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segunda-feira, 12 de abril de 2010
A hora da vingança
Aparício apareceu como quem não queria nada.
Sônia não via o miserável faziam uns quatro ou cinco meses. E agora, após abrir a porta de casa, enquanto pendurava a chave no claviculário, ouviu a voz da mãe, conversando animadamente. Estranhou, a mãe não tinha muitas amigas, podia ser a avó de Sônia, ou sua tia, elas apareciam com frequência, mas não. A voz que chegou aos ouvidos de Sônia não era nem, de sua avó, nem de sua tia.
Era uma voz masculina. Falava depressa, falava muito. Sim... Aquela voz era dele.
Do acéfalo, do bitolado, do cafajeste... Era a voz de Aparício.
Ele havia aparecido novamente.
Sônia lembrava como se fosse ontem da última vez que vira o rosto longo de Aparício. Lembrava de suas espessas sombrancelhas negras, de seus olhos castanhos e dos cabelos repletos de gel. Ela lembrava do cheiro de perfume e de suor misturados que ele exalava, e do cheiro de chiclete clorets no seu hálito. Sônia lembrava, sim.
De sua voz lhe dizendo macia e cheia de culpa que não era ela, que era ele, que ela era jovem e linda e encontraria um homem que fosse completo e pudesse amá-la como ela merecia. Que ele não era esse homem, que ele ainda não se encontrara, e que enquanto não se encontrasse não a mereceria.
Sim, Sônia lembrava de tudo que o desgraçado dissera.
Ela lembrava de como quase se sentira culpada por ser perfeita demais, boa moça demais, de como quase flertara com a ideia de se largar um pouco, de fazer umas bobagens, de cortar os longos e belos cabelos negros ondulados ou quem sabe acrescentar um pouco de volume á sua impecável silhueta de 58 quilos distribuídos de forma harmônica em um metro e setenta?
Sim, Sônia se sentiu culpada por ser boa demais. Ela de fato acreditou no que o energúmeno, falastrão, gosmento, horrível e idiota de duas caras, cavanhaque e mãos delicadas de artista lhe dissera naquela noite com sua cara de pau.
Ela o admirou em sua honradez, ela acreditou, de fato, que ele a considerava perfeita, e não se considerava à altura dela. Aquilo a ancheu com alguma forma obscura e dolorosa de lisonja, tanto que ela se sentiu, de fato se sentiu culpada por ser boa demais.
Todos os desentendimentos, brigas e cobranças dela pareceram, de repente, tão inócuas, tão vazias, tão... Tolas diante da abnegação daquele homem. Ela crera naquilo. Ela de fato acreditou que aquele jumento linguarudo, aquele mandrião nojento e obtuso era um homem abnegado.
Pois sim.
Aquilo não era um homem. Aparício era uma criatura pestilenta e quadrúpede, um rato!
Isso mesmo, um roedor portador da peste negra e que vivia nos túneis úmidos dos esgotos fazendo a imitação de um homem.
Sônia demorara apenas alguns dias para descobrir, ao chegar mais cedo da faculdade, lépida mas ainda com um buraco em seu coração, ela viu, lá estava o santarrão, o tosco, á menos de trinta metros de sua casa, sentado na calçada conversando animadamente com aquela ruiva... A audácia, a desfaçatez... Quem ele pensava que era, aquele usurpador? Aquele verme xabouqueiro? Como ousava romper com ela, que terminara todos os seus namoros, e, ainda pior, fazendo-a se sentir culpada, dizendo que precisava se encontrar, que precisava se um homem completo, que ainda não o era, e toda aquela ladainha, e, menos de uma semana depois lá estava ele, de tiara e jeans, conversando na calçada com aquela, aquela...
Não importava. Não importava mais. Sônia havia superado. Tinha pra si que revertera aquela situação. Namorara homens feitos, sem os defeitos juvenis daquele rufião de barbicha, namorara homens sérios que não faziam vozinhas especiais nem tampouco a jogavam sobre o ombro e corriam por meia quadra sacolejando-a como se fosse um saco de batatas. Homens responsáveis que ouviam e acatavam seus bons conselhos sem desfazer deles ou ironizá-los sem dar a devida atenção. Não, Sônia agora era uma mulher feita, e namorava com homens feitos. Não que estivesse namorando com nenhum agora, homens feitos eram algo chatos, mas ela tinha sua vida, realizada no trabalho fazia o que gostava e dividia os frutos com quem partilhasse seus gostos.
