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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Círculo de Amigas


A Fernanda, a Rafaela, a Paula e a Fabi estavam na praça de alimentação do shopping.
Sentadas ao redor de uma mesa, matavam tempo até a hora em que ia começar Cinquenta Tons Mais Escuros.
A Fernanda era apaixonada pelo Christian Grey, a Paula se sentia totalmente Anastasia Steele, a Fabi adorava romances e tinha gostado muito do primeiro filme, embora não tivesse lido os livros, e a Rafaela tentara desesperadamente convencer as amigas a ver Lego Batman: O Filme, mas fora um voto vencido tão cabalmente que nem suas tentativas de apelar para o sex appeal de Keanu Reeves em John Wick: Um Novo Dia Para Matar surtiram efeito como plano B.
Ela chegou a pensar em continuar argumentando, mas desistiu.
Rafaela estava acostumada, na verdade.
Ela adorava as gurias, era quase irmã da Fernanda, se conheciam desde o ensino médio, era muito amiga da Paula, e até a Fabi, que era meio lado sombrio, tinha seus momentos de andar pra luz e ser uma queridona, como quando a Rafa foi atropelada correndo no gasômetro, e com a Fê viajando e a Paula de prova na faculdade, a Fabi foi pro Divina Providência passar a noite com ela.
Mas meu Deus...
Ela e as amigas eram muito diferentes.
Conforme foram crescendo, as gurias tinha ido paulatinamente passando por uma metamorfose que foi as tornando em praticamente outras pessoas.
Enquanto a Rafaela continuara com o mesmo gosto por esportes da adolescência, a Fê, sua antiga parceira de corrida, se tornou uma sedentária convicta que preferia tomar uma caneca de sopa em cada refeição e roer um biscoito creamcracker durante seis horas a ter que correr por vinte minutos pra manter a forma.
Enquanto a Rafaela ainda era apaixonada por séries de fantasia como Game of Thrones e Stranger Things, a Paula, sua antiga irmã de Arquivos X involuíra para Grey's Anatomy e The Vampire Diaries.
A Fabi, que era uma guria despojada e brincalhona, entrara numas de consumismo ostentação com bolsas de mil e duzentos reais e sapatos de oitocentos pilas que quase davam urticária na Rafa, uma guria que gostava de se embonecar pra certas ocasiões, mas achava que havia um limite pra tudo, e esse limite chegava antes de tu torrar três meses de economia em um sapato e uma bolsa.
As gurias haviam mudado tanto que, por vezes, a Rafa se via evitando andar com elas pra não se indispôr com suas melhores amigas.
E esse dissabor a fazia pensar se não havia, ela própria, mudado, também.
A Rafa sabia que havia se tornado um pouco mais geek conforme os anos haviam passado, mas talvez esse "pouco" fosse por sua própria conta.
A Rafa sempre gostara dessas coisas, não tanto de quadrinhos de super-herói, que pareciam o carro-chefe da cultura nerd, mas gostava de ficção-científica e fantasia estilo capa e espada, espada e magia... Muito.
Conforme ser nerd fora deixando de ser um estigma pra se tornar quase cool, a Rafa viu mais abertura, mais acesso pra cair dentro dessas coisas que ela curtia, e ela considerava que talvez tivesse andado uma distância tão longa quanto suas amigas na própria metamorfose, mas para o outro lado.
Enquanto elas haviam ido para o espectro mais "guria" da vida, a Rafa andara pra um canto algo moleque, algo nerd que as afastava das melhores amigas e a tornava intolerante e beligerante.
E essa ideia era a razão de a Rafa, volta e meia, acatar os programas das amigas em detrimento das próprias preferências, como faria dali a pouco, quando fosse ver duas horas de romance mela-calcinha fantasiado de soft porn com atuações meia-boca e trilha sonora de furar os tímpanos com a tampa da caneta Bic.
Olhou para as amigas ao seu redor na mesa...
A Fernanda bebericava uma garrafa de água sem gás. A Paula tomava um suco de laranja com manga do Balanceado, e a Fabi lixava as unhas e mexia no celular entre um aparte e outro na conversa das amigas enquanto a Rafa comia um sundae do McDonald's com cobertura extra de morango, extravagâncias que era capaz de sustentar com cinco quilômetros diários de corrida e a prerrogativa de, a qualquer lugar que desse pra chegar andando, ir andando.
Percebeu, de súbito, que alguém a estava olhando.
Era um rapaz numa mesa a alguns metros de distância. Estava sozinho, e olhava diretamente para Rafaela, ainda que ela fosse, de longe, a menos alinhada na mesa.
Enquanto Fernanda usava calças de ginástica (ironia das ironias) e uma blusinha branca, Paula espremia seu corpão dentro de um vestido cinza justinho e Fabi envergava uma blusa decotava e uma microssaia, Rafa vestia jeans que não eram particularmente justos e uma blusinha da casa Lannister, de game of Thrones, e era a única das amigas que, ao invés de sapatos, calçava tênis.
Ainda assim, ela tinha certeza que o rapaz olhava pra ela.
Ele era bonitinho. Barba, cabelo comprido penteado estilo samurai, sem aquele negócio medonho que os guris faziam agora, de raspar por baixo e deixar um rabo de cavalo em cima...
