo, ficou ali parada, olhando pra ele. Ele fechou a tampa do porta-malas e teve a impressão de vê-la limpar o rosto. Seria uma lágrima? Estaria ela chorando? Teria alguma dúvida sobre ir, ou não? Ele andou até ela.
-Bom... Parece que é isso.
-É... - Ela confirmou.
-Não vai, mesmo, tirar essa fantasia de vespa pra me dar tchau? - Ele inquiriu.
Ela riu. Tirou o gorro e abraçou ele com força os braços firmes ao redor de seu pescoço. Ele a abraçou com firmeza, também, na altura das costelas.Ficaram assim alguns segundos.
"fica."
Ele quis dizer.
"Fica comigo. Não vai embora. Tu sabe que a gente tem que ficar junto. Pelamordedeus, todo mundo sabe que a gente tem que ficar junto!"
Ele pensou.
"Teu lugar é aqui. Teu lugar é aqui. Não nesse prédio, nem nesse bairro, nem nessa cidade, nem nesse país, teu lugar é aqui, junto comigo, no meio dos meus braços, aninhada no meu peito."
Ele tomou fôlego.
-Tchau.
Ele disse.
-Tchau.
Ela respondeu.
Ele abriu a porta do táxi, ela entrou. Olhou pra ele sorrindo.
-Vou sentir saudades.
-Me manda um postal. Um com a abadia de Westminster, de preferência.
-Eu vou pra Alemanha, bobo. Tem que ser a Marienplatz, de Munique.
-Não seja sovina, é tudo perto praquelas bandas. Pega um trem, vai à Londres e me manda um postal da abadia.
-Tá bem, vou fazer o possível. - Ela concordou.
-Se tu não mandar eu ligo te corneteando.
-Liga, mesmo. - Ela pediu.
Ele fechou a porta do táxi e ficou olhando enquanto o carro partia. Ela acenou brevemente, e então tirou os óculos, e ele podia jurar que, mesmo através da película escura do vidro, viu ela fazer o movimento de apertar o alto do nariz, entre os olhos, com o indicador e o polegar. Pensou em ligar pra ela. Chegou a tirar o celular do bolso. Mas não ligou.
Ela nunca envuou o postal da abadia, ele nunca telefonou. Ela namora um grego chamado Georgious, que acha Antes do Amanhecer e Antes do Pôr-do-Sol muito chatos, ele está sozinho, mas disse que está bem. Talvez vá à festa do cunhado na semana que vem, mas não prometeu nada.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Resenha Cinema: Um Novo Despertar


Mel Gibson é maluco. Todo mundo sabe que ele é maluco. Até a violinista russa que casou com ele e estranhou quando apanhou e foi ameaçada por telefone devia saber que ele não batia bem da cacholeta quando se casou com ele. Em seu primeiro papel de destaque ele era Mad Max. Ele interpretou o psicopata do bem Martin Riggs na série Máquina Mortífera, Ele ousou dirigir filmes falados em línguas mortas. Mel Gibson sempre é um maluco convincente. E, mesmo sendo doido, tanto na frente das câmeras, quanto atrás delas, quanto na sua vida pessoal, ele ainda é uma persona cinematográfica com estofo suficiente pra segurar um filme nas costas, pois mesmo fazendo quase sempre a mesma coisa, ainda é, sim, um ator acima da média.
Então, nada mais natural que, na hora de dirigir um filme sobre um sujeito com problemas mentais, Jodie Foster, amiga de Mel desde a época do divertido faroeste Maverick, recorresse ao bom maluco do cinemão hollywoodiano.
No longa, vemos a história de Walter Black (Gibson, ótimo.), pai de família, presidente de uma fábrica de brinquedos, que mergulha em uma profunda crise de depressão. Walter tenta todos os artifícios à sua disposição em busca de uma cura, mas nada dá certo. E Walter se flagra um zumbi vivendo à base de anti-depressivos e dormindo o tempo todo. O resto da família de Walter não vai muito melhor. Sua esposa, Meredith (Jodie Foster, sempre muito bem, apesar de discreta.), não suporta mais a letargia do marido, e vive em tele-conferências com clientes asiáticos de madrugada. O filho mais velho, Porter (um surpreendente Anton "Pavel Chekov" Yelchin), afasta-se o máximo que pode do pai enfermo enquanto junta dinheiro fazendo trabalhos escolares para os colegas. E o filho mas jovem, Henry(Riley Thomas Stewart, fofo sem ser chato), é incapaz de se relacionar com qualquer pessoa.
Após ser mandado embora por Meredith, Walter se vê á beira do suicídio, mas acaba impedido de consumar o ato após encontrar um fantoche de castor, o "The Beaver" do título original. Walter acorda de sua mal fadada tentativa de suicídio sendo chamado pelo animal de pelúcia (As cenas em que Gibson dialoga com o fantoche, que fala com um pesado sotaque de Geordie Boy britânico são geniais, e mostram que ator o Mad Mel pode ser.), que lhe propõe uma mudança.
Com o brinquedo atrelado ao seu braço esquerdo, Walter parece renascer, ele reencontra a vida, e a abraça. Ele se relaciona com o filho Henry, com Meredith, retoma as rédeas de sua empresa, e se torna uma pessoa melhor, mas até que ponto o "fantoche prescrito" de Walter pode levá-lo sem que ele precise usar as próprias pernas?
O filme é ótimo,a direção de Foster, sem arroubos, dá espaço para o elenco (que ainda conta coma oscarizável Jennifer Lawrence e Cherry Jones) trabalhar, e trabalhar bem, mas não vai, de maneira nenhuma, ser um sucesso de bilheteria.
Ontem, no cinema, haviam pouco mais de dez pessoas na sala de exibição para o filme, e o casal atrás de mim, pareceu desapontado pelo fato de um filme não ser uma comédia (Uma dica, retardados, procurem o gênero do filme no jornal, na internet, na casa da mãe de vocês, e na próxima vez escolham um lugar mais apropriado pra conversar, tipo, uma biblioteca ou um hospital.).
Um Novo Despertar também não vai fazer sucesso pois, apesar da delicadeza de Foster em lidar com um tema espinhoso como a depressão e as relações interpessoais que a doença afeta, o longa é pesado, e mesmo sabendo rir de si mesmo (há sequências cômicas ótimas), ainda é um drama denso que embora muito competente, não agrada à todas as platéias. Jodie Foster e Mel Gibson podem não obter um mega retorno financeiro com Um Novo Despertar, mas ela obtém uma estrelinha dourada na sua produção como cineasta, e ele mostra que, além de um maluco com presença e carisma, também é um tremendo ator.