E ele, agora retornara, sim, o cretino retornara, ali estava o crápula, ele que fizera Sônia passar noites em claro, chorando copiosamente, e depois a fizera passar mais noites em claro, chorando de raiva e o insultando em ordem alfabética... Mas ele voltara. Voltara rastejando conforme ela profetizara ao vê-lo na rua sozinho numa tarde qualquer no centro de Porto Alegre. Ela sabia, pelo modo como ele a encarou, pela sua hesitação na hora de se despedir, ela sabia, sabia que ele iria retornar, que ele cairia em si e voltaria se arrastando e pedindo perdão.
Agora era a hora de aproveitar o momento, de saborear aquela vitória, sim, Sônia iria fazer isso, iria desfazer de Aparício, iria sorrir candidamente enquanto ele pedisse uma segunda chance e então... Rá! Ela gargalharia friamente e lhe diria algumas boas verdades.
Sacou da bolsa o espelho e a maquiagem, precisava estar bonita para que ele se sentisse ainda pior ao ser vergonhosa e impiedosamente rejeitado, aquele... Aquele... Não importava. Não agora. Não em seu momento de triunfo.
Sônia respirou fundo, e entrou na sala, sua mãe e Aparício silenciaram. A mãe disse:
-Olha só, filha, quem deu o ar da graça!
Sônia olhou com um sorriso cínico enquanto Aparício, vestindo calça jeans, camiseta branca e camisa preta aberta se levantou e andou em sua direção, ele a abraçou forte, beijou-lhe a face, e ainda abraçado nela disse em seu ouvido:
-Quanto tempo, Soninha.
Sônia estava aproveitando seu triunfo. O abraçou vagamente, sentiu o cheiro de clorets em seu hálito, sentiu o cheiro de perfume masculino e suor almiscarado, o roçar da barbicha em seu pescoço. As pernas de Sônia tremeram de leve. Ela suspirou.
Recomponha-se! Ela pensou, recomponha-se! Esse calhorda está aqui para implorar que tu o aceites de volta. Recomponha-se, guria!
Ele segurou as mãos dela quando a desvencilhou de seu abraço, perguntou como estava tudo.
Ela respondeu com monossílabos. Estava vivendo um conflito interior. Será que devia aceitá-lo de volta? Seus olhos ainda mantinham a mesma qualidade juvenil de antes, mas ele parecia mais maduro. Sabia que ele estava trabalhando em um emprego fixo agora, que era um homem mais responsável... Poderiam tentar de novo, ela faria dar certo, mesmo que tivesse que tentar ser menos certinha, menos perfeita. Ela queria sentir novamente o cheiro de perfume e suor, o hálito de clorets, queria sentir os braços dele a envolvendo... Sim, ele pediria para ser aceito de volta, pediria uma segunda chance e ela diria que sim. Claro, se faria de difícil. Não deixaria ele perceber o quanto sentia sua falta, ela faria pose de durona. Arrá, aquele sujeito não sabia com aquem estava lidando, Sônia era uma mulher poderosa, e faria o relacionamento dar certo. Aquela separação fora apenas um intervalo em sua história de amor para que ela aproveitasse um pouco a vida e ele adquirisse a perspectiva necessária para dar à ela o devido valor.
Ela sorriu, ainda sentindo as mãos delicadas de artista dele envolvendo as suas:
-Esperando á muito tempo? -Ela perguntou.
-Não, não. Tava de saída, já. -Respondeu Aparício, soltando suas mãos.
-Claro - Ela começou.
Então deu-se conta. Como assim "de saída"?
Ele se despedia da mãe dela, um abraço fraternal, um beijo no rosto, repetiu o gesto com Sônia. Pegou uma sacola esportiva do chão, ao lado de poltrona onde estava sentado.
-Só tinha vindo buscar a minha bolsa de viagem e o meu moletom da Nike que tinham ficado aqui. Tô de viagem marcada pra Canela nesse final de semana, pode fazer frio. Bom te ver, Soninha. Beijão.
A mãe o acompanhou até a porta, e quando voltou, Sônia estava sentada no sofá limpando a maquiagem e tirando os sapatos.
-Ele pareceu bem, né? Tá namorando sério, já fazem uns cinco meses. Ele acha que é a mulher da vida dele. Disse que aprendeu muito contigo. Bom rapaz. Quando é que tu vai arranjar um namorado que nem ele de novo, hein, Sô? Ele é tão... Tão...
-Zastre. -Completou Sônia com o rosto contorcido de raiva.
Quando sua mãe perguntou "O quê?" ela disse que não era nada e foi pro banho. No chuveiro, com o rombo novamente escancarado no coração, recitava baixinho:
-Anormal... Bitolado... Chantagista... Desclassificado...
Aquilo duraria ainda algum tempo.
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