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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Agenda


Estava, pra variar, atrasado.
Acontecia sempre. Conforme chegava a época do verão, com os calorões e a aproximação das férias, ele dormia mais e mais tarde, e, por consequência, acordava tarde, também.
Não era um grande dorminhoco, dormia, em média, seis horas por noite, o que estava dentro da normalidade, nos finais de semana, dormia um pouco mais, no domingo, em especial, chegava a dormir nove, dez horas, lhe parecia justo, já que domingo era dia de dormir, mesmo.
Mas era uma quarta-feira, e ele estava atrasado.
Saiu de casa segundos após ter ouvido a apresentadora da Globo News dizendo que eram oito e cinquenta e oito, antes de dizer "Cala a boca, Raquel!" e desligar a TV e o ventilador.
Equilibrava a mochila e os sacos de lixo em um dos braços enquanto fazia malabarismo pra fechar a porta, a grade da porta, e aplicar um cadeado na grade com a outra mão.
A garrafa de três litros de Coca-Cola vazia sob seu braço porém, cobrou seu preço, ao deslizar levemente pelo tecido da camiseta junto à axila e escapulir de sua pegada.
Ele, instintivamente fez um movimento para tentar recapturar a garrafa, ignorando que não tinha problema algum em deixar um tubo de plástico vazio cair no corredor, obviamente ele falhou em seu intento, e, não apenas derrubou a garrafa, mas também os sacos de lixo, as chaves e o cadeado, fazendo um alarido muito maior do que teria feito apenas a garrafa.
Bufou enquanto se agachava para apanhar as coisas quando ouviu uma voz maviosa proferindo um "bom dia" musical.
Pensou em quem poderia ser.
Estava no prédio havia menos de dois meses, era, de modo geral, um recluso, tirando o síndico e as duas senhoras idosas que moravam no apartamento em frente, não conhecia ninguém, mas, por Odin, a dona daquela voz era alguém que ele queria conhecer.
Virou-se pensando se o agachamento o havia deixado vermelho. Sabia que estava suando, começara a suar ainda lavando o rosto após levantar, mas se não estivesse vermelho, precisava admitir, estaria o mais apresentável possível sem um banho.
Deparou-se com uma moça de cabelos castanhos, consideravelmente mais baixa que ele trajando tênis, um short e uma camiseta.
Era bonita.
Tinha uma beleza algo juvenil, como se ainda fosse uma adolescente, a estampa da Hora de Aventura em sua camiseta reforçava isso, embora, olhando em perspectiva, ele duvidasse que o Darth Vader na própria camiseta lhe tirassem alguns anos da cara barbada.
-Bom dia. - Sorriu de volta, aninhando o lixo sob o braço novamente enquanto aplicava o cadeado à grade do apartamento.
A moça, com uma grande caixa de papelão no colo, olhou pra ele e fez uma cara de desgosto, por uma fração de segundo ele se perguntou se estaria fedendo, mas ela falou antes que ele pudesse alimentar aquela paranoia específica:
-Não me diz que esse prédio é perigoso assim... - Ela suplicou, olhando pra ele com cara de aflita.
Ele entendeu, na hora, que ela estava se mudando para o prédio, antes de se animar com a perspectiva de ter uma vizinha gata, porém, lembrou-se de quem era, e imediatamente conjecturou que ela devia ter namorado ou marido, ou namorada... Não, aquela era uma perspectiva demasiado excitante. Devia ser um namorado, mesmo.
Ou pior, ela estava ajudando o irmão funkeiro a fazer a mudança. Um cara que não trabalhava, só dormia o dia inteiro e ouvia pseudo-música a noite toda de maneira tão obstinada que os pais resolveram expulsá-lo de casa arcando com as despesas...
Mas enfim, a moça fizera uma pergunta, ele ergueu as sobrancelhas:
-Olha... Eu não moro aqui há muito tempo, mas do jeito que andam as coisas...
Ele optou por não desenvolver, explicando que suas mais amadas posses estavam naquele apartamento. Que o lugar era decorado como uma comic-shop, com estantes cheias de gibis e bonecos, pôsteres de filmes pelas paredes e até mesmo um display onde havia não um, nem dois, mas quatro sabres de luz, incluindo uma réplica da arma do Kilo Ren em O Despertar da Força, além de videogames suficientes para manter um adolescente asiático distraído por horas, e filmes e mais filmes em DVD e Blu-Ray.
Ele achou que isso poderia cortar o clima. Resolveu soar adulto e responsável, e fazer um comentário genérico a respeito da situação do país:
-Com a criminalidade como está, seguro morreu de velho, né?
Ela concordou com um maneio de cabeça, enquanto usou um impulso do próprio joelho para erguer a caixa que lhe escorregava pelos braços finos.
Ele reagiu como se tivesse levado um bofetão.
Largou seu lixo ao lado da porta, e passou a alça solta da mochila pelo braço:
-Me desculpa! Olha que idiota... Deixa eu te ajudar.
Andou em direção a ela, apanhando a caixa.
