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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
O carnaval do Amadeu
O som de bumbos, tambores e tamborins enchia a cabeça de Amadeu. Entrava por seus ouvidos e reverberava dentro de sua caixa craniana ecoando e fazendo sua cabeça latejar.
Pior era quando os gritos se misturavam e invadiam os pensamentos de Amadeu junto com aquela música.
Ele tentou erguer os olhos mas eles se recusaram a abrir. Ele pensou consigo mesmo que aquele baile de carnaval não estava sendo o que ele esperava.
Amadeu não era afeito ao carnaval enquanto festa do samba. Amadeu não gostava de samba, Amadeu, à bem da verdade, não era um grande fã de música de modo geral. Ele preferia o silêncio. Entretanto, o carnaval tinha um elemento que agradava muito ao Amadeu, um elemento que fazia com que o carnaval fosse a época do ano preferida para ele:
Sexo.
Era incrível, Amadeu pensava, como aqueles dias e aquela música tornavam as mulheres tão fáceis.
Ele achava fabuloso.
Amadeu não era um sujeito de grande lábia, não era bonito, nem tampouco charmoso. Amadeu era a figura da mediocridade. E tinha uma consciência bastante realista disso. Durante o ano inteiro ele tinha um radar ajustado, e andava com mulheres que eram, como ele, pessoas de aparência média, ou até menos. Era uma escolha consciente e calculada. Ele sabia quando uma mulher era areia demais para o seu caminhãozinho, e evitava essas mulheres poupando-se de eventuais foras desnecessários.
No carnaval, porém, ah, no carnaval era tudo diferente, no carnaval as mulheres estavam inebriadas, se não com álcool, com a própria atmosfera sensual do carnaval, com a promessa quase palpável de que os pecados ali cometidos seriam esquecidos ou perdoados, de que as falhas, as pequenas incontinências, as pequenas traições cometidas naqueles três dias de samba suor e cerveja seriam ali esquecidos e jamais lembrados exceto, talvez anos mais tarde quando, por alguma razão, houvesse uma oportunidade pra lembrar daquele verão e alguém diria "Lembra daquele carnaval?" e tudo, ou quase tudo dependendo do estrago que o álcool ingerido houvesse feito àqueles neurônios, voltaria à mente como uma lembrança distante e sem importância, era como se o carnaval fosse uma zona neutra onde havia um passe entregue a todos para que agissem de maneiras totalmente opostas aos seus instintos e crenças comuns.
E Amadeu sabia, e Amadeu usava isso com maestria.
Ele, naqueles dias da festa de Momo, se lavava em corpos lisos e perfeitos, perfumados de suor de dança e música ruim, desprovidos de culpa ou senso crítico.
Amadeu aproveitava o que a sociedade e a mídia vendiam às pessoas, em especial a pós-adolescentes interessadas em festejar como se não houvesse amanhã. No carnaval Amadeu estava feliz no seu ambiente. Mesmo não gostando da música, mesmo sendo um dançarino, no mínimo, ruim, mesmo com sua aparência nada além de mediana, Amadeu era o mestre do Carnaval, ou, pelo menos, assim se sentia.
E tinha razões para tanto.
Perdera as contas de quantas vezes desfrutara prazeres de alcova com mulheres belas que veria tão distantes quanto o Santo Graal em qualquer outro dia do ano, e tudo por que era, afinal de contas, carnaval.
Amadeu ás vezes, se sentia culpado pela própria habilidade, em especial quando acordava ao lado de uma jovem muito bonita e constrangida que só não havia ido embora por que ainda não encontrara toda a roupa, e o olhava com alguma reserva como se estivesse perguntando a si mesma se, de fato, fizera o que parecia que fizera. Mas essa culpa durava pouco.
Amadeu sabia que logo, logo ela estaria de volta à sua rotina, à faculdade, aos pais, ou algo que o valha, e ele seria apenas um eco pálido de um feriadão anos atrás, um fantasma de um carnaval passado, e pra ele estava tudo bem, ele tinha o que fora buscar, e, afinal de contas, os pecados do carnaval eram perdoados.
Com a aproximação de fevereiro Amadeu já começava a traçar seus planos, as festas e os bailes que frequentaria em cada um dos dias, se iria para o interior, se iria para a praia ou se ficaria na capital, ele tinha tudo calculado com, pelo menos, duas semanas de antecedência, era, afinal, a época, como o próprio chamava, de "tirar a barriga da miséria".
E ali estava Amadeu, no meio do baile, confetes, serpentinas, música alta, mulheres em trajes sumários de um lado e outro, casais dançando de maneira provocante e ele ali, olhando ao redor, procurando a mulher que seria nada senão perfeita. Amadeu procurava com olhos de lince pela mulher inacessível que, alcoolizada e no espírito de carnaval, se tornaria acessível, ele vasculhava o salão onde se aglomeravam, pelo menos, mil pessoas, quiçá mais, belas mulheres passavam por ele enquanto ele andava com pés macios, quase como um grande felino, esquadrinhando todas as mulheres que entravam em seu raio de visão, Amadeu sentia seus corpos deslizando de encontro ao dele enquanto andava, algumas, lânguidas, lançavam-lhe olhares sensuais fingindo reprovação, eram quase quatro e meia da manhã, o momento crítico, as meninas já estavam bêbadas o bastante, soltas o bastante, as que não ficaram até aquele ponto não ficariam mais, haviam moças que chegavam a enlaçar o pescoço de Amadeu com os braços alvos, mas ele não queria uma mulher que o enlaçasse com o braço, parte da graça da forma de Amadeu encontrar parceiras nos bailes de carnaval era, justamente, conquistar mulheres inconquistáveis, elas deveriam ser lindas, perfeitas, perfeita como a morena escultural que dançava com os braços parcialmente dobrados à frente do belo rosto e hipnotizou Amadeu com o movimento de seus quadris generosos.
Não só dos quadris, o corpo inteiro dela dançava, ela jogava os cabelos longos para cima em pequenos saltos, os olhos semi cerrados, os lábios entreabertos, suada, a blusa de lurex colada ao corpo, a calça jeans preta tentando inutilmente tolher os movimentos das coxas musculosas, os pés delicados avermelhados dentro das sandálias transparentes no movimento frenético ao ritmo daquela música quase primitiva.
"É ela."
Foi o que pensou Amadeu.
Aquela mulher era a perfeição que Amadeu almejara desde o primeiro baile, desde que a compreensão do que significava o carnaval para aqueles que, como ele eram práticos e tinham a clareza necessária, aquela mulher eras tudo o que ele queria do carnaval.
Amadeu se aproximou por trás dela sorrateiramente e, num movimento audacioso, enlaçou-a pela cintura enquanto a virava de frente para si. Ele olhou para ele por uma fração de segundo, como se medindo-o.
Amadeu sorriu satisfeito, se ela estava medindo ele, certamente não o achara demasiado repelente, estava no papo, a felicidade tomou conta de Amadeu. Ele anteviu as proezas eróticas que realizaria com aquela bela e incauta morena. Se inclinou para a frente, visando os lábios cobertos de brilho da moça. Antes, porém, que os seus lábios encontrassem os dela, Amadeu sentiu um cutucão no ombro, seguido de uma pergunta:
-Tu perdeu a noção do perigo, velho?
Ao se virar, Amadeu quase não teve tempo de ver os contornos do homenzarrão que se avolumava à sua frente, um golpe violento e certeiro atingiu-o no olho.
Amadeu quase caiu, mas se chocou com outros foliões atrás de si, o que o manteve de pé. Outro golpe atingiu Amadeu, no outro olho. As pessoas atrás dele gritaram e o mundo girou.
É quando chegamos ao ponto lá do início:
Ele tentou erguer os olhos mas eles se recusaram a abrir. Ele pensou consigo mesmo que aquele baile de carnaval não estava sendo o que ele esperava.
Amadeu tentou erguer os braços pra proteger a cabeça, porém, foi atingido novamente, nas costelas e na barriga. Um chute violento no joelho o derrubou no chão feito um saco de batatas, e mais dois chutes, um nas costas e outro na cabeça o mergulharam em um torpor doloroso do qual ele só despertaria horas mais tarde, no hospital.
Duas costelas fraturadas, além de uma concussão foi o saldo daquela noite. O restante daquele carnaval seria de dor e leito para Amadeu. No tempo em que ficou deitado, em que até se virar na cama doía, Amadeu se pegou amargo. Ele se pegou odiando a própria burrice. A própria impulsividade, por que não ficara um pouco mais de tempo observando a moça. Por que agira como um adolescente idiota e ansioso? Era responsável pelo próprio infortúnio.
Bem, ele e o bruto que lhe arrebentara, ainda que, na medida do possível, não guardasse mágoas do sujeito. Punha-se em seu lugar e percebera que a reação dele havia sido plenamente justificada.
Enfim. Amadeu concluiu que o que houvera causado sua ruína fora o carnaval.
Sim, o carnaval.
Na mesma medida em que a festa de Momo tornava as mulheres mais desfrutáveis, mais soltas e inconsequentes, ela também o tornara um quase tarado. Um viciado em sexo imparável até, ou concluir o coito, ou ser violentamente surrado.
Eram aqueles tambores primevos. Era aquela atmosfera quase palpável de sensualidade, a promessa de sexo que escorria pelos corpos das mulheres junto com o suor. Sim, foi aquilo. O carnaval causara todos os problemas dele.
Amadeu viraria cento e oitenta graus em suas crenças e preferências. Agora detestaria o carnaval. Teria alergia a tambores, teria pânico de tamborins, atravessaria a rua se visse uma mulher deliciosa em trajes sumários repleta de purpurina na pele suada enquanto arrastava os pés ao som de samba. Assim, pensava ele, se pouparia de infortúnios semelhantes.
Amadeu passou o domingo inteiro amaldiçoando o carnaval e trocando o canal da TV do quarto do hospital enquanto as redes mostravam a festa por todo o Brasil. Foi na madrugada de domingo pra segunda que ela chegou. Uma moça loura, bonita e atraente. Vestia uma camiseta regata branca justa e um short jeans quase pornográfico. Sua perna esquerda estava engessada até a altura do joelho.
Quebrada. Foi no carnaval de rua, ela contou. Uma briga causara alvoroço e correria, ela caiu e acabou pisoteada.
Chamava-se Thaís. Adorava carnaval, não pudera viajar porque trabalharia na segunda-feira à tarde, agora, embora perdesse o final da festa, ganhara a segunda-feira de folga forçada. Sorriu para Amadeu, que sorriu de volta.
Antes que raiasse o dia eles haviam praticado um sexo delicioso, entrecortado de gemidos de dor e de prazer.
No dia seguinte ela foi embora, o convidou para jantar na noite de terça, podiam ver os desfiles pela TV e comer uma pizza. Amadeu precisou negar, ficaria mais um dia em observação devido á concussão, mas pegou o número de Thaís.
Imaginando como seria a noite de terça com uma bela mulher parcialmente imobilizada amaldiçoou a própria sorte. Entretanto,repensou sua posição a respeito do Carnaval.
Continuava não gostando de samba, nem vendo nenhuma importância na celebração desse ritmo.
Mas voltara, rapidamente, a gostar da festa.
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