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segunda-feira, 23 de janeiro de 2012
Inexplicável
O Benedito vinha andando calmamente pela rua, fones de ouvido posicionados sobre as orelhas, óculos escuros sobre os olhos, e mãos crispadas sobre as alças de sua mochila.
Benedito vinha ouvindo Journey, "Don't Stop Believin'". Sentia-se bem sendo anacrônico logo pela manhã. Ultimamente era um dos poucos momentos em que Benedito sentia-se bem. Quando andava de casa ao trabalho ouvindo sua playlist entitulada "Só as Jedi".
Ali estavam várias músicas que significavam algo para Benedito. By Your Side, na versão de Beachwood Sparks, Brown Eyed Girl, do Van Morrison, In My Life, dos Beatles, Hurt do Johnny Cash... Músicas bem distintas entre si, mas que lembravam Benedito de Bruna.
A Bruna era tudo o que o Benedito queria da vida.
Sério.
Se tudo o que o Benedito queria da vida se transformasse em uma mulher, seria a Bruna. Sem tirar e nem pôr.
Todas as características da Bruna batiam, ipsis litteris, com as idealizações que o Benedito formulara na sua longa vida de relacionamentos arruinados.
Toda a vez que um namoro do Benedito terminava, ele aprendia alguma coisa. Percebia alguma nova particularidade, e acrescentava algo à lista de itens que ele consideraria indispensáveis na pessoa que seria "A" pessoa. A mulher que o completaria e com quem Benedito iria querer passar todos os dias de sua vida.
E no lugar mais improvável... OK, o terceiro ou quarto lugar mais improvável, atrás de uma gafieira, um quartel da Legião Estrangeira e uma convenção de leitores de O Segredo. Foi através da internet.
E embora o Benedito tenha sido desconfiado com relação à Bruna como era com relação a quase tudo, ela perseverou, e eles se encontraram. Tiveram uma história pra chamar de "nossa". Partilharam tempo, refeições e filmes. Sobremesas, parques e conversas. Caminhadas, camas e beijos.
Mas, como fazia com quase tudo na vida, as noções pré-concebidas de responsabilidade e compromisso de Benedito acabaram por traí-lo. E ele inadvertidamente afastou de si a única pessoa que de fato quis ter por perto em sua vida.
Agora ali estava Benedito. Tentando se curar. Tentando colar os pedaços. Tentando sentir algum sabor que não fosse o amargo na sua língua.
Benedito fazia isso cultivando um sentido de normalidade artificial em sua rotina. E, quando ele não parava pra pensar, nem doía.
Contando os dias desde que Bruna lhe disse adeus de maneira inapelável, deixando claro que estava magoada e que não queria mais vê-lo, Benedito lutava diariamente contra o ímpeto de lhe mandar uma mensagem, de telefonar, ou fazer qualquer contato.
Esse era um desses dias. Benedito caminhava ouvindo música pela rua, quando a figura volumosa de uma mulher grande e robusta assomou junto dele.
Benedito olhou de relance, e seguiu caminhando, mas a mulher falou com uma voz grave carregada de uma nota de reprimenda:
-Bêne?
Benedito virou a cabeça tirando os fones de ouvido e surpreendeu-se a se deparar com a dona Maria Coralina.
Maria Coralina era a tia de um amigo de infância de Benedito, o Jorge, que passava mais tempo na casa da tia do que na sua própria. Quando era guri, ali pelos seus treze, quatorze anos, Benedito e seus amigos iam à casa de dona Coralina, chamada carinhosamente de tia Cora pelos moleques para cortar os cabelos.
Jorge tinha uma máquina, e por cinquenta centavos raspava os cabelos de alguém. O sucesso era garantido, já que o preço de Jorge garantia que os cinco ou dez reais que os piás ganhavam pra cortar o cabelo rendessem frutos muito mais saborosos com a economia.
Benedito tinha lembranças bastante claras de ir à casa da tia Cora pra cortar o cabelo junto com outros dois ou três amigos, e, enquanto esperava na sala forrada de jornal velho pela sua vez, comer bolo de laranja e beber coca-cola servidos com um sorriso pela tia Cora, provavelmente a única pessoa da rua que não se importava de receber uma turba de pré-adolescentes barulhentos dentro de sua casa por mais de dez minutos.
Agora ali estava ela, aquela mulher grande e volumosa, com a pele muito alva e os cabelos muito loiros cortados em um chanel curto, trajando um vestido amarelo e com os óculos escuros na ponta do nariz.
-Querido! - Ela gritou enquanto abraçava com força o Benedito, que quase sentiu as costas estalarem ante a pressão, e sapecava-lhe um beijo estalado no rosto.
Tia Cora sempre abraçava assim, com força. Era bacana vê-la.
Mas havia algo de errado. O que era? Benedito não conseguia lembrar.
-O que tu anda fazendo? - Ela perguntou, enquanto limpava-lhe a mancha de batom da bochecha.
-O de sempre, tia... Trabalhando, estudando, tentando não ficar louco. E a senhora?
-Ah, cuidando das minhas coisas... - Ela respondeu agitando as mãos. Olhou bem pra ele, e seguiu: -Tu parece tristinho. O que houve? É guria, né?
Benedito riu. Era incrível como as pessoas que nos conhecem a muitos anos têm a capacidade de ler nossa fisionomia como se fosse uma capa de revista.
-É, tia Cora... É guria.
Benedito respondeu ainda pensando no que estava errado. Não ouvira falar que a tia Cora havia morrido? Uma vizinha havia falado isso um mês ou dois atrás. Benedito chegou a pensar em telefonar pro Jorge e dar seus pêsames, mas perdera contato com o amigo. Não tinha mais o número. Obviamente alguém havia se enganado. Ali estava ela, corada e lépida diante dele, conversando com o vozeirão grave como fizera sempre.
-E ela era especial, é? Essa guria? - Quis saber a tia Cora, sussurrando como se não quisesse ser ouvida.
-Ela é, tia. Muito especial. Era "a" guria. - Respondeu Benedito, sorrindo.
-Ah... Pois então... Não fica assim - Ela aconselhou. - O que tiver que ser, vai ser. Pode acreditar.
Abraçou ele novamente, de maneira terna, e passou com força as mãos nas suas costas.
-A tia vai lá. Manda um beijo pra tua mãe. - Despediu-se.
Benedito seguiu então seu caminho. Rumou ao trabalho, teve um dia cheio, trabalhou até sentir ardência nos olhos. No fim do dia, comeu um picolé de côco no caminho de volta pra casa, e, ao chegar, ouviu, ainda com a chave na porta, o telefone tocando.
Correu pra atender, era sua mãe. Conversaram brevemente amenidades, e, antes de se despedir, Benedito lembrou-se:
-Ah, mãe. Encontrei a tia Cora, hoje, ela te mandou um beijo.
A mãe de Benedito perguntou "que Cora?", e, ao ouvir a resposta, disse que o filho se enganara:
-Mas Benedito, meu filho, a Cora morreu.
-Como que morreu, mãe? Se eu encontrei ela, hoje? Quem disse que ela morreu se enganou.
-Não, Benedito. - Respondeu-lhe sua mãe. - Eu levei flores no túmulo da Cora em Finados, ano passado.
Benedito pensou em replicar, mas achou melhor não. Disse que devia ter se enganado, então. E que fora outra pessoa. Quando se despediu sua mãe chegou a dizer entre risos, "cuidado com os fantasmas.".
Benedito não achou graça. Demorou a dormir. Não que acreditasse em fantasmas. Não. Benedito não acreditava em nada. Mas pensou se tivera um sonho muito vívido ou se alucinara.
No dia seguinte, quando ia trabalhar, vinha atento pela rua. E ali, perto da pracinha entre a José do Patrocínio e a Demétrio, viu a tia Cora virar a esquina vindo da Borges em sua direção, já sorrindo. Ela acenou de passagem, sorrindo muito, e passou a mão em seu ombro enquanto lhe disse:
-Não fica com essa carinha comprida. Se ela e tu foram feitos um pro outro, vai dar certo no fim.
E seguiu andando.
Benedito parou e virou, acompanhando com o olhar os passos decididos da tia Cora em direção à José do Patrocício e sumindo na esquina com a Coronel Genuíno.
Benedito pensou muito naquele dia. Foi relapso no trabalho. Ficou com a tia Cora na cabeça. Estaria ficando louco? Alucinando? Repassou tudo o que fizera no dia anterior e não lembrava de ter ingerido nenhum psicotrópico de nenhuma espécie, embora lembrasse com bastante detalhes do seu dia.
No dia seguinte falou com um dos seus amigos e conseguiu o telefone de Jorge. Ligou e expressou suas condolências, sentiu, com isso, uma ponta de paz.
Entretanto, após cruzar com tia Cora na rua novamente, e ouvir dela que a noite sempre ficava mais escura antes de amanhecer, percebera que não fora o suficiente.
No final de semana, pensou em ir ao cemitério para conferir o túmulo da tia Cora, mas percebeu que, se desse início à esse tipo de obssessão sabia como acabaria: Preso tentando exumar o corpo sem autorização. Era uma pessoa lógica o Benedito. Não acreditava em nada que não pudesse ver, nem comprovar de maneira prática. Ás vezes nem acreditava em coisas que podiam ser comprovadas. Não sabia lidar com aquele estranho traço sobrenatural em seu dia a dia. Nem queria aprender.
Resolveu fazer um teste:
Na manhã seguinte Benedito fez um caminho diferente pra chegar ao trabalho. E não encontrou a assombração. Ficou aliviado. Trabalhou e voltou pra casa pelo caminho alternativo.
No outro dia, saiu de casa dez minutos mais cedo do que o de hábito e fez o caminho de sempre.
Novo sucesso. A aparição não deu nenhum sinal de (pós) vida.
Manteve a sua rotina assim por uma semana. Variava o caminho ou o horário de sair de casa. As coisas voltaram ao normal.
Benedito seguiu com sua rotina de auto-comiseração e saudade de Bruna. Voltou a flertar com a tristeza e o silêncio.
Foram dias sombrios aqueles de Benedito. Seis, ao todo.
No sétimo dia, Benedito saiu de casa no horário de sempre, e fez o caminho de sempre.
Ali, próximo à praça do SENAC cruzou com a tia Dora. Lépida e faceira. Ao passar por ela, parou com um sorriso e tirou o fone de ouvido pra receber o abraço apertado dela. Ela o soltou e cutucou-lhe amigavelmente com o cotovelo perguntando:
-E a tua guria?
-Nada, ainda, tia Cora. - Respondeu Benedito, dando de ombros.
-Mas vai vir. Se for pra ser, vai vir. - Ela disse o encorajando. E seguiu andando.
Ele, ainda sorrindo, ficou olhando enquanto ela andava antes de sumir na esquina com a Coronel Genuíno. Decidira que estava disposto a acreditar em algo inexplicável de quando em quando. Talvez, racionalizou Benedito, aceitar um pequeno traço de paranormalidade em sua vida o ajudasse a acreditar que a Bruna tinha chance de ser feliz com ele.
Colocou o fone de volta a tempo de ouvir as notas finais de In My Life:
-In My Life... I Love You More.
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