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quinta-feira, 29 de abril de 2010
Tocando a vida.
Vladislau caminhou para dentro do brete de fita sustentado por pequenos postes de metal que abrigava a fila da loja.
Ficou lá, parado, avaliando suas opções para em seguida. Segurava uma calça jeans, três camisetas e um casaco de veludo, vasculhava os bolsos procurando pelo cartão da loja enquanto se perguntava se seu limite cobriria as compras ou se precisaria dar uma entrada em dinheiro, talvez pagar as camisetas á vista... Conjecturava a esse respeito, pensando se faria uma gordurosa incursão ao burger king depois das compras, ou se iria procurar a SuperInteressante e o Homem-Aranha daquele mês, se compraria um jogo de videogame ou se iria guardar dinheiro pra alguma eventual necessidade e se compraria a TV de 42 polegadas que estava namorando já fazia alguns meses... Pequenos pensamentos mundanos de final de mês na fila de uma loja de shopping.
Vladislau alisava o casaco que adquiriria quando se virou casualmente para trás, ao pressentir a aproximação de outra pessoa, olhadela rápida, com o rabo dos olhos, apenas para ter ciência de quem se postara atrás de si, e o choque.
A mulher que vislumbrava, de olhos baixos, as próprias compras era bonita, morena, os cabelos negros compridos e ondulados se deitavam sobre os ombros torneados e firmes e emolduravam o rosto coberto de sardas, as sobrancelhas bem desenhadas, os lábios carnudos, o nariz afilado com um quê de Julia Roberts... Era uma mulher bonita, mas não era essa a razão do choque de Vladislau, a razão do choque era outra:
Aquela mulher e ele partilharam um passado comum.
Ela fora, durante dois anos e meio, a mulher da vida de Vladislau. Seu nome era Isabel, fora a namorada de portão de Vladislau, fora seu primeiro amor sincero e consciente, um amor que ele escolheu nutrir, que não fora criado por circunstâncias.
Sim, Isabel fora a mulher que Vladislau escolhera para amar, que ele escolhera para ser a mãe de seus filhos, com quem queria construir um futuro, Vladislau passara dois anos e meio nutrindo o amor por Isabel, e, de uma forma ou de outra, achara que fora correspondido, embora, olhando pra trás, ás vezes tivesse certeza de que amara mais do que fora amado e talvez até houvesse sido esse fato que houvesse acelerado o final da relação, vá saber...
A questão foi que, em certos momentos Vladislau se sentia fora de lugar naquela relação, ele por vezes se sentia vilipendiado e preterido nas afeições de Isabel, e o amor que ele nutrira com tanto interesse e dedicação foi sendo ressecado por palavras mordazes e atitudes irônicas e sarcásticas de parte à parte, culminando numa separação em que muito foi colocado pra fora, que fora regada à lágrimas, mas que, pelo menos fora sem ressentimentos, e talvez, até ainda com algum resquício de afeto entre ambos.
Agora, mais de dez anos haviam se passado, e ali estava ela, Isabel, menos de vinte e cinco centímetros de distância de Vladislau, remexendo as próprias compras, Vladislau não sabia como reagir, desde o final do namoro encontrara Isabel poucas vezes, sempre rapidamente, sempre em ocasiões em que um ou o outro estavam prestes á fazer alguma outra coisa com outra pessoa.
O que ele diria? O que faria? Será que ele estava bem? Engordara uns quilos, mas isso podia ser disfarçado na postura, ele ajeitou a coluna, pondo-se em posição ereta, conferiu o próprio hálito, tudo bem, comera uma caixa inteira de tic tac, o hálito estava OK.
O que diria à ela, por Deus? Viraria-se casualmente, a cumprimentaria fingindo surpresa "Isa? Quanto tempo!". Não... Melhor não chamá-la de Isa, não seria apropriado, afinal, não queria soar íntimo demais...
"íntimo demais", mas que bobagem!
Claro que era íntimo demais de Isabel, explorara o corpo nu dela em mais de uma ocasião, conhecia os recônditos mais particulares dela pessoalmente, poderia cumprimentar os tais recônditos com um "Opa, beleza?" de tão bem que os conhecia, e agora ali estava, pensando em não soar demasiado íntimo de uma mulher com quem tomara banho mais de uma vez, de uma mulher com quem dormira sem roupa, com quem partilhara sorvete de casquinha na mesma colher, claro que eram íntimos, com mil demônios.
Mas tudo bem, não era de bom tom se valer desse expediente.
