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quarta-feira, 31 de março de 2010

Inconveniente


Ela chegou de mansinho, como quem não queria nada. Deixei-a entrar por que sou um tolo, ou talvez por que ela não tenha me dado nenhuma outra opção. Chegou acompanhando quem eu, de fato, convidara.
Não lhe neguei passagem, nunca houve, afinal, nenhuma espécie de garantia de que ela pediria minha permissão antes de chegar. Não é do feitio dela.
Deixei que entrasse, que desarrumasse as minhas coisas, que afetasse meu dia á dia, que me dissesse que filmes assistir, que músicas ouvir, que livros ler, deixei que atrapalhasse minha vida interferindo em meus horários, em meus relacionamentos, que ficasse me apontando os defeitos dos outros, e como eram, todos, tão diferentes do meu ideal.
E ela o fez, fez por que é da natureza dela, fez por que eu deixei, por que, em algum momento da vida, dei à ela a liberdade para fazer isso sempre que surgisse uma oportunidade. Ela me deixou de olhos marejados como fizera tantas outras vezes, me fez cantarolar músicas bregas de dez anos atrás ou até mais, deu significados inéditos, nenhum particularmente confortador, á trechos de filmes que vi mil vezes. Ela fez, ela fez e seguiu fazendo.
É o que ela sempre faz, diga-se de passagem. Meu erro, se é que se pode chamar assim, foi não atentar á isso antes, foi não perceber que, depois que eu a vislumbrei pela primeira vez, ela não largaria nunca mais do meu pé, como a Glen Close em Atração Fatal, e, á despeito de ela jamais cozinhar o coelho de ninguém, eu não posso simplesmente afogá-la na banheira, quisera eu fosse fácil assim.
Depois que nos conhecemos, toda a vez que eu convido a colega dela, de quem eu gosto, que coloca um sorriso no meu rosto e me faz assobiar enquanto caminho até a Beira-Rio pra dar uma corridinha, que me faz improvisar um moicano de xampu enquanto cantarolo embaixo do chuveiro, nessas ocasiões, não tarda, e ela aparece.
A amiga, de quem eu tanto gosto, se chama lembrança, e a colega inconveniente dela, se chama saudade.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Modéstia


Ela estava sozinha, escorada junto ao balcão da danceteria. Bonita, jovem, cabelos castanho-avermelhados compridos, presos em um generoso rabo de cavalo fixado no alto da parte de trás da cabeça, os cachos abertos, algo caídos por causa do suor, a nuca á mostra... Ah, a nuca... Talvez tenha sido a nuca. Não que o resto não fosse bom, o resto era muito bom. O corpo firme, não era dessas anoréxicas que mal tem peito e parece que esqueceram a bunda em casa, não, ela era quase como aquelas aves natalinas, no bom sentido, claro, mais coxa, mais peito... Tudo muito suculento enfiado dentro de uma calça azul marinho brilhante e de uma blusa de lurex prateada de frente única.
Ela mexia os ombros ao ritmo da música, e mexia os pés de forma intercalada, o que fazia seus quadris dançarem suavemente de maneira quase hipnótica, e um sulco surgir na parte externa de sua coxa, e que tremenda coxa.
Ela tinha feições bastante distintas, um rosto forte, de traços marcantes, o nariz, os lábios, os olhos, encantadores, de uma castanho-melado... Linda, linda, linda. Mas haviam outras bela mulheres lá, por isso ele acreditava, de fato, que houvesse sido fisgado afinal de contas, pela nuca á mostra.
A nuca, tão alva, com alguns fios mais curtos do cabelo avermelhado teimando em se grudarem na pele vagamente úmida de suor... Não pôde resistir. Quando deitou os olhos sobre ela, era a única mulher que estava no salão. Era a única mulher do bairro, da cidade, quiçá do mundo! Exceto se a Nana Gouvêia surgisse, mas essa era uma hipótese pouco factível.
De qualquer modo, ele a viu. Ele, no caso, era o Norberto.
