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sexta-feira, 24 de junho de 2011

Crendices



O Eriberto ficou olhando meio de soslaio pra cigana velha a sua frente dentro do barraco mal-iluminado por velas em uma zona periférica da cidade que ele só conhecia de vista enquanto rumava pro litoral.
A velha perguntou, olhando pra ele, com um olho aberto e o outro fechado sob a cabeleira cinzenta desgrenhada, se ele queria uma leitura. Ele hesitou um segundo, e então disse que sim. Que queria uma leitura.
Eriberto era assim. Crédulo. Acreditava em tudo. Rezava na igreja, rezava junto com o tele-pastor da TV, também. Ia ao Centro Espírita receber passes, lia o horóscopo no jornal e conferia pra ver se batia com a previsão do horóscopo On-Line, já fora a todo o tipo de vidente que conhecia, das tradicionais quiromancistas, até as exóticas leitoras de borra de café, passando pelas tarólogas, leitores de búzios, astrólogos, tudo, incrivelmente tudo parecia fazer sentido pra ele.
Eriberto consumia com voracidade tudo o que se referia a exoterismos de qualquer espécie, e mitologias religiosas. Agora, namorando a Mariana a pouco mais de três meses, e apaixonado que só, ele se viu quase na obrigação de buscar informações a respeito do futuro.
Pra ele, parecia tudo certo. Eriberto adorava Mariana, não tinha como não gostar dela, ela tão bonita, tão boa, tão gentil, e prendada. Era tudo o que ele queria em um invólucro depele macia e lábios carnudos. Parecia óbvio então, que, mesmo sendo louco por Mariana, dando-se muito bem com ela, conhecendo Joelmir, pai dela, e dona Juracy, a mãe, e dando-se bem com ambos, também, e tendo estabilidade suficiente na vida pra levar a relação a um novo patamar de maneira saudável e sem sobresaltos, Eriberto fosse deixar as coisas transcorrerem dentro da normalidade.
Parecia. Mas não era.
Eriberto não resistiu. E, aconselhado por sua colega Suely, uma gordinha solteira de quarenta e poucos anos que tingia os cabelos de preto-azulado com reflexos lilazes e vivia sozinha com um gato chamado Carlos Gardel, foi até a tal vila afastada do Centro da cidade pra encontrar a cigana que fazia leituras de futuro em ossos de galinha!
"É batata, Eri! A mulher é uma bruxa, totalmente do mal! Não cobra dinheiro pelas leituras quase nunca, já me disseram que ela cobrou um botão da roupa da pessoa, um chumaço de cabelo, e uma lembrança! Coisa mais horrível, mas acerta tudo!" Foi o que lhe disse Suely com a voz aguda soando mais esganiçada que o habitual por conta da excitação.
"E tu já foste lá?" O Eriberto perguntou. "Eu, não! Deus me livre, que medo!" foi o que Suely respondeu fazendo o sinal da cruz enquanto batia na madeira e beijava o relicário que sempre trazia amarrado ao pulso.
Eriberto não resistiu. Enquanto via o relacionamento com Mariana se tornar mais parecido com sua ideia de felicidade perfeita, precisava de mais evidências de que o futuro não lhe reservava nenhuma espécie de percalço. Ligou pra Suely, que lhe deu o endereço da tal bruxa, e lá foi-se o Eriberto encontrar a velha em um beco qualquer de um região dominada por traficantes, ele tinha certeza.
Parou em frente ao barraco e bateu na porta de metal descascado com folhas de papelão onde deviam ser os vidros, e viu a figura sombria de uma velha medonha abrir a porta.
E então surgiu o diálogo lá do início:
-Tu qué uma leitura, filim?
Após hesitar brevemente, Eriberto assentiu, e a velha juntou um prato de sobremesa de porcelana suja e trincado debaixo de uma folha de jornal.
Enfiou as mãos nos bolsos sacando deles ossos de galinha ressecados e foi os atirando sobre o prato. Largou o prato sobre a mesa e cuspiu em cima dos ossos. Uma cusparada grande. Mordeu uma ponta de pele ressecada no canto da unha escurecida, e puxou rasgando a pele até protar sangue. Espremeu o dedo ferido em cima do cuspe no prato com os ossos, e, pousando a mão sobre o prato, o sacudiu com firmeza sob o olhar aturdido de Eriberto.
Ela largou o prato novamente sobre a mesa, aproximando-o de uma das velas. Os ossos, a saliva e o sangue formavam um conjunto asqueroso e ininteligível para Eriberto, a velha, porém, aproximou-se com os olhos apertados e ficou encarando a nojeira como se estivesse, mesmo, lendo alguma coisa.
-Tu tem um pobrema com uma mulé. - Disse.
-Bom... Não chega a ser um problema... - Ponderou Eriberto.
-Ainda... Mas vai sê. - A velha replicou agourenta.
-Vai ser o quê? Um problema?
-Sim. Pobrema dos brabo...
-Com a Mariana?
-Mariana... É... É o nome que eu tô veno aqui...
-Mas que problema... É alguma coisa séria? Ela tá doente?
-Não... Num tá doente, não... É... É uma velha... a mãe dela é viva?
-A dona Juraci?
- Juraci! Sim! É ela.
-O que tem a dona Juraci?
-Treis tigela de ódio. Ela vai te oferecer três tigela de ódio. E se tu tomá alguma delas, acabou tudo entre tu e a menina!
-Ah, meu Deus! Como assim três tigelas de ódio?
-Tu já comeu alguma coisa que a véia te ofereceu?
-Sim!
Eriberto lembrou-se do consomé de frango que dona Juraci mandara quando ele ficou gripado um mês atrás, e também do ravióli ao molho quatro queijos servido por ela no jantar seis dias antes. Amaldiçoou a própria estupidez com as mãos na cabeça.
-Mas foram só duas coisas!
-Num come a terceira! Num pôe na boca nada que essa vaca do inferno te ofereça! É a terceira tigela de ódio! Vai acabar contigo e a Mariângela!
-Mariana. - Corrigiu Eriberto, ainda assustado.
-Foi o que eu dizeu! Mariana. - Encerrou a velha bruxa.
Pra alívio de Eriberto, ela não combrou nenhum botão de sua roupa, nem tufo de cabelos, nem lembrança de infância, pediu sesenta reais, mas não tinha troco, então Eriberto deixou por setenta. No dia seguinte confirmou à Suely todas as qualidades da bruxa cigana, que adivinhou tudo, e ainda lhe deu receitas pra não ser pego de surpresa pelas artimanhas da macumbeira safada daquela velha miserável da Juraci, que ainda tinha a desfaçatez de tratá-lo cheia de mimos após ter-lhe feito comer duas tigelas de ódio e ficar insistindo pra ele comer a terceira oferecendo a ele todo o tipo de guloseimas e mandando docinhos e iguarias pela filha, que, sem saber das más intenções da mãe, tornou-se uma mensageira da discórdia e da tormenta.
O relacionamento deles azedou. Ele sabia por que. Duas tigelas de ódio o haviam tornado mais irascível. Preferiu não comentar nada, simplesmente não comeria mais nada que a velha demoníaca enviasse, pra não consumir a terceira tigela de ódio, e tentaria se controlar para se purificar do ódio que já consumira. Podia fazer isso. Seu amor por Mariângela era mais forte que o ódio de Juraci.
Mariângela, não. Mariana.

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