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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Forever Insonso


O calor era desumano.
Mesmo ela, que tinha uma qualidade algo élfica de não suar de escorrer pelo corpo que casava com sua figura esguia, loura e branca, estava secando o suor da testa, e quando tirou sua mochila, revelou nas costas, uma mancha escura na camiseta branca que vestia sob a jardineira amarela.
Não era, porém, nada comparável ao suadouro dele.
Ele suava sempre.
Acima do peso, abaixo do peso, dentro do peso... Não importava.
Na adolescência era um varapau de 78 quilos e vertia suor em profusão ante qualquer atividade física, agora, com mais de trinta e cinco, e ainda precisando baixar uns oito quilos, ele tinha a camiseta tão molhada que poder-se-ia torcê-la.
Não era nem aquele suor localizado, no meio do peito, sob as axilas e nas costas... Não. Era por inteiro.
A camiseta com o pôster de A Fantástica Fábrica de Chocolate, a versão de 1971, parecia ter sido toda embebida em suor.
Entraram juntos na sorveteria, uma sorveteria mais velha que os dois, quiçá que os dois juntos, na avenida Venâncio Aires, pra lá da João Pessoa.
O ambiente branco, com as paredes forradas de azulejos dava cara de banheiro ou laboratório à loja, mas as mesas de plástico colorido e a grande tabela de preços e sabores na parede atrás do balcão eram testemunho a real natureza do lugar.
O sorvete, justiça seja feita, não era tão bom assim.
Longe de ser ruim, haja vista que é uma proeza fazer sorvete ruim, era, no máximo, OK, mas a sorveteria em si era convite de sobra, com os atendentes de chapéu e avental branco, e o cardápio que trazia opções como sundaes, milk-shakes e bananas-split que eram montados na hora e entregues em taças de vidro pesado com colheres de aço-inox...
Além do mais, Porto Alegre parecia ter-se lembrado subitamente que era verão, e todo o calor que ainda não havia dado as caras na cidade resolveu fazer-se presente naquele final de semana.
E gelar-se de dentro pra fora parecia uma alternativa para suportar a caminhada de volta pra casa.
Ele pediu um milk-shake de creme de setecentos mililitros.
Quase um litro de leite e sorvete gelado lhe pareceram a medida ideal para tentar vencer as próximas quadras.
Ela pediu uma banana split com todos os sinos e apitos possíveis, de granulado multicolorido a marshmallow, passando por bijous, chantili, cerejas e três estrambóticas bolas de sorvete de uva, passas ao rum e zabaione.
Ela fez o pedido e ele a ficou olhando, sério, com uma sobrancelha erguida:
-Sério, isso? Uva, zabaione e passas ao rum? - Perguntou.
-É muito bom - Ela se defendeu.
-Quando tu estiver trancada no banheiro sofrendo com cólicas, garanto que não vai parecer tão bom assim. - Ele recriminou.
-Porque é que isso ia me deixar trancada no banheiro? - Ela protestou, divertida.
-Olha essa combinação! - Ele disse. -Uva é um laxante natural... Todos os laxantes são baseados em passa de uva, desde o Activia original, e, pra acompanhar teu sorvete de uva, tu pede um sorvete de passas, de uva_ ele grafou com um movimento de mão - e rum, e depois o Zabaione...
-E tu lá sabe o que é zabaione? - Ela desafiou.
-Ovo, açúcar e... E vinho? - Ele perguntou, triunfante.
Ela fez uma careta de quem não sabe. Perguntaram ao atendente atrás do balcão, que lhes explicou que era uma combinação de gemas de ovo, açúcar e vinho marsala, mas também podia ser feito com vinho do porto.
Ele olhou pra ela com a expressão soberba de quem achava que sabia tudo, ela riu, e chegou a reclamar que ele disse "ovo", e não gema, e que disse vinho, sem especificar qual o tipo, mas isso não arranhou-lhe o orgulho de quem sabia que caramelo era açúcar queimado, baunilha vinha de orquídeas e tutti-frutti era salada de frutas.
-Só pra constar, gema, açúcar e vinho... Vinho... Mais uva. - Ele completou, sardônico.
-Eu nem me importo - Ela disse, dando de ombros. -Na melhor das hipóteses é um detox.
-Tu vai precisar fazer um "detox" no teu banheiro amanhã... -Ele riu, secando o suor da testa com um guardanapo de papel no momento em que chegavam seus pedidos, uma linda taça de milk-shake de vidro pesado com um canudo dobrável listrado de vermelho e branco, e a gloriosa banana-split que ela pedira.
-Milk shake de baunilha? - Ela perguntou, fazendo cara de desdém enquanto apontava para seu vigoroso e colorido sorvete.
-Creme - Ele corrigiu.
-Não é tão festivo quanto o teu doce, eu admito - Admitiu ele. -Mas garanto que me apraz. Além disso, não tem nenhum risco de me trancafiar no banheiro por horas e nem de deixar meu cuspe com sete cores.
Ela enfiou o dedo no nariz e disse, forçando uma voz fanhosa:
-Cuspir é um hábito muito feio.
Ele, sorrindo e entendendo a referência, fez cara de Willy Wonka e disse:
-Eu conheço um pior...
Riram.
-Eu adoro esse filme... - Ela falou, tascando a colher na imensa sobremesa diante de si.
-Eu, também. - Ele concordou. -Mas a versão antiga. A nova eu acho bem meia-boca.
--E bonitinha, vá... - Ela protestou.
-Não... - Ele retrucou. -É ruim. Toda excessiva, superlativa de maneira vazia... Os números musicais, a história com o passado do Willy... Nada daquilo me cativa. É tudo artificial demais.
-O teu problema - Ela disse, sorrindo detrás do sorvete - É que tu pensa demais.
Ele já ouvira aquilo.
De formas variadas e repetidas.
Dela própria, inclusive. Ela, certa feita, o chamara de "reprimido", querendo dizer que ele não sabia ser espontâneo.
Era verdade.
Ele não era bom nisso, de agir, simplesmente, sem planejamento ou agenda.
Até tentara, em mais de uma ocasião, ser um pouco mais...
Espontâneo.
Geralmente essas tentativas surgiam em momentos de necessidade.
Como por exemplo quando a mulher que foi o amor de sua vida ameaçava se acostumar com a distância dele... Na tentativa de evitar esse desfecho, ele tomava alguma atitude completamente solta... aleatória, até boba, para evitar o desfecho.
Fosse surgindo na porta dela com uma caixa cheia de bombons e presentes, pedindo que lhe entregassem em casa uma coberta comprada pela internet, ou escrevendo uma história de amor à imagem e semelhança da que partilhavam com um final irrefutavelmente feliz na esperança de que ela lesse e se deixasse contagiar.
Ele não podia negar...
Sempre sentira-se bem sendo espontâneo com ela.
Por vezes tinha a sensação de que aquela havia sido a sua melhor versão.
Pena que essa versão não existia mais.
Enquanto ouvia a ninfa loura do outro lado da mesa gemer de prazer com sua extravagante combinação de sabores, sorveu um gole do seu milk shake de creme.
Refrescante, mas algo insípido.

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