Norberto já havia cruzado o cabo da boa esperança, também no bom sentido, é claro. Tinha cinquenta e um anos. Norberto se divorciara á pouco, contra a sua vontade, que fique bem claro. Se dependesse apenas dele, ele ainda estaria casado com Clarice, independente do pesadelo que aquele matrimônio se tornara para o casal. O Norberto estava, bem ou mal, satisfeito, era dessas pessoas de desejos simples que confundem marasmo com segurança, ou talvez saibam a diferença e nem ligam. O fato é que Norberto estava feliz trabalhando das nove ás cinco, morando em uma casa de três dormitórios só com a esposa, indo deitar ás onze e meia, passando férias em Cidreira e guardando um dinheirinho todo o mês pra comprar uma TV de 42 polegadas no final do ano. Ele estava, era um homem modesto, de ambições modestas, era um homem de certa idade, ora, bolas, era de um tempo em que as mulheres estavam satisfeitas com homens que fossem bons provedores, que ajudassem na criação dos filhos com um "Obedece a tua mãe e tá acabada a história.", e que não fossem "putanheiros" como dizia a sua mãe.
O problema foi que a Clarice, depois que o Fabrício e a Norminha saíram de casa, ficou com muito tempo livre. Norberto trabalhava quase o dia todo, sem os filhos em casa, ela terminava cedo as tarefas do lar e dizia-se entediada. Norberto culpava-se por ter dito "Arruma alguma atividade, então, nêga.", "Alguma coisa pra te distrair.".
Bom, foi o que a Clarice fez. Começou com grupos de leitura, depois grupos de caminhada, então surgiram a academia e, por fim, o trabalho voluntário. Ao redor de tudo isso orbitaram temporadas inteiras de Sex and the City, e Lipstick Jungle, filmes da Sofia Copolla e livros da Martha Medeiros, uma cirurgia plástica, dois finais de semana em um spa, e, de repente, lá estava Clarice, vestindo uma minissaia, dizendo á Norberto, no meio da sala, que precisava de espaço, que casara cedo demais e não aproveitara a vida como gostaria, poderia e deveria.
Queria o divórcio.
Ela fez ouvidos moucos ás súplicas de Norberto para que pensasse nas crianças, que pensasse em tudo que eles haviam partilhado, que pensasse, que droga, nas convenções sociais.
Ela não ouviu.
Ele dizer que, á despeito da plástica, ela continuava sendo velha, só que com a pele espichada pra baixo do queixo, não ajudou em nada. Na verdade ele tinha a impressão de que só complicara as coisas.
Norberto não teve opção. Cedeu a "carta de alforria", forma como Clarice saudou o documento assinado, á agora, ex-esposa.
E, subitamente, após quase trinta anos de casamento, Norberto se viu solteiro. Como era um homem modesto, de pretensões modestas, ele não demorou á se habituar á nova rotina. Na verdade, o período de auto descoberta de Clarice foi um laboratório pra vida de solteiro de Norberto, que se viu obrigado á aprender á fazer tarefas de casa novamente.
Ele saía do serviço, ia pro apartamento de um quarto que comprara perto do centro com sua parte do dinheiro da venda da casa, e limpava rapidamente. Preparava e comia alguma coisa simples, ás vezes comida pronta, e depois assistia TV até adormecer no sofá. Uma hora e meia depois de adormecer, ás vezes menos, acordava com uma dor medonha no corpo por pegar no sono todo torto no sofá, e então ia pra cama.
Um amigo próximo, Juvenal, esse sim um notório putanheiro, o aconselhou á aproveitar a liberdade. Disse que ele que era feliz, que devia aproveitar que era um adulto maduro, dono do próprio nariz de novo, e tirar o atraso. "Comer umas moças novas", nas palavras do amigo. Disse que Norberto certamente encontraria alguma nessas danceterias e bares que pipocavam na Cidade Baixa. Era uma forma de se manter ativo pra, sabe-se lá, o caso da Nana Gouvêia aparecer e querer testar as suas habilidades de amante.
Norberto, mais por tédio do que propriamente por interesse, resolveu tentar. Penteou bem os cabelos ralos e grisalhos, vestiu uma camisa preta, calças Lee (Pois é, Norberto era do tempo em que qualquer calça jeans era "calça Lee".), e um tênis, e foi pra noite.
Escolheu uma danceteria meio ao acaso. Primeiro observou a fila pra ter certeza de que não haveriam só crianças lá dentro. Chegou à conclusão de que apenas a imensa maioria era de crianças (Pros padrões do Norberto pessoas com idades abaixo de vinte e cinco, eram crianças e não tinha discussão.), mas também haviam alguns trintões e ele tinha certeza de que uma mulher na fila, uma gorda com blusa de oncinha, devia ter perto de quarenta.
