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segunda-feira, 26 de abril de 2010
Convicções
Jessé cambaleou trôpego como um hébrio e caiu sobre sacos de lixo apoiados em uma placa de sinalização. Uma dor reverberou latejando da ferida em sua barriga espalhando-se com igual intensidade por todo o seu corpo. A pior parte foi quando ela chegou á sua cabeça, onde fez latejarem, ao mesmo tempo, todos os seus dentes.
Jessé se apoiou na mão esquerda, enquanto com a direita pressionava a ferida aberta em seu abdôme, entretanto, não teve força para se erguer com apenas uma das mãos, se apoiou como pôde, ficou de joelhos, e se ergueu apoiando o corpo no poste da placa de trânsito.
Sentia frio, sua roupa estava molhada, não apenas pela água da chuva que fustigara a cidade nos últimos três dias, mas também pelo sangue que abundava de sua ferida aberta. Jessé imaginava quanto sangue haveria perdido. Não sabia estimar a quantidade, mas chutava, pelo tamanho das manchas de sua roupa, quase um litro. Ficava se perguntando quanto sangue uma pessoa trazia no corpo, nunca lembrava, já lera, mas havia esquecido. Quatro litros? Cinco? Algo assim? Se eram quatro ele podia se preocupar, perder um quarto do sangue do corpo, ou um quinto, que fosse, não parecia uma perspectiva das mais tranquilizantes.
Jessé imaginou se não era um bom lugar pra morrer, ali em meio aos sacos de lixo. Eles nem estavam cheirando mal, eram macios, ele podia ficar ali, morrer sobre o lixo, era até algo poético, ele que durante toda a vida fora acusado de tratar aos outros como lixo, morrer em cima de sacos do mesmo.
Jessé sentiu uma ponta de auto comiseração ao pensar nessa possibilidade. Imaginou como seria se um de seus amigos o visse agora, ali, sangrando feito um suíno, precisando desesperadamente de ajuda. Será que o ajudaria?
Jessé não era uma pessoa fácil de conviver. Na verdade, ser amigo de Jessé era uma tarefa que demandava certo esforço. Jessé era avesso a atividades sociais, Jessé detestava sair á noite, não gostava de festas, parecia entediado sempre, era uma pessoa com gostos extremamente particulares. Tirá-lo de casa, fosse para o que fosse, dava trabalho. Não que Jessé não saísse nunca, ele frequentemente saía com seus amigos, ele apenas escolhia com muita propriedade os programas aos quais atenderia, e eram poucos, isso criava essa distância entre Jessé e seus amigos.
Jessé também se envolvia apaixonadamente em discussões de toda a espécie, religião, política, futebol, Jessé tinha opiniões concretas sobre todos os assuntos, ele geralmente mantinha suas opiniões para si, mas quando uma discussão se iniciava, Jessé fincava o pé e mantinha suas convicções até ser convencido do contrário, o que acontecia muito raramente. Não por que Jessé se achasse o dono da verdade, ou se imaginasse superior aos outros, nem que fosse turrão com suas opiniões pétreas, ele apenas escolhia suas convicções com parcimônia, de modo que custava para se desfazer delas, o que era outro fator de distanciamento de Jessé das outras pessoas.
Jessé não era uma pessoa sentimental, suas reações eram as mais racionais possíveis, não que ele jamais tomasse atitudes passionais, ou que fosse lógico e frio feito um vulcano de Jornada nas Estrelas, ele simplesmente preferia abraçar a racionalidade, isso o mantinha são, e ele gostava de ser são e de estar no controle de si próprio, de ter uma margem de espaço do resto da humanidade, mesmo daquelas raras pessoas de quem ele gostava, Jessé precisava de um perímetro, uma zona de conforto.
Agora ele estava distante de todos, perdendo sangue pelo buraco de bala em sua barriga... E nem lembrava ao certo por que fora baleado, ele havia discutido com o sujeito dentro da danceteria... Pelo quê? Uma garrafa, um encontrão? A discussão virou uma briga, empurrões, chutes, e o sujeito saiu depois de Jessé acertar-lhe uma cabeçada, Jessé não teve mais clima para permanecer na danceteria, seus amigos tentaram dissuadí-lo por causa do horário, mas Jessé não ouviu, disse que pegaria um táxi em frente... Não havia táxi, Jessé resolveu andar até encontrar um, caminhou quatro quarteirões, somente ele na rua, até que, subitamente, ouviu o chamarem e, ao se virar, foi alvejado. Levou algum tempo para entender o que acontecera, ouviu o estampido, viu o sujeito com quem brigara, de nariz ensanguentado, que saiu correndo, ainda pensou em correr atrás do sujeito, mas sentiu algo molhado na camisa, e percebeu o sangue...
Era isso... Jessé morreria na rua, em cima do lixo, por causa de uma briga numa danceteria. Ele que odiava danceterias e brigas em proporções quase iguais, que fora á festa unicamente por ser aniversário de uma amiga por quem tinha grande apreço, morreria ali.
Pensou em como agira, em quantas vezes magoara as pessoas que o cercavam, em quantas vezes fora displicente, irônico ou sarcástico com pessoas que lhe eram caras, em quantas oportunidades teve de dividir momentos com pessoas que o amavam e desperdiçou essas oportunidades em nome de satisfação rápida e vazia. Se tivesse uma oportunidade de voltar atrás, sim... Jessé faria exatamente igual.
Ele era assim, uma pessoa de convicções pétreas.
Deitou sobre o lixo, ajeitando-se, diminuiu a pressão sobre a ferida e sorriu. Estava pronto.
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