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sábado, 19 de janeiro de 2013

Iogurte


A Marília estava parada na frente do balcão frio do super mercado, absorta em pensamentos difusos. Pensava se comprava o iogurte light ou o normal. Era, sim, uma dúvida atroz. A Marília sabia que o iogurte normal era mais gostoso, tinha uma variedade maior de sabores, e ela conseguia perfeitamente trocar a janta por um copo dele, enquanto o light só tinha de ameixa, que mal e mal tinha gosto de ameixa, era ruim de doer, meio aguado, e depois de tomar um copo dele, a Marília fantasiava com um pratão de batata frita até dormir com o estômago roncando ruidosamente. Ainda assim, o iogurte de ameixa com gosto de nada, tinha baixo teor calórico, enquanto o Iogurte gostoso, assim que fosse engolido, ia correr pelo corpo da Marília até chegar às suas coxas, bem no alto, onde elas se juntavam à sua virilha e nádegas, e ali permaneceriam erguendo uma feroz resistência à qualquer tentativa que Marília fizesse de removê-lo de lá no futuro próximo.
Não... Marília não perderia uma luta pro Iogurte gostoso, pensou consigo mesma. "Se perder pra uma garrafa de iogurte vou empatar com quem?" perguntou-se, apanhando a garrafa de Iogurte batido com mel que ela tanto gostava, já antevendo a sua cremosidade quando caísse no copo generoso donde ela o sorveria enquanto assistia TV, os goles aveludados e saborosos que lhe trariam prazer às papilas gustativas, e, por que não? A praticidade de apenas encher um copo com um negócio que, no fim das contas, era praticamente leite talhado, ao invés de ter que ir pra cozinha ou gastar uma grana pra comprar uma janta nalgum lugar. O iogurte gostoso, pois, vencera a contenda. "Amanhã eu vou a pé pro trabalho, ou como menos no almoço, ou malho um pouco, ou uso a escada quando chegar na firma..." justificou pra si própria enquanto apanhava a garrafa e a colocava na cestinha de compras.
Ao se virar, o choque.
Atrás dela, a cinco metros, separado por não mais que uma gôndola baixa de sucos e outra de leite que formavam um corredor e uma barreira entre os iogurtes e os congelados, estava César.
Não, Marília não era uma cristã do século I que temia a presença do César do Império Romano, César, no caso, era um sujeito de ótima aparência, que cheirava muito, muito bem, e era uma pessoa incrivelmente legal, e que, casualmente, ou não, esmigalhara o coração da Marília pouquíssimo tempo antes.
A Marília tinha pra si, que o César era o grande amor da sua vida. Era uma certeza inabalável da Marília. E o César, na verdade, confirmara aquilo pra Marília mil vezes nos poucos anos em que eles se conheciam.
O César era tudo aquilo que a Marília sempre sonhara num homem, numa embalagem que era agradabilíssima aos sentidos, e que ela queria ter por perto oito em dez vezes.
Marília suspirou ao pensar nisso abraçada na garrafa de iogurte que trazia colada ao peito. "Oito em dez vezes", expirou em voz alta.
Claro... Anormal era a Marília. Qualquer mulher em sã consciência quereria o César junto de si vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. A Marília não... A Marília precisava de um tempo longe do César.
Por que, mesmo? Ela se perguntou... Justificava pra si própria que era pra manter as coisas em perspectiva. Manter alguma distância lhe permitia ter uma visão ampla do relacionamento, e bi-bi-bi... Prepóstero, claro.
A Marília sabia que se o César chutasse uma macega na rua ele encontraria uma mulher mais bonita, mais inteligente, sofisticada, divertida e resolvida pra si. Uma mulher que estivesse mais à sua altura. Não uma guria cheia de neuras e excentricidades irritantes (pra dizer o mínimo e ser generosa consigo mesma, vá lá), com gostos tremendamente particulares, e uma aparência que, falando sério, não era o seu ponto forte, e que pra piorar, ainda tinha a péssima mania de abrir uma lavra de distância dele sempre que tinha a oportunidade, quase como se quisesse manter um perímetro de afastamento da pessoa que lhe era mais cara.
Era óbvio que ele iria se ofender. Era óbvio que ele iria se magoar, e era óbvio que iria acabar querendo, também, distância dela. Era dolorosamente natural. Estranho é que tivesse demorado tanto pra ter aquele estalo.
Foi quando Marília se deu conta...
O César não tinha se cansado dela de repente. Ele não tinha tido uma epifania súbita baseada em algum mal entendido e se desgostado dela de uma hora pra outra. A bem da verdade, o César vinha se cansando dela já algum tempo antes de eles pararem de se falar, antes de a Marília se ofender com uma insinuação do César e submergir em uma de suas típicas crises de ira silenciosa.
Era claro... Muito antes daquilo tudo o César vinha preparando o terreno pra dar adeus à Marília. Ele tinha feito todo um ensaio pouco antes e recuado. O desacerto que se seguiu foi apenas um elemento que adiantou o que era inevitável, inexorável, líquido e certo:
O César não gostava da Marília como a Marília era de verdade.
Com o perímetro a Marília mostrava o que queria que ele visse. Sem o perímetro, ele viu a Marília como ela era.
"E não há jura de amor que resista a mim como eu sou de verdade..." suspirou Marília pra si mesma. Deu mais uma olhada em César que apanhava um congelado de um freezer próximo, o colocava em seu carrinho e seguia seu rumo. E entendeu que não tinha mais raiva dele. Não tinha direito de ter raiva dele, que já a tinha suportado por mais tempo do que era razoável, aprazível, e humanamente possível.
Sorriu triste enquanto via o amor da sua vida ir embora com um congelado qualquer e uma Coca Cola dois litros que provavelmente ele beberia sozinho no cesto de compras, e lembrava que as últimas palavras que haviam trocado haviam sido polidas mas carregadas de ressentimento. Pensou em ir atrás dele, agarrá-lo pelo braço e esbravejar como ele podia ter duvidado do amor dela por ele? Como ele podia ter achado que ela era vil como ele sugerira? Mas refreou-se. César fizera de tudo pra se ver livre dela e continuar sua vida. Ela tinha que engolir suas mágoas deixá-lo ir, e fazer o mesmo.
Largou o iogurte gostoso e apanhou o light.

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