E agora, ali estava ele. Mesmerizado pela Valquíria ruiva que se apoiava no balcão e dançava de maneira sutil ao som de uma música horrorosa que tocava tão alto que Norberto mal podia ouvir o que pensava.
Respirou fundo, alisou o cabelo com a palma da mão e caminhou resoluto até a moça.
Parou atrás dela, repetindo para si mesmo como um mantra que o sucesso só ama quem tenta.
Inclinou-se pra falar ao ouvido dela, sentiu o perfume suave que emanava de sua nuca, "putzgrila!" pensou. Então parou e pensou se ainda se dizia "putzgrila".
Recuou, chegar falando no ouvido dela não parecia um rumo de ação dos mais aceitáveis, não queria parecer um sem-vergonha. No tempo dele, pelo menos, não era de bom tom.
Tocou no ombro dela.
Ela virou, o olhou por um instante e abriu um sorriso, pareceu surpresa ao ver um senhor de cabelos grisalhos e bigode.
Ele perguntou polidamente, aumentando o tom da própria voz conforme percebia que não era audível, se podia olhar o cardápio com ela.
Ela sorriu e disse que sim, claro. Ele se perfilou ao lado dela no balcão, e ficou pensando no que faria á seguir conforme percebia que tirando cerveja, ele não conhecia o nome de nenhuma bebiba naquela carta. "Sex on The Beach", "Lagoa Azul", "Vezúvio"... Que fim levara o Kir Royal e a Cuba Libre?
Parou um segundo e mirou a jovem ao seu lado. Linda. Norberto gostaria de ser vinte anos mais novo pra ter um romance com ela. Não que fosse dispensar uma eventual noite de sexo casual com uma bela mulher, mas Norberto acostumara-se á gostar de alguém, á estar com alguém, se importar com alguém, e se a Clarice não tivesse começado á agir feito uma velha louca, ele ainda estaria casado com ela, e, com mil demônios, estaria feliz, afinal de contas, a amava. A vaca.
Fora vista pelo Juvenal jantando com outros dois casais, estava acompanhada de um homem de "uns quarenta anos", conforme Juvenal relatara. Ela que nunca queria fazer nada com ele, nenhum programa por que não queria deixar as crianças sozinhas, por que não suportava os amigos dele, agora fazia programas de casalzinho.
Que as plásticas dela estourassem durante o sexo com o tal do quarentão. Aquela vaca.
Respirou fundo, decidira levar a aventura sexual adiante. Tinha um Viagra em casa, dado pelo Juvenal, para o caso de as coisas se tornassem um desastre. Perguntaria o nome dela, faria um comentário á respeito, elogiaria os olhos dela, emendaria uma conversa sobre atualidades, e então daria o bote, algo como:
"-Ah, é? Fulana? Mas que nome lindo. Lindo como teus olhos. Tu sabias que é o nome de uma deusa grega? Aliás, visse os tumultos na Grécia? Coisa feia... Não me lembro o que ela, a Deusa que tem o mesmo nome que tu, representa. Tenho um livro á respeito em casa. Vamos lá pesquisar e descobrir?".
Sim... Passaria a mão nas costas nuas dela, arrancando-lhe suspiros, talvez um gemido leve... Por quê, não?
Abriu a boca para iniciar seu flerte, mas ela foi mais rápida:
-O senhor quer que eu leia?
Mais tarde naquela noite, Norberto riu. Mas na hora ele sentiu uma parte de si morrer. Chegou á pensar que choraria, ele que não chorava desde que o Inter fora campeão Brasileiro Invicto em 1979, tamanho foi o nó na sua garganta na hora em que a menina perguntou se ele precisava de ajuda pra ler o cardápio.
Fizera um papel de velho ridículo, morrera de vergonha. Saiu correndo sem dizer nada inteligível em resposta, e se apoiara na parede pra respirar e se recuperar do vexame.
Agora, sentado no rpóprio quarto, sorria. Levantou da cama sem fazer barulho, foi até o banheiro e constatou, com certo alívio, que o efeito do Viagra passara. Atendeu o chamado da natureza, e, voltando pro quarto, apanhou uma blusa de oncinha do chão. Sentou na cama e observou a mulher gorda ali deitada, ressonando alto, quase roncando.