Pesava doze toneladas e meia. Estava cheia de quê? livros? Chumbo? O núcleo superdenso de uma estrela anã branca? Como, por Deus, ela estava carregando aquilo enquanto conversava com ele?
-Ai, obrigada... - Ela disse, deixando os braços caírem. -Mas tá meio pesada, pode deixar que eu levo...
"Não mesmo, Mulher-Maravilha", ele pensou enquanto lutava para não começar a bufar...
-Imagina. - Disse, casual -Eu levo pra ti... Fez sinal pra escada com o queixo, como quem diz "mostre-me o caminho, gentil donzela".
-E o teu lixo? - Ela disse, preocupada.
-Eu pego na volta... - Ele sorriu, esforçando-se para que sua voz não falseteasse ante o esforço sobre-humano que carregar o que só podia ser um dispositivo do juízo final requeria.
-Não quer que eu... - Ela começou a perguntar, mas ele a deteve:
-Não, não... Pode deixar. - Implorou, tão casualmente quanto pôde enquanto o suor começava a verter de sua testa.
Cada degrau foi um suplício. Ele se perguntou porque estava fazendo academia se não conseguia nem carregar... O que quer que fosse aquilo, sem sentir que seus braços cairiam e seus pulmões explodiriam. Pra piorar, a ninfa castanha a seu lado morava no quarto andar, o último do prédio. Os dois lances de escada que separavam seu andar do dela pareceram-lhe não ter fim, e o corredor se estendeu por 12 parsec até a porta do apartamento 46.
Ela abriu a porta e ele perguntou onde deixar, torcendo para que ela dissesse "Aqui mesmo", mas ela disse "Aqui, ó" e andou apartamento adentro até o quarto.
-Pode deixar em cima da cama, por favor.
Ele largou a caixa, com cuidado sobre a cama. Estava sem colchão, e as ripas de madeira do lastro lhe pareceram frágeis demais para suportar o peso daquela caixa que só podia estar cheia com duzentos e noventa e oito quilos de rochas kryptonianas projetando empuxo gravitacional 20% maior que o da Terra.
De algum modo o lastro suportou o peso.
Ele largou a caixa e se ajeitou para sair, mas a guria apontou a caixa:
-Pesada, né?
-Um pouquinho... - Ele sorriu sentindo os braços formigarem.
-São uns livros e revistas... Incrível como papel pesa... Te pedi pra colocar aqui porque vou colocar uma estante perto da cama, gosto de ver ao menos alguns pertinho quando vou deitar. - Sorriu.
Ele balançou a cabeça, sorrindo em concordância, e agarrou a alça da mochila.
Ela fez cara de "ai, claro!", e se dirigiu à porta com ele. Desceram.
-Elevador faz falta, né? - Ela disse. -Mas é bom que vai substituindo a academia...
Ele pensou em comentar que havia uma normativa municipal que dizia que prédios com mais de quatro andares obrigatoriamente deveriam ter elevadores, e que essa norma criara coisas como o prédio onde os dois moravam agora, com dois blocos de quatro andares, ao invés de um grande edifício de oito andares, que precisaria, não de um, mas de dois elevadores segundo o plano diretor da cidade, mas achou que isso o faria soar como um nerd pretensioso, e, além do mais, quando ela falara em academia, fora um reflexo, ele não conseguiu não olhar pro corpo dela.
Era bastante óbvio que ela frequentava academia.
As pernas dela não mentiam.
O corpo todo era bonito, mas as pernas... Ele sempre fora um homem de pernas. Não era a primeira coisa que via em uma mulher, mas era uma das coisas que mais gostava de ver em uma mulher...
Ficou imaginando que o namorado dela devia ser algum rato de academia marombado...
Ao passar no primeiro andar, apanhou seu lixo, que ainda repousava do lado da porta, um senhor subia a escada com um microondas no colo, sorriu ao vê-la.
-Daqui a pouco vai sobrar só coisa pesada. - Disse.
Ele, em silêncio, pensou que o velho não tinha chegado perto daquela caixa, cujo conteúdo, ele estava certo, era o núcleo de uma estrela de nêutrons, pra achar que ainda não tinha começado o movimento de coisas pesadas.
-A gente dá um jeito, tio. - Ela riu, casual.
O sujeito apontou com o queixo pra ele:
-A gente podia usar mais um par de mãos.
"As minhas estão inúteis." Ele pensou. "Meus músculos vinham derretendo pelo mês afastado da academia, e o que tinha sobrado foi destruído por essa caixa macabra que eu carreguei escada acima", mas disse:
-Eu ia adorar ajudar, mas estou atrasado pro trabalho...
De fato estava. Muito atrasado. Eram nove e onze quando olhou no relógio, e ele levava coisa de doze a quinze minutos pra chegar ao trabalho andando. Fez uma careta:
-Talvez quando eu voltar, se vocês ainda estiverem...
-Imagina... - Ela disse. -Desculpa o meu tio, ele é um velho preguiçoso. A gente dá jeito, obrigada pela ajuda.