Usava óculos, todo vestido de preto... Braços bonitos, mas não parecia um marombeiro, ombros largos, estava sentado mas dava pra ver que era alto.
Sobre a mesa, diante de si, um milk-shake de Ovomaltine do Bob's, uma sacola da Fnac e um livro... Aquilo era crucial, que livro era... A Rafa começou a esticar o olho pra tentar ver o que o cara estava lendo, mas não conseguia. Chegou a disfarçadamente esticar o pescoço pra ver, e isso a denunciou.
A Paula, perspicaz como uma víbora, disse um "arrá!" entre dentes, e de imediato alertou Fabi e Fernanda que a Rafa "casara na festa".
-Ai, não, Rafa, falta vinte minutos pro filme... Deixa isso pra lá. - Disse a Fabi, fazendo cara de aflita.
A Fernanda, com fingido desinteresse avaliou o rapaz, discordou de Fabi:
-Ele não faz meu tipo, mas é bonitinho... Eu te entendo se tu preferir não ver o filme, "miga". - Encorajou, pousando a mão na perna da Rafa.
A Paula também deu uma olada no rapaz, que pareceu intimidado pelas olhadas parcamente camufladas das três e parou de olhar pra Rafa, retomando sua leitura, e concordou com a Fê:
-É... Braços legais, a cara não é feia, peitão largo...
A Rafa não era de ruborizar, mas se fosse, teria ficado vermelha. Repetia apenas:
-Pára, gente... Pára...
Vedo que a Rafa tinha ficado com vergonha, aí mesmo que as gurias não pararam. A Fabi entrou na brincadeira:
-Imagina, Rafa, tu vendo Game of Thrones com ele, vocês reproduzindo os movimentos mais safados da série no sofá depois de cada episódio? - Provocou.
A Rafaela olhou pra ela com cara de pouco-caso, balançando a cabeça negativamente.
As outras riram.
O rapaz se levantou, jogou o copo no lixo, ao invés de deixar na mesa. Ganhou pontos com a Rafa, começou a andar, ia passar por elas.
As gurias começaram a provocar a Rafaela, diziam "Lá vem ele, lá vem ele!" em gritinhos sussurrados, "é possantão", disse a Fabi, "Eu pegava", disse a Fê, "vai que é teu, Rafa", desafiou a Paula.
No exato momento em que passava pela mesa, o rapaz olhou pra Rafa, bem nos olhos, e deu um sorriso meio pro lado, tipo Han Solo, e seguiu seu caminho.
A Rafa deu um sorrisinho contido de volta enquanto as outras três fingiam que não estavam olhando, mas assim que ele passou elas começaram a mandar a Rafa ir atrás dele.
"Tu ganhou, Rafa, vai trás que é teu", disse a Fê, "Por amor de Deus, só vai atrás dele se ele tiver um carro, de pé-de-chinelo já basta a gente", disse a Fabi, prática, e "Tu tá precisando dar", concluiu a Paula, mais prática, ainda, arrancando risos das outras, incluindo da Rafa, que protestou.
-Que isso, Paula?
-Ah, tá - Disse a Paula, revoltada: -Tu não é humana, por acaso? É à prova das necessidades fisiológicas básicas de uma pessoa? - Perguntou.
-Não... - Respondeu a Rafa, confusa.
-Então me diz se tu não ia gostar, de estar saindo do banho, cheirosa, depilada, pele hidratada, cabelo lavado, e ele para atrás de ti, tua cabeça na altura do peito dele, ele te pega pelos ombros... - Disse a Paula, fazendo uma voz sexy.
A Rafa fez cara de pouco caso, mas imaginou... Até ali a ideia era boa...
A Paula continuou:
-Tu sente o cheiro dele, as mãos dele descem dos teus ombros pelos braços e cintura, ele começa a percorrer tua barriga e seios com as mãos, joga teu cabelo pro lado, beija tua nuca, tu sente a respiração dele atrás do teu pescoço...
A Rafa estava gostando do rumo que aquilo tomava, não podia negar...
A Paula continuou:
-Ele te puxa pra perto... Tu sente a virilidade dele na tua lombar...
-Na lombar? - Perguntou a Fê.
-Tu não viu a diferença de altura dos dois? - Devolveu a Paula.
-"Virilidade"? - Questionou a Fabi.
-O pau duro... - Explicou a Paula, pra um constrangido "ah" da amiga.
A Paula retomou:
-Tu sente ele encostado na tua lombar, as mãos dele passeiam pelos teus seios e barriga, com uma das mãos ele vira tua cabeça, afasta teu cabelo, beija teu pescoço, tu sente a respiração dele na tua orelha e ele diz...
-Por Rohan... - Completou a Rafa, de olhos semi-cerrados.
Houve uma fração de segundo de silêncio antes de a Fê e a Paula começarem a rir e a Fabi perguntar o que era rôrrãn, que a Rafa, finalmente ruborizada, negou-se a responder.
Ela foi ver Cinquenta Tons Mais Escuros com as gurias, mas foi emburrada e detonou o filme quando saíram, argumentando que deveriam ter ido ver o Lego Batman.
Quando a Paula sugeriu que deveriam ter ficado em casa e visto o Senhor dos Anéis de novo, a Rafa entendeu a piada e ficou muito puta, fazendo voto de passar ao menos duas semanas sem falar com nenhuma das três, mas também recriminou-se.
Precisava de umas fantasias sexuais mais convencionais. Bondage e sado-masoquismo leve...
Esse negócio de espada e magia tava começando a ficar constrangedor.

Ah, o carinha da praça de alimentação estava lendo A Dança dos Dragões, mas a Rafa não ficou sabendo disso.

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