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quarta-feira, 29 de abril de 2020

Em Silêncio


Acabara de sair do banho, e encarava a própria carranca diante do espelho, percebendo a barba, cujos fios abaixo do queixo apresentavam-se mais longos do que jamais haviam sido.
Não era a barba longa que ocupava sua mente naquele momento, porém, mas outro recorde pessoal que batera naquele mesmo dia:
O de mais tempo que já havia passado em completo silêncio.
Haviam sido quatro dias e pouco mais de três horas, sem dizer uma palavra sequer.
Ficara surpreso ao se dar conta.
Considerava-se um sujeito de verbo econômico, embora tivesse tendência a falar muito quando estava nervoso (na presença de uma morena bonita, por exemplo, quase sofria de diarréia verbal), entretanto, em condições normais de temperatura e pressão, supunha-se um sujeito calado. Ainda assim, quatro dias de silêncio fora uma surpresa para si.
Dera-se conta ao fazer seu pedido no balcão da fiambreria do supermercado.
"Duzentas gramas de presunto de peru, por favor.".
As palavras saíram sem dificuldade, mas ao ouví-las flagrou-se com a sensação de que havia algo de estranho na prosaica situação. Levou alguns minutos para se dar conta de que era o silêncio que vinha mantendo de maneira tão completa quanto distraída nos último dias.
Era apenas uma das peculiaridades do distanciamento social que vinha sendo praticado em toda a parte e que ele, que vivia sozinho, vinha praticando com consideravelmente mais sucesso que a maioria. Sem relacionamento de espécie alguma com os vizinhos da frente, nem familiares ou amigos que telefonassem com frequência, sem estar trabalhando ou indo à academia ou à faculdade, o silêncio se tornara um hábito muito mais presente no seu dia a dia do que já era comumente.
Claro que, olhando em perspectiva, não deveriam ser raros os dias em que passara em silêncio da hora em que saía da academia por volta de seis da tarde até chegar ao trabalho às nove da manhã seguinte nos dias em que, eventualmente, não tinha aula, mas ainda assim, havia sido algo inquietante perceber o vulto da própria solidão.
Ser confrontado com ele de maneira tão palpável fora, não assustador, mas algo desapontador.
Uma súbita compreensão de mais uma faceta da vida na qual falhara, talvez?
Ele não sabia ao certo dizer. Ainda assim, notou que, pela primeira vez em muito tempo, estava sentindo pena de si próprio.
Naquele dia, dormiu onze horas ininterruptas, mas na manhã seguinte, ao sair para correr antes do nascer do sol, verbalizou um acanhado "bom dia" a um outro corredor que vinha no sentido oposto na orla do Guaíba.

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