Ele se despediu algo constrangido por não poder ajudar mais. Ao chegar à frente do prédio, viu o motorista do caminhão da mudança tirando os cobertores de móveis. Entre a mobília grande havia um guarda-roupa, a geladeira, o fogão e uma máquina de lavar, de resto, era tudo bem gerenciável, e, francamente, ele duvidava que a geladeira e a lavadora de roupas, juntas, fossem mais pesadas do que a caixa que acabara de carregar escada acima.
Chegou ao trabalho mais de vinte minutos atrasado, tempo que seria obrigado a recuperar no horário de almoço pra não precisar ficar além do horário mais pro fim do dia.
Durante a tarde, pegou-se pensando na nova vizinha, recriminando-se por não ter se apresentado formalmente antes de sair fazendo galanteios vazios...
Preocupava-se com que tipo de impressão inicial teria passado, mas logo julgou que a primeira impressão não importava.
Aquela menina não parecia o tipo que tem um fraco por geeks solitários.
A caminho de casa no final da tarde, renovou sua associação à academia, retomaria os exercícios a partir da semana seguinte, e, ao chegar no seu prédio, experimentou o ímpeto de bater à porta do apartamento 46, se apresentar formalmente, e perguntar se a nova vizinha precisava de alguma ajuda pra colocar os móveis no lugar, fazer alguma ligação elétrica ou instalação, mas não o fez.
Sentia-se demasiado enxovalhado naqueles dias, e a última coisa que queria era ser usado por uma mulher que inevitavelmente iria rejeitá-lo.
Abriu as três fechaduras da porta e o cadeado, e entrou em casa.
Assistiu noticiários, lavou roupa, fez um sanduíche de presunto de parma e cogumelos com maionese e um toque de molho de tomate e o comeu tomando coca-cola enquanto assistia White Rabbit Project na Netflix, depois jogou videogame até a hora de se recolher.
A caminho da cama passou pelo display de seus sabres de luz e brandiu brevemente duas das armas cruzadas diante do peito na escuridão. Sorriu ao pensar que nenhuma mulher jamais veria aquilo com bons olhos, ligou a lista de reprodução de músicas do telefone celular, escolheu Johnny Cash entre os artistas, e adormeceu ouvindo o homem de preto cantar One, do U-2, à qual se seguiria sua versão de Hurt, do Nine Inch Nails.
Dois andares acima, no fim do corredor, Graziela finalmente conseguira configurar o modem. Limpou o suor da testa e se deu conta de que aquela parte nem havia sido a mais difícil do seu dia.
Tirou os tênis e foi a té a área de serviço para deixá-los arejando. Olhou com desgosto para a máquina de lavar, pensando que precisava encontrar alguém que fosse capaz de instalá-la, habilidade que seu tio não tinha.
Voltou para dentro, e na sala começou a tirar a blusa para tomar um banho. Foi procurar pela toalha e percebeu que ainda não havia ajeitado o colchão sobre a cama.
Claro... A sua grande caixa de livros ainda estava ali.
Apanhou-a com dificuldade, e ergueu com um gemido de esforço, a soltando no chão com alarido. Com esforço jogou o colchão de molas ensacadas sobre a cama, bufando para ajustá-lo.
Quando conseguiu sentou na cama remexendo a mala entre seus pés descalços, vermelhos e doloridos pelo dia de atividade extenuante, e apanhou sua toalha.
Olhou a estante vazia junto à cama e pensou que gostaria de já ter seus livros ali, infelizmente, o mais prático a fazer seria deixar tais detalhes por último e se preocupar em colocar seus móveis no lugar.
Pensou que não deveria pedir ajuda a seu tio... Ele já era um sujeito de idade, e estava muito gordo pra fazer tais esforços.
Cogitou, brevemente, a possibilidade de pedir ajuda ao vizinho todo de preto do 28, que fora tão gentil a ajudando com sua mais preciosa posse. A caixa com os livros dos quais mais gostava desde a tenra infância, de 20000 Léguas Submarinas a O Amor nos Tempos do Cólera passando por A Laranja Mecânica e O Silmarillion.
Ele tinha um jeitão de nerd roqueiro, meio tímido meio bronco, mas polido... Era uma combinação intrigante... Tomou banho, tomou uma garrafa de iogurte, e se deitou pra dormir. Chegou a pensar em apanhar algum livro da caixa pra ler até o sono bater, mas estava pregada. Ao invés disso ligou o notebook e acessou suas músicas. Olhou a lista por cima, e clicou sobre o nome de Johnny Cash, escolheu, na lista, o dueto de Cash e Joe Strummer para Redemption Song, de Bob Marley, antes de sua versão de Hurt, do Nine Inch Nails.
O mais irônico e triste, é que por conta dos horários de ambos, a despeito de morarem no mesmo prédio, ela e ele não voltaram a se esbarrar nos corredores do edifício, e por terem escanteado aquela primeira oportunidade, jamais voltaram a se ver.

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