Norberto certamente pediria o número dela, mas não ligaria. Queria apenas recuperar o amor-próprio. Antes de dormir imaginou se a ogra espalhada na cama prestaria-se á esse propósito, mas calculou que sim.
Era um homem modesto, de ambições modestas.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Menelau e o Diabo


Menelau acordou naquela madrugada com dor de cabeça. Era a terceira vez seguida que aquilo acontecia. Ás três da manhã, e Menelau, com a cabeça latejando como se fosse açoitada pela bateria da Imperadores do Samba, mantinha os olhos fechados por saber que abrí-los e se levantar não aliviaria sua violenta nevralgia.
Tentou respirar fundo, de forma compassada, olhos fechados e silêncio, apenas o som da própria respiração e os carros passando na rua abaixo. Inspirava e expirava, inspirava e expirava, inspirava e expirava, num ritmo cadenciado que foi, aos poucos, entrando no ritmo do latejar de sua cabeça. Tambores de selva.
Era isso que parecia. O som de tambores primitivos em uma selva escura com árvores centenárias de galhos retorcidos e folhagem densa por onde a luz não passa. Aquele pensamento opressivo fez a dor de cabeça de Menelau aumentar. Ele trancou a respiração por um segundo e apertou a cabeça entre as mãos. Só então ele se deu conta: Continuava ouvindo uma respiração compassada dentro do quarto.
Abriu os olhos num átimo, e distinguiu, sentado aos pés da cama, um homem.
Cabe dizer aqui, que Menelau morava sozinho, o que explica a reação apavorada dele.
Ele sentou, mirando o estranho sentado aos pés de sua cama, olhou para o telefone celular no criado-mudo ao lado da cama, mas o estranho falou, com uma voz macia e profunda, que encheu o quarto com um calor sufocante:
-Tu não vais precisar disso, Menelau. Tu não precisas chamar por ajuda. Eu estou aqui pra te ajudar.
Algo na voz daquele homem, á despeito do calor no quarto, gelou até a alma de Menelau. Ele encolheu as pernas e as abraçou. Mirando ainda o estranho, buscou fôlego para falar, mas antes que balbuciasse qualquer coisa, o estranho falou novamente:
-Quem tu achas que eu sou?
Menelau não fazia ideia, entretanto, começava á torcer para que fosse um ladrão. Com um ladrão saberia lidar. Aquelas recomendações que as autoridades fazem na TV em época de onda de assaltos, manter a calma, não reagir, falar o menos possível, entregar o que o meliante exigir... Tudo isso estava bem vívido na mente de Menelau, mas aquilo... Aquilo era diferente. Algo transcendental, sobrenatural, ou seja lá como pudesse ser rotulada. Menelau não gostava.
O homem perguntou de novo, sua voz firme e baixa, pouco mais que um sussurro:
-Quem tu achas que eu sou, Menelau?
-Eu não sei. -Balbuciou Menelau, horrorizado.
-Chuta. - Aconselhou o sujeito, casual.
-Um fantasma? -Sugeriu Menelau, com alguma esperança.
-Tu podes chutar melhor que isso, Menelau. Tu já chutaste melhor que isso. Lembra, na sexta-série? Na gincana de Ciências? Ninguém sabia, tinha passado e repassado, valia o dobro de pontos, e tu chutou. Chutou por que a História só ama aos vencedores. "Simetria Radial" tu disse, fingindo ter certeza, e quando a professora gritou que estava certo e teu grupo comemorou, tu lançou um sorriso superior pra Viviane, como se tu tivesse planejado aquela ação inteira.
Menelau sentiu seu sangue gelar. Mal lembrava daquela ocasião. Era verdade, ele chutara descaradamente, depois usou aquele pequeno triunfo para fazer charme pra Viviane, a moreninha que viera de Brasília com o irmão. Flertava muito com ela. Foi ali que ele conseguiu coragem pra finalmente dar um passo á frente e tascar uns beijos na Vivi.
-E foram bons, não foram? Aqueles beijos, eu digo. - O estranho falara novamente, arrancando Menelau de seu devaneio e o colocando novamente na realidade imediata e aterrorizante instalada em seu quarto.
-Não foram bons? Os beijos? - Insistiu o estranho.
-Foram. Foram muito bons. - Aquiesceu Menelau, incerto. Pensou, então, que não havia razão para a incerteza, os beijos de Viviane fora excelentes, ela beijava bem, na verdade, ela meio que ensinou Menelau á beijar, ele era um beijador menos que amador. Se não fosse por Viviane ele jamais teria feito o sucesso que fez mais tarde com-
-Andréia... A Andréia da farmácia. Outra beleza...
Fora o homem novamente. Era verdade, era o que Menelau diria á seguir. Andréia, filha do dono da farmácia era uma morena voluptuosa. Desenvolveu-se cedo, tinha um corpaço de mulher aos treze anos, os guris da sala e da escola inteira sonhavam com as curvas de Andréia. E Andréia, sabe Deus por que, dera bola á Menelau. Menelau que, à época, "ficava" com Viviane, e, sem nenhum peso na consciência, desmarcou o encontro com Vivi atrás do museu após a aula para se encontrar com a voluptuosa Andréia. E, naquele encontro quente com Andréia, quando ela elogiou os beijos de Menelau, ele sorriu, o mesmo sorriso pretencioso e malicioso que dera após chutar "simetria radial" na gincana de biologia, ou naquele tempo ainda era "ciências"? Bom, não importava, era um sorriso pro lado, pretencioso, malicioso, algo cínico, e foi o que Menelau lançou para Andréia antes de beijá-la novamente, e agarrar com firmeza a cintura dela, e depois de um beijo longo deu um beijo curto, apenas no lábio superior dela, exatamente como Viviane fizera nele nos dias que sucederam a gincana.
-Eu, particularmente, adorava o sorriso. Por que tu parasse com ele? - Inquiriu o interlocutor misterioso de Menelau.
-Sei lá... Acho que... Não tive muitas outras oportunidades. - Respondeu Menelau, que por um momento esqueceu a estranheza da situação e foi o mais honesto possível. Até por que, sendo bem franco, Menelau também sentia um pouco de falta daquele sorriso.
-Ah, oportunidades tu teve. Apenas não as aproveitou. - Disse o sujeito aos pés da cama, passando as costas da mão na camisa preta impecável que vestia. E prosseguiu:
-Por que tu não aproveitou, por exemplo, naquele trabalho da faculdade? Aquele sobre os ciganos. Geografia Humana, não era?
-Era... - Concordou Menelau, puxando pela memória. -Professor Pedro Rocha, que nem o jogador do São Paulo.
Menelau lembrava do trabalho. Povos sem pátria. Queria os Palestinos, que eram significativos e para o qual fontes de pesquisa eram praticamente inesgotáveis, no sorteio ele e seu grupo acabaram com os ciganos. Praticamente nenhuma literatura.
Como todos os membros de seu grupo trabalhavam á tarde, dividiram as tarefas, e juntariam tudo ao final do prazo dado pelo professor.
Antes, porém, de iniciar o trabalho, Menelau foi até o professor Pedro Rocha e comentou as dificuldades em encontrar fontes de pesquisa, o professor concordou, e deu-lhe um par de revistas antigas que continham algumas informações sobre o tema.
Menelau guardou-as para si, fez seu relatório um dia antes do prazo final de entrega e, durante a apresentação do trabalho, inventou e contou uma história sobre ciganos pouco amistosos que o teriam expulsado de uma acampamento nos arredores de Guaíba. Sucesso total, nota dez, parabenizações pessoais proferidas pelo professor. A únca apresentação á receber tal honraria.
Uma colega sua, Jaqueline, que passara as duas semanas do trabalho pesquisando na biblioteca e na internet e, após a apresentação recebera algumas críticas, olhou para Menelau com admiração e uma ponta de inveja. Era a chance perfeita para o seu sorriso, aquele sorriso algo superior, algo cínico e pretencioso.
-Mas tu não sorriste.
-Não... Não sorri. Bom, sorri.
-Sorriu um sorriso simpatético. Como quem se desculpa pelo próprio sucesso.
-Pois é... Eu sei... Sei lá. Me senti mal, sabe? Ela passou duas semanas pesquisando. Coitada da Jaque. Tava á beira de um ataque de nervos. Todo mundo tinha medo do Pedro Rocha. Ele era o professor que não dava dez pra ninguém, e tal.
-Tu tiraste o dez na prova do bimestre anterior. Era outra chance de dar aquele sorriso. Ainda mais depois de ter lutado pelo dez.
-Não foi bem luta... Eu recebi a prova com 9,5 e fui perguntar qual havia sido meu erro na questão do 0,5.
-E ele reconheceu que estava errado e te deu dez. Era outra chance de dar aquele sorriso. Por que tu não destes?
-Não me senti assim tão superior. Fui só oportunista.
-Chance que todos os outros tiveram e não usaram.
-Não, só eu tive. Ninguém mais tirou nove e meio.
-Mais uma razão pra dar o sorriso. E tu não destes.
-Pois é...
-Por quê?
-Não... Bom. Sei lá. Não queria fazer aquele papel... Do cara que se acha o maioral, sabe?
-Qual o problema em ser o maioral?
-Em ser o maioral? Nenhum. Mas se achar o maioral sem ser... Bom, isso é algo patético.
-Patético é se desculpar por ser bom em alguma coisa. Tu consegues imaginar um leão se envergonhando de ser um excelente caçador? Tu consegues imaginar ele se desculpando, ou lançando um olhar culpado e um sorriso simpatético pra mãe da zebrinha que ele acabou de abater?
-Na verdade quem caça, mesmo é a leoa.
-Filho da puta. Tem razão. É a leoa. Tu me pegasse. Cadê aquele sorriso?
-Ah... Não é pra tanto. Não foi... Não foi um grande momento. Não merece aquele sorriso.
-E o que mereceria aquele sorriso?
-Hein?
-O que mereceria aquele sorriso, Menelau? Que feito grandioso valeria aquele sorriso? Vários daqueles?
-Ah... Sei lá. Eu era um guri exibido na época daquele sorriso. Orgulhoso. Não era uma boa pessoa.
-Não era... Não era uma boa pessoa? Tu era bom em tudo o que tu fazia naquela época. Tu era capitão do time de futebol, no Vôley era o único que bloqueava as cortadas do Sílvio, todas as gurias da escola queriam dar pra ti! Tu tirava as melhores notas da tua turma, andava com um pessoal barra-pesada e nunca foi influenciado. Senhor do castelo, Menelau. A firmeza de um conde, de um fidalgo. E tu me diz que não era uma boa pessoa? Tu era excelente, Menelau!
-Nah... Não era tudo isso... Eu tinha meus momentos, mas não era... Não era tudo isso. Eu era um fedelho orgulhoso, achava que sabia tudo.
-Mas tu sabes tudo... Tu sabes um pouco de tudo, Menelau! Tu conversas com qualquer pessoa, as pessoas se espantam com tudo que tu sabes! Tu sempre arrancas uma expressão surpresa das pessoas! É sempre mais do que elas esperam, Menelau! Tu tens o direito... Não, tu tens a obrigação, de dar aquele sorriso. Tu tens a porra da obrigação de dar aquele sorriso, entendestes? A porra da obrigação!
O ego de Menelau estava, de fato, inchado. Ele olhava o sujeito, vestido de negro, os cabelos escuros caindo na testa por causa do movimento exaltado que fizera enquanto numerava as qualidades de Menelau, sua camisa e calça, impecavelmente negras, seus sapatos de bico fino muito sujos de barro destoando um pouco do resto da roupa, os olhos faiscando de excitação. O sujeito mirou Menelau:
-O que valeria aquele sorriso, Menelau? Me conta. Seria a Valéria voltar? Ela volta. Foi tu quem dispensou ela. É só tu querer que ela volta. Ela nunca esqueceu de ti. Hoje, com o namorado novo, ela olha pro teto com ele em cima dela e lembra de ti. Ela lembra de gemer o teu nome baixinho, Menelau. Na verdade, logo que eles começaram á namorar, ela fez isso, deu até briga, sabe?
-Não... Eu... Eu ainda gosto da Val, mas não quero ela de volta. Nosso namoro era um pesadelo.
-Eu sei... Eu sei... Tu podias ter traído ela e não traiu. Mais de uma vez.
-É, mas até aí, ela podia ter me traído, também. Várias vezes. Talvez tenha traído, vai saber...
-E tu não ligas?
-Não... Já passou.
-Olha só... Que estóico... Parece que eu estou falando com Marco Aurélio.
-Ah, que isso... Capaz.
-Então, não muda de assunto... Tu tá tentando me enrolar e conseguindo. Não me faz perder o foco, seu safado. O que vale um sorriso daqueles? Dobrar tua produção no trabalho sem se esforçar? Manter o faturamento