A cumprimentaria casualmente, sim, mas com alguma deferência, mostrando apropriada gentileza:
"Oi, Isabel, tudo bem contigo? Como vão as coisas?".
Sim, eles conversariam, alegremente, ela elogiaria seu casaco, ele diria sorrindo meio pro lado que não entendia o suficiente de moda pra elogiar as roupas dela, eles ririam, ele a convidaria para tomar um sorvete de casquinha, "não na mesma colher, ah, ah, ah, ah, ah..."...
Não, melhor não.
Ele a convidaria, casualmente para jantar, sim, algo como "Estou indo jantar agora, e tu?", ela diria que também estava, e eles jantariam juntos como nos velhos tempos, como faziam nas quartas-feiras, jantar, cinema, depois ver TV abraçadinhos, deitar e fazer amor apaixonado... Sim, ele gostaria disso, não gostaria?
Ela fora o amor de sua vida, a mulher de sua vida, talvez agora ela aprendesse a amá-lo como ele a amava, e eles seriam felizes como não haviam sido, sem as cobranças, ironias, sem as palavras ferinas e o sarcasmo...
Vladislau se virou casualmente, olhando Isabel, ela devolveu o olhar erguendo levemente as sombrancelhas, encararam-se em silêncio por breves segundos, ele falou:
-Isabel?
Ela fez uma expressão indefinida e apenas disse:
-Sim...
Ele não pôde acreditar, será que ela não o estava reconhecendo? Seria isso?
-Oi, Isa. Tudo joia contigo?
-Ahn... Tudo, tudo joia, e contigo?
Ela não o estava reconhecendo... Não... Não era possível, ela não o estava reconhecendo. A ele, a ele que a amara, a ele com quem tomara banho, a ele que conhecera intimamente os recônditos mais particulares do corpo nu dela, ela não o estava reconhecendo.
-Tudo bem... O que tem feito?
-Ah... Trabalhando, trabalhando muito...
Ela não fazia ideia de quem ele era... Como aquela vaca insensível podia não lembrar dele, ele que lembrava de tudo, lembrava do chaveiro em forma de coração partido, lembrava da camiseta cinza que usava pra correr e ela queria pra dormir por ser larga e confortável, lembrava da música que ouviram na noite em que fizeram amor pela primeira vez, os corpos se tocando, as roupas sendo removidas enquanto Pepeu Gomes declarava que era o marinheiro do barco fantasma que iria pegá-lo... E ela não lembrava? Que bazófia era aquela? Que tipo de meretriz vil e de coração gelado desprovida de qualquer empatia ou bom sentimento poderia esquecê-lo àquele ponto?
Claro, ele engordara uns quilos, vestia-se de maneira mais sóbria, cortara os cabelos diferente, mas ainda era ele! Sua voz não mudara, seus trejeitos não haviam mudado, seu rosto não mudara, como...
Resignou-se.
Não podia abrir a cabeça de Isabel e enfiar-se lá dentro a procurar pelas memórias que ela deveria ter de ambos. Na verdade, não chegava a ser surpresa, Isabel jamais o amara como ele à ela, logo, era perfeitamente plausível que ela houvesse colocado uma pedra sobre a memória da relação de ambos assim que terminou.
Fazia sentido.
Sua vez no caixa chegou, escolheu as condições de pagamento, cinco parcelas, pagou as camisetas à vista, despediu-se friamente de Isabel:
-Tchau, bom te ver, hein? Manda um beijo pra tua mãe.
Ela disse algo, mas ele não prestou atenção. Voltou pra casa, comeu umas batatas fritas de lata, dormiu e tocou a vida.
Isabel também fez suas compras, duas blusas de alça e uma camisola verde-água. Passou o cartão, apanhou as compras e foi, também, pra casa.
Comeu um salgado na padaria perto do seu prédio e tomou um chá gelado. Ao chegar em casa, colocou as sacolas de compras sobre a cama, e sentou-se ao lado. De baixo da cama puxou uma caixa de papelão, dentro da caixa algumas fotos, um scooby-do de pelúcia, cartões, uma caneca de louça branca onde se lia "Namorada Número 1 Do Mundo", um chaveiro representando metade de um coração partido e uma camiseta cinza meio amarfanhada.
Isabel retirou a camiseta da caixa e a levou pertinho do rosto, ela ainda mantinha um cheiro cítrico de perfume e de desodorante.
Isabel a cheirou profundamente, e segurou a camiseta junto ao colo. Seus olhos ficaram marejados por um segundo. Ela guardou a caixa de novo e foi tratar de suas coisas, tocar a vida.
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