"Olá. Esta pessoa está sob os cuidados de um fantoche prescrito. Por favor, trate-a como você normalmente faria, mas dirija-se ao fantoche."

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Homem-Aranha Noir


Fazia um tempinho que eu não comprava um encadernado atual e vinha me dedicando só a sebos onde garimpei preciosidades como coletâneas completas de Will Eisner, mas, na semana passada, eu comprei logo dois. Um, foi o terceiro volume encadernado da fase de Grant Morrison à frente dos X-Men, o outro foi a luxuosa versão de Homem-Aranha Noir, série da Marvel dedicada à reimaginações dos mais populares personagens da Casa das Ideias ambientados nos anos 30, 40 e 50, evocando a atosfera dos antigos romances pulp, e dos filmes policiais investigativos ao estilo Samuel Spade.
Vou confessar que apesar de ser um fã de longa data do Homem-Aranha tradicional, da cronologia 616, eu não sou (muito) xiita. Não sou de torcer o nariz pra reimaginações dos personagens que aprendi a amar ao longo de mais de vinte anos de leitura de gibis. Era um entusiasta do Homem-Aranha 2099 de Peter David, do Homem-Aranha Ultimate (Millenium, por aqui.), de Brian Bendis, do Aranha amalgamado montado por Sam Raimi pros filmes, e até daquele do desenho Homem-Aranha e Seus Incríveis Amigos, logo, eu estou sempre disposto a abrir o coração e deixar entrar mais uma versão do meu herói de infância.
E, essa versão Noir, é muito bem bolada. Na história, narrada por um amargurado Ben Urich, conhecemos Peter Parker, jovem órfão que no crepúsculo dos anos 30 vive com a tia May, uma líder comunitária em meio ao caos da Grande Depressão. Os dois vivem sob a sombra de Norman O Duende Osborn, gângster chefão do crime organizado em Nova York, que ao lado de seus asseclas Touro, Montana, Danny Pomposo, Kraven e Abutre (Numa versão sinistríssima!) tem as mãos em todas as atividades ilícitas da metrópole.
Após uma altercação com esses vilões, o jovem Parker se une a Urich, tornando-se ajudante do repórter do Clarim Diário.
Em uma das reportagens da dupla, o rapaz é picado por aranhas que brotam de uma estatueta antiga, e, num passe de mágica, ganha habilidades aracnídeas espetaculares.
Munido dessas incríveis habilidades, o amargurado jovem declara guerra a Osborn e ao crime organizado da Grande Maçã sob a alcunha de Homem-Aranha.
O roteiro escrito pelo britânico David Hine não faz feio, os personagens não se afastam em demasia de suas contrapartes tradicionais, mas ganham luzes muito interessantes em suas versões anos 30. O Peter Parker de Hine é mais sombrio, amargurado e vingativo do que a heróica versão 616, chegando a meter chumbo na bandidagem. Os vilões, especialmente o Abutre, ganham ares e atitudes muito mais ameaçadoras do que estamos acostumados, ás vezes até surpreendendo.
A arte do italiano Carmine Di Giandomenico também não faz feio, casando certinho com as palavras de Hine, e dando aquele climão de filme policial da antiga ao gibi. Vale destacar o inspirado visual dessa versão aracnídea, o uniforme de piloto da I Guerra Mundial acrescido do chapéu, da máscara e do sobretudo deixam o herói particularmente ameaçador, dando estofo visual ao espírito do personagem.
Enfim, a boa história, com a boa arte, embalados em um acabamento de primeira linha com direito à capa dura com verniz localizado e papel especial no miolo fazem valer os dezoito pilas que se paga pela aventura, que merece, sem dúvida, um lugar na estante dos fãs do cabeça de teia.
E que venha logo a sequência Spider-Man Noir: Eyes Without a Face.

"-Você acha que é mais rápido do que eu?
-Não... Não acho."