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segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

As Coisas Que Perdemos


Estavam os dois esbaforidos andando pela orla do Guaíba. Eram dez e meia, quinze pras onze da manhã de um domingo tão abafado que parecia que havia uma fornalha de proporções gargantuanas encostada em Porto Alegre.
Ela estava suada, claro. Tinha um "V" de suor manchando a regata cinza que vestia, e a munhequeira de tenista que usava no pulso esquerdo estava molhaada de tanto ela secar o suor do rosto durante o trajeto de cerca de três quilômetros que haviam corrido das imediações da Usina do Gasômetro até o estádio Beira-Rio.
Ela estava suada, ele, estava se liquefazendo.
Sempre suara em profusão, de escorrer suor pelos braços, pernas e rosto, de ficar com camisetas ensopadas como se houvera passado por baixo do chuveiro com elas, e ali, era como estava.
Sua camiseta cinza de Star Wars: O Império Contra-Ataca estava quase preta de tão molhada, e se colava em seu corpo desconfortavelmente. As mangas estavam razoavelmente secas, e era ali que ele secava o suor que brotava em abundância de sua testa.
Ela riu ao ver o malabarismo que ele fazia para secar a testa com as mangas curtas e justas da camiseta, e usou a própria munhequeira para secar-lhe o rosto.
Ele agradeceu, algo constrangido.
Ela percebeu seu constrangimento tirou a munhequeira e lhe ofereceu para que ele mesmo secasse o rosto, e fez sinal para que ele ficasse com ela quando tentou devolvê-la.
-Não... Tu continua suando. Agora que a gente tá caminhando eu não vou mais precisar. - Disse.
Voltariam caminhando até o Gasômetro, um caminho que, de repente, parecia extremamente longínquo.
Ele suspirou enquanto colocava a munhequeira no próprio pulso.
-Que foi? - Ela quis saber. -Cansou?
-sim. - Ele respondeu. -Muito.
Ela sorriu.
-Eu imagino. Te arranquei de casa às nove e meia da madrugada pra correr comigo...
-Num domingo! - Ele frisou.
-Carpe diem só de segunda a sábado? - Ela provocou.
-Eu aproveito o domingo. Eu durmo, como, jogo videogame, assisto TV... Hoje mesmo minha agenda incluía dormir até uma da tarde, tomar banho, almoçar, jogar The Witcher 3 e depois fazer uma sessão dupla de Guardiões da Galáxia no Telecine. - Listou.
-Tu ainda pode fazer tudo isso! Protestou ela. -E mais coisas. Não são nem onze horas...
Ele fez uma careta de desgosto.
-Nem onze horas e eu tô na rua, no domingo... Francamente...
Ela riu.
-Tu vai virar um velho muito resmungão...
Ele ficou em silêncio. Andaram mais alguns metros, passando por ciclistas, corredores e caminhantes eventuais.
Ela perguntou:
-Que foi? - Parecia preocupada em tê-lo ofendido. Era uma preocupação que ela parecia ter com alguma frequência, mas a verdade é que quase nunca acontecia. E essa não era uma ocasião diferente. Ele não estava ofendido.
Tentou sorrir pra esclarecer, mas foi um sorriso vago:
-Nada... Eu só... Não tem importância. - Ele tentou despistar.
Não deu. Ela encasquetava com as coisas.
-Fala, criatura...
Ele deu de ombros, fazendo sinal que não importava, mas ela seguiu:
-Por favor... Fala. Senão... Olha, tu me conhece. Eu vou ficar toda desconfiada...
Ele a conhecia. Ela ia ficar toda desconfiada.
Respirou fundo...
-Não é nada de grave, é só que... Olha... A verdade - Disse ele. -É que eu percebi que estou envelhecendo, sabe?
-Por causa do que eu disse? - Ela quis saber, francamente preocupada.
-Não... Não. Já tinha percebido antes. - Ele a tranquilizou.
-Que foi? Encontrou um pentelho branco? - Ela perguntou, rindo.
Ele riu de volta:
-Não. Quisera eu que fosse alguma coisa assim... Física. Dor nas costas, cansaço... Até essa dor no meu cotovelo esquerdo que não quer passar... Mas não. Não é nada assim. Nada que minha carcaça cansada esteja me dizendo. É um recado muito mais... - Ele percebeu que ela o estava olhando, e resolveu mudar o rumo da prosa:
-Enfim... Deixa pra lá.
Ela olhou pra ele, perguntando em silêncio. Ele suspirou e respondeu:
-A vida começou a tirar coisas de mim. Muitas... Nos últimos anos eu só tenho perdido. - Disse.
E continuou:
-Acho que esse é o momento em que a gente começa a envelhecer, sabe? Quando a vida passa a tomar de volta as coisas que tinha te dado... E é o que eu estou vendo, agora. A vida está me tirando as coisas.
Passou a munhequeira dela na testa, que gotejava suor:
-Nos dias entre o natal e o ano-novo eu fui acometido por essa melancolia, sabe? Essa sensação de... Sei lá. Foi estranho. Porque, ainda que eu realmente não ligue pro ano-novo, eu adoro o natal. Mas eu estava... Não sei. Estava meio anestesiado pra coisa toda. - Disse ele, parando pra ajeitar as meias.
Ela estava parada ao lado dele, Com os braços finos pendurados ao longo do corpo.
Ele se endireitou e continuaram caminhando. Ele retomou:
-E no sábado antes da véspera, eu tava na rua, e começou a chover e eu percebi que, não fazia muito tempo, eu tinha vivido outro natal em um final de semana, onde eu tinha saído do trabalho, e dado um beijo na minha avó paterna. Depois fui pra casa, saí com o meu cachorro, e à noite, minha avó materna passou o natal na casa dos meus pais com o resto da família. E eu me flagrei pensando nisso... Em quanto tempo fazia... Em como as coisas tinham mudado...
Ele olhou pra ela. Seus olhos não estavam marejados, mas estavam úmidos:
-E... Sabe...? Não foi outra vida, alemoa. Foi essa. Não foi quando eu era criança. Quando eu era adolescente. Foi há pouco. Em menos de cinco, seis anos, olha tudo o que ficou pra trás...
Ele respirou fundo.
Ela não disse nada. Continuava caminhando ao seu lado.
-E eu sei lá... - Ele disse. -Eu me vejo, ás vezes, de noite, sozinho no escuro... Vagando pelo apartamento. E eu percebo isso. Que, daqui pra frente, eu vou perder muito mais do que ganhar. E que é assim que a vida funciona. É assim que as coisas são. Não dá pra mudar o curso da natureza. Eu vou perder pessoas que eu amo. Depois vou perder minha força e minha vitalidade... E com o tempo vou perder minha cabeça. E por fim vou perder minha vida, e provavelmente nem vai fazer diferença porque, então, ela vai ser só uma lembrança vaga, mesmo.
Ela estava andando de cabeça baixa do lado dele. Eles mantinham um passo acelerado, decidido. Mas estavam ambos silenciosos.
Foi ela quem falou:
-Se tu não queria sair pra caminhar de manhã podia só ter me dito, e não arruinado meu domingo com essa conversa deprimente.
Os dois riram e seguiram caminhando e conversando. Eventualmente chegaram até o gasômetro, de onde caminharam mais devagar até a casa dela. Lá, já perto do meio-dia, se despediram com um abraço suado. Antes que ele tomasse o rumo da Marechal Floriano, ela o chamou:
-Ned...
Ele se virou e ela estava com as costas coladas na porta aberta, o olhando:
-Tu sabe que, algumas coisas, tu nunca vai perder, não é? - E sorriu.
Ele sorriu de volta.
Não tinha certeza se era assim que as coisas de fato funcionavam. Mas aquela perspectiva talvez fosse deixar seu coração um pouco mais leve ao longo dos dias vindouros.

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