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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
Salto
Não tem mistério - Ele pensou. -É só pular. Eu pulo e caio na água, afundo um pouco, claro, vou estar caindo, mas aí, o meu colete, que flutua, vai me puxar de volta á tona. Não tem mistério.
Ele pensou isso, mas continuou parado, com seus calções floreados, a camiseta justa na barriga flácida sob o colete salva-vidas laranja e verde-limão, encarando o rio com cara de quem não tinha lá muita certeza do que iria acontecer á seguir. Atrás dele o instrutor repetia o que ele havia acabado de dizer, em pensamento, á si mesmo.
-Aí tu vai afundar um pouco, é água, mas teu colete vai te puxar de volta pra superfície. Não tem mistério.
Ele virou parcialmente o rosto, sorriu amarelo pro instrutor e deu um passo pra trás, parecia que estava tomando impulso pra pular, mas estacou hesitando de novo. Na água seus amigos gritavam "Vem Castor, pula logo, rapaz.".
Castor. Era o seu apelido desde que ele era capaz de lembrar. Era uma combinação de bochechas generosas, lábio superior curto e dentes avantajados. Castor. Ele não ligava, na verdade até achava bacana ter apelido. Se chamava Cauby. Cauby Peixotto. Pois é. Explica-se aí por que ele gostava de ser chamado de Castor, passara por maus bocados na escola por conta desse nome. Sua mãe, dona Etelvina, era uma fã ardorosa e dedicada de Cauby Peixoto. Adorava o cantor, adorava os cabelos encaracolados e a voz dele, pra ela Roberto Carlos era um usurpador, o rei era o Cauby... Na verdade, Castor achava que sua mãe casara-se com seu pai apenas por ele ter o sobrenome Peixotto, o que lhe oportunizaria batizar seu rebento praticamente como um homônimo de seu grande ídolo.
A irmã mais velha do Castor se chamava Conceição. Outra homenagem velada ao ídolo de dona Etelvina. Mas Conceição não vivia no morro á sonhar com coisas que o mundo não tinha, Conceição era uma moça proativa, cheia de determinação e de ideais, saíra de casa bem antes de Castor para perseguir seus sonhos, tudo contra a vontade de dona Etelvina, que queria que a filha fosse uma moça mais recatada, mais prendada, que casasse e tivesse filhos com um homem de posição... Mas Conceição tinha seus planos, estudou medicina contra a vontade da mãe, uniu-se aos médicins sans frontiére, viajou pelo mundo e só parou depois de três anos em trânsito. Acabou morando em Brasília, e não se casou, morava com uma pessoa. Lúcia, sua namorada. Para desgosto de dona Etelvina Conceição era lésbica, algo que ela jamais poderia conceber. Castor não sabia como se sentia á respeito da irmã. Achava, na maior parte do tempo, que estava feliz por ela, mas ás vezes tinha dúvidas.
Esse sempre fora um problema da dona Etelvina, ela projetava os próprios desejos e vontades nos filhos. Conceição deveria casar com um homem de posição, isso se dava, talvez, por que a própria se casara com um homem de hábitos e pretensões simples. Oswaldo Peixotto era um homem sem grandes atrativos, era bem apessoado na juventude, e era honesto, essa honestidade, na verdade, poderia ser apenas um reflexo de sua falta de ambição, de sua falta de ânimo para tentar melhorar. Trabalhou a vida inteira no mesmo emprego, jamais recebeu nenhuma promoção que não fosse diretamente ligada á tempo de serviço, e, aparentemente, isso jamais o incomodou. Essa letargia, além do lábio superior curto e do sobrenome, Castor herdou do pai, ele sabia disso, mas não ficava bravo, assumia essa responsabilidade, e amava o pai, apesar de não demonstrar nunca.
Para desgosto de dona Etelvina, que certamente preferiria que seu filho fosse um grande homem, se não um artista, como seu homônimo famoso, um advogado, ou, quem sabe, um médico. O que Conceição acabou se tornando, embora não fosse bem do modo que dona Etelvina tivesse em mente, um consultório, um carro do ano, casa na cidade e de veraneio... Conceição vivia de aluguel, se mudava com frequência, e viajava mais pra África do que a maioria das pessoas viaja pro litoral norte.
De qualquer forma, Castor não se tornou médico, nem advogado, nada que lhe garantisse um "Doutor" antes do nome, Castor virou técnico em informática, emprego sem glamour e que dona Etelvina, francamente, nem sequer entendia ou achava minimamente relevante. E Castor, meio á contragosto, concordava com ela.
Castor não se tornou técnico em informática por que gostava de computadores, mas por que foi um curso fácil e que ele podia fazer perto de casa, além disso, abriria um leque interessante de oportunidade de emprego e estabilidade. Castor imaginou que em um mundo inundado de computadores por todos os lados, ele teria mais facilidade para encontrar um emprego se soubesse lidar com computadores. E foi o que fez. Não que fosse o que ele queria fazer. Castor queria mesmo era ser piloto de avião. Mas nem mesmo prestou serviço militar, na época do alistamento, chegou á pensar em surpreender a mãe e o pai e viajar até Canoas para tentar se juntar a FAB, mas acabou com preguiça, com receio de tomar aquela decisão, era mais cômodo ficar perto de casa, e se alistou no Exército, mesmo. Nos testes agiu com a sua modorrice habitual, o que garantiu sua dispensa. Ás vezes ele imaginava se a experiência do quartel não teria enriquecido sua vida de alguma forma, achava que sim, mas evitava pensar nisso. Evitava pensar em muitas coisas. Evitava pensar em Alícia, sua ex-namorada.
Fora ela quem primeiro notara a semelhança de Cauby com o roedor e o apelidara de Castor, o que começara como uma amizade divertida se tornou, com o tempo, um amor companheiro. Alícia amava Cauby, ele correspondia, era devotado, a amava muito á sua própria maneira. Não era um apaixonado dado á arroubos, a amava de forma silenciosa e contrita, com beijos e toques quase acidentais. Era seu modo. Ela não parecia se importar, durante três anos eles permaneceram juntos, e ele visualizava um futuro ao lado de Alícia, imaginava como seria ter filhos com ela. Filhos que tivessem de Alícia os cabelos louros, os olhos castanho-claros, o nariz bem construído, e dele... Bom, Castor ficava feliz que eles tivessem apenas seu sobrenome.
Mas Alícia conseguiu uma bolsa de estudos para fazer mestrado na Alemanha. E deu um ultimato á Castor. O amava, mas não iria desperdiçar aquela oportunidade. Queria que ele fosse com ela para a Alemanha. Ficariam juntos lá, talvez passassem por apertos, talvez sofressem dificuldades no início, mas teriam um ao outro, superariam e poderiam, quem sabe, até construir uma vida juntos, lá.
Mas Cauby refugou. Teve medo. Não sabia se queria passar por apertos e necessidades em um país estranho. Despediu-se de Alícia quatro dias antes de ela embarcar para Hannover. Ela chorava muito, deu um adeus entre soluços pra ele, que não disse nada. Castor não gostava de demonstrar emoções, pra ser franco, não tinha certeza se podia, se as sentia de maneira correta.
Ás vezes acordava de noite pensando em Alícia, mas ela foi se tornando uma imagem mais e mais pálida, e hoje ele não tinha nem certeza se ela era tão fantástica quanto ele se lembrava.
Quando visitava sua mãe, ela lhe dizia com frequência que se Alícia o havia abandonado, era por que não o amava o suficiente, que ela desfizera do amor que ele havia dedicado á ela e fora se aventurar "nas Europa", era a maneira de Etelvina proteger seu filho, fazendo pouco de quem o magoava. Castor não concordava. Castor não concordava com quase nada que a mãe fazia, mas no fundo acreditava que a amava, também. Á despeito do nome e tudo mais. Então ele não retrucava, na verdade, ás vezes tinha ânsias de concordar com ela. Adoraria que fosse verdade. Seria mais fácil de conviver com o rompimento se fosse daquele jeito. Mas Castor sabia que não era. Ele sabia que todas as mazelas de sua vida estavam ligadas á sua letargia, á sua falta de ânimo, á sua covardia na hora de dar um passo á frente ou de saltar.
Agora, ali estava ele encarando o lago, seus amigos o chamavam, o instrutor o incentivava, mas ele estava com medo.
Encarou o lago e respirou fundo:
-É agora ou nunca...
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