Bem vindos a casa do Capita. O pequeno lar virtual de um nerd à moda antiga onde se fala de cinema, de quadrinhos, literatura, videogames, RPG (E não me refiro a reeducação postural geral.) e até de coisas que não importam nem um pouco. Aproveite o passeio.
Pesquisar este blog
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
Sinceridade
Foi ainda no começo da adolescência que conheci o César.
Sujeito de estatura baixa e má construção física, era aqueles magros com uma barriga murcha pendendo como uma pochete flácida de pele sobre a cintura (onde, aliás, geralmente repousava uma pochete de lona de verdade.). Ele mesmo referia-se ao próprio tipo físico como "Uma minhoca que engoliu uma azeitona".
Tinha pernas e braços finos, a tez muito branca, quase amarela, e uma quantidade generosa de sinais e pintas pelo corpo. Careca, com alguns poucos cabelos castanhos finos ao redor da cabeça, tinha um rosto quadrado, olhos bem juntos, quase nenhuma sobrancelha e um espaço generoso entre os dois dentes superiores da frente.
Geralmente vestia-se com bermudas jeans que obviamente haviam visto dias melhores na forma de calças até estarem envelhecidas e maleáveis, serem cortadas sem lá grande esmero ou cuidado na altura das pernas e seguirem sua vida deixando os cambitos de César à vista de todos.
César tinha uma pequena loja, mais ou menos do tamanho de um armário de vassouras na cidade baixa, e vendia ali todo o tipo de porcaria velha. Se alguém tivesse um fogão fabricado em 1972 e precisasse de peças de reposição, era provável que as encontrasse na loja do César. Se alguém estivesse procurando aquelas agulhas pra desentupir a boca dos queimadores do fogão, encontraria ali, também. O mesmo valia pra placas de carro velhas e enferrujadas, crânios de animais, aqueles engradados em miniatura da Coca Cola, com algumas das garrafas com conteúdo pela metade e as demais faltando, bichos de pelúcia caolhos, ventiladores com as hélices e a grade de metal, e outras porcarias do tipo.
César também vendia revistas velhas, que pendurava com prendedores de roupa em alguns varais que cruzavam pelo alto o exíguo espaço de sua loja. Vendia todas sem muita distinção, lá havia edições da Planeta datadas dos anos setenta, da revista Manchete, até uma Cruzeiro eu vi pendurada lá, uma vez.
Foi justamente por isso que conheci o César. Por causa das revistas.
Certa feita passei em frente à sua loja e vi uma edição encadernada de Batman - O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller pendendo em seu varal. Haviam alguns garranchos feitos à caneta azul na capa, mas o interior do gibi, à exceção de algumas orelhas em diversas páginas, estava em perfeito estado. Comprei por dois Reais. Na época nem havia nota de dois, dei duas notas de um Real, daquelas verdes, com um beija-flor que nem existem mais.
Continuei frequentando a lojinha do César dali por diante, e, conforme me tornava, de fato, seu cliente recorrente, fui aprendendo o quanto o César era desagradável.
O César, por exemplo, não tinha pudores em vender revistas proibidas para menores a menores. Aliás, não fosse (mais) essa faceta abjeta do César, e eu provavelmente não teria continuado sendo seu cliente dada sua falta de esmero na hora de selecionar o estados dos gibis que comercializava. Nos meus quatorze anos de idade era muito importante pra mim ter acesso à nudez feminina, e as únicas formas disponíveis à época, eram comprando revistas ou assistindo à peças de teatro que porventura apresentassem alguma nudez como A Farsa Trágica do grupo Falos & Stercus, que assisti quatro vezes para ver uma atriz nua.
As peças teatrais eram raras, especialmente aquelas que permitiam a entrada de menores quando havia "conteúdo adulto, e César garantia acesso as revistas.
Mais do que isso, dava dicas.
Ainda lembro de uma vez em que, modesta e timidamente peguei uma Playboy qualquer, não lembro quem era a capa da edição, e ouvi de César:
-Que é isso? Não compra essa revista, não, que isso é uma merda. Quer ver pentelho olha os teus quando for mijar. Aqui, ó. Leva essa importada, é só um real mais cara e "as mina se arreganha inteira".
Talvez agora fique mais claro o quanto o César era desagradável.
Ainda que fosse desagradável, não estivesse nem perto de ser bem sucedido, fosse uma figura feia, e não fosse particularmente inteligente, após algum tempo surgiu uma namorada para trabalhar com César, que ficava na loja em seu lugar em algumas ocasiões. Era mais jovem que o César, tinha os cabelos descoloridos nas pontas com raízes muito escuras, e embora não fosse uma mulher feia como era de se esperar ao lado de César, tinha uma certa qualidade avoada, quase infantiloide, que fazia-me sentir alguma piedade dela.
Nunca soube se ela era de fato namorada do César, não me lembro nem de vê-lo tocar nela, ou sequer chamá-la pelo nome, geralmente ele a chamava com um "ô", ao que ela atendia de pronto.
Logo que ela surgiu, comecei a parar de frequentar a lojinha de César, tanto por vergonha quanto por receio.
Acho que a faceta desprezível do César era tão vívida que eu temia, inconscientemente, que ele fosse tentar se tornar cafetão da tal moça e oferecer serviços de alcova dela a preços módicos, talvez executados em uma cama minúscula, ou num colchão sem forro que, eu supunha, ele fosse ocultar atrás da cortina puída que dividia em dois o espaço acanhado de seu estabelecimento.
Pelo que conhecia de César, não duvido que ele se proporia a agenciar a prostituição de sua companheira e ainda ficar vendo de esguelha enquanto se consumava o ato.
Mas antes disso, em certa feita, eu entrei no muquifo de César e me pus a vasculhar suas revistas enquanto ele conversando com uma velhinha grisalha de vestido floreado e chinelos de camurça. A idosa comentava com César a respeito de uma matéria que vira na televisão, dando conta de um rapaz, que descobrira após o casamento, que sua noiva era um travesti.
A velhinha, escandalizada, dizia:
-Imagine, seu César. Na noite de núpcias, descobrir que a noiva é homem.
E o César, muito natural, sentado em sua banqueta alta com a perna cruzada e o chinelo Samoa batucando no calcanhar, respondeu de bate-pronto:
-Eu viro ela e faço anal. Nem quero saber. Viro ela e faço anal.
A velhinha, com uma expressão escandalizada, cobriu a boca muito aberta com a mão, e despediu-se de César com um aceno mudo, que ele respondeu com um "tchauã".
César era assim... Desagradável.
E talvez o fosse por ser excessivamente sincero.
César não era um desses trolls da internet, dono de uma sinceridade artificial, que se esconde sob o manto da distância e do anonimato para ser grosseiro com todo mundo em busca de uma auto-afirmação de qualquer espécie, ou de risadas grosseiras.
Não. César era um grosseiro genuíno, pois genuína era sua sinceridade. Sua sinceridade e a consequência que ela trazia, aquela qualidade repelente, não eram um joguete, não era um estilo adotado, eram intrínsecos à sua personalidade. Ele não sabia ser diferente daquilo, e sincero que era, provavelmente nem queria.
Conheci, depois, muitas pessoas tão desagradáveis quanto o César. Mas nenhuma tão sincera, e nem tão autêntica.
... Ainda bem...
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário