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quinta-feira, 30 de junho de 2011

Ideologia


O Tinoco e o Lourival andando lado a lado pela rua, encontraram-se ao acaso fazendo compras para suas respectivas esposas. À época da faculdade, o Tinoco e o Lourival sempre foram protagonistas de grandes debates que, não raro, terminavam se transformando em acaloradas discussões. Não fossem ambos amantes ardorosos do civismo e vaidosos homens de saber, provavelmente suas discussões acabariam em pancadarias. Como não era o caso, eles sempre encerravam suas discussões com um amigável aperto de mão e promessas de retomar aquele assunto em uma outra ocasião.
Eram, enfim, amigos, e pessoas sensatas, mas também eram militantes. Eram libertários extremados que achavam que qualquer iniciativa que não rompesse total e irrevogavelmente com governos, métodos e normas vigentes de qualquer estirpe estavam fadadas ao mesmo destino das convenções que existiam e, em suas palavras, apodreciam a olhos vistos.
Chegavam a juntar platéia em suas discussões que sempre fomentavam, os professores os adoravam, mesmo sendo, como autoridades mais presentes, constante alvo das investidas da dupla dinâmica, eram admirados e invejados pelos demais alunos da universidade, e chegaram a ser chamados por autoridades pra prestar esclarecimentos na época do AI-5. Trabalharam juntos no movimento Diretas Já, encontraram-se brevemente quando o movimento dos caras pintadas empurrou Fernando Collor pra fora do Planalto, e permaneceram amigos após a faculdade, mas, por essas mazelas da vida, acabaram perdendo contato e distanciando-se.
Então, após anos sem notícias um do outro, encontraram-se no super-mercado. Olharam-se brevemente na fila do panifício, mas incertos um da identidade do outro, mantiveram silêncio. O encontrou repetiu-se no setor de bebidas, onde o silêncio deu lugar a um constrangido aceno de cabeça de parte a parte. Apenas no caixa, quando pararam na mesma fila, um deles finalmente falou. Foi Lourival:
-Tu não és o...
-Tinoco.
-Arrá!
Conversaram animadamente, falaram a respeito do que andaram fazendo da vida, compararam fotos dos filhos e dos netos, títulos dos times do coração, conseguiram evitar política até entrarem em um bar para continuar o papo. Lá, a conversa enveredou pelas questões que eram inevitáveis e que Tinoco estava um pouco ressabiado em discutir. Ainda assim, foi Tinoco quem trouxe o assunto à baila:
-Me diz o que tu achas disso: Alguém falou que se tu não fores um liberal aos vinte, tu não tens coração, mas se tu ainda fores um liberal aos quarenta, tu não tens cérebro.
Lourival disse apenas:
-Já passei dos quarenta, posso me dar ao luxo de não me adaptar à essa norma burra.
Foi o estopim pra que revivessem as conversas, debates, discussões de anos e anos de faculdade e amizade. Falaram do PT, do Fogaça, do FMI, da presença do BNDES na fusão Pão de Açúcar/Carrefour, das medidas de austeridade econômica Gregas, presença americana no Iraque e o escambau, entretanto, Tinoco, até envergonhado, admitiu que amolecera em suas ideologias. Estava mais velho, mais inclinado à conciliação do que à ação. Que até invejava esse fogo de Lourival, que parecia ainda manter a mesma mente de quanto tinha vinte anos, cabelos compridos e barba cerrada.
Após algumas horas agradáveis para ambos, e tensas para os demais frequentadores do bar, os dois caminharam de volta ao mercado, onde os carros de ambos estavam estacionados.
Quando se aproximavam da loja, Lourival olhou para um agente de trânsito, com seu indefectível uniforme azul parado ao lado de um sedã prata. Lourival, correu em direção ao agente de tráfego.
-O que é que tu estás fazendo aí, companheiro? - Perguntou Lourival.
-O que o senhor acha que eu estou fazendo? - Respondeu o azulzinho sem levantar os olhos do palm-top.
-Eu acho que tu estás cometendo um engano, meu querido. - Disse Lourival, irritado.
-Eu acho que quem cometeu um engano foi a pessoa que não colocou a moedinha no parquímetro. - Respondeu o agente, ainda mexendo no aparelho eletrônico.
-Mas tá aqui o comprovante do parquímetro, rapaz! - Esbravejou Lourival enquadrando com as mãos o recido postado junto ao para-brisa.
-Vencido, cavalheiro. Vencido já tem vinte minutos. - Disse o agente de tráfego, finalmente olhando pra Lourival.
Tinoco tentou intervir quando o amigo ficou vermelho de raiva.
-Calma, calma. Será que não dá pra ele colocar mais uma moeda agora? Eu sei que não é a praxe, mas já está tão tarde, ninguém deve ter procurado por essa vaga...
-Não! - Bradou Lourival. Um cidadão nem sequer deveria ter que pagar pra estacionar uma rua que lhe pertence! Pela qual ele paga!
-Calma, Lourival... - Tentou intervir Tinoco.
-Não, não! Sem calma. Escute aqui, funcionário terceirizado da indústria da multa! Para de escrever nesse caderninho, agora mesmo, pois eu sou um indivíduo cumprimdor das minhas obrigações e me recuso a aceitar esse prepóstero.
O agente de trânsito se encrespou:
-Escute aqui o senhor. Eu já multei. E se o senhor não remover esse carro imediatamente, eu vou multar de novo.
-Eu não tiro! Não tiro! Ninguém deveria ter que remover o seu carro da via, o seu carro que tá aqui, com todos os selinhos de inspeção no vidro, com a placa bem cuidada, todos os impostos em dia, numa rua pela qual a gente paga milhões em impostos e nem sequer é um funcionário público que me multa, é um alcaguete terceirizado! - Protestou Lourival, agitando o punho no ar.
-Pois eu não só vou multá-lo, como vou passar um rádio pra central e avisar que o senhor se recusa a remover o veículo, de modo que ele será guinchado. - Devolveu o azulzinho, com pouco caso.
-Isso é um desaforo. Isso é humilhar um cidadão. É esse tipo de coisa que mostra que a sociedade não funciona! No barbarismo, eu pegaria a minha clava e lhe abriria o crânio-
-Calma, Lourival.
-Tô calmo, Tinoco, tô calmo, mas que isso é um ultraje, que isso é uma pouca vergonha, que é um disparate, ah, isso é. - Acalmou-se o Lourival.
O agente de trânsito, braços cruzados, perguntou:
-O senhor vai, ou não, remover o carro?
-Não. Não vou remover o carro. - Respondeu Lourival, resoluto.
Tinoco tentou dissuadí-lo:
-Tira o carro, Lourival, pra que se incomodar?
-Não. Não posso tirar o carro. - Replicou Lourival, seríssimo.
-Ah, meu Deus... - Lastimou Tinoco.
O agente de tráfego andou até a viatura da empresa de transporte e circulação, e falou através do rádio por um breve período.
-Nós vamos estar guinchando o seu veículo, senhor. É a última chance. Vai retirar?
-Não. - Disse Lourival, com desprezo.
-Não vai reclamar depois. - Encerrou a discussão o azulzinho voltando pra viatura.
Tinoco aproximou-se de Lourival.
-Olha, tchê... Tirei meu chapéu pra ti. Não digo que concordo com a tua posição, mas que tremenda firmeza de propósito. Parabéns. - Disse, apertando a mão do antigo colega.
-Ora, o que é isso, obrigado, obrigado. - Agradeceu Lourival, modesto.
-Bueno, preciso ir. Tu queres uma carona pra casa? Deixei meu automóvel no estacionamento do mercado. - Disse Tinoco, olhando pro relógio.
-Não, querido, obrigado, eu vou no meu carro. - Respondeu Lourival, com pouco caso.
-Mas eles vão guinchar o teu carro, Lourival. - Lembrou-lhe o Tinoco, com um meio sorriso, ao que Lourival respondeu:
-Ah, não. Esse carro não é meu.
Sem ter que arcar com as consequências, pensou Tinoco ao despedir-se de Lourival, era fácil manter as ideologias da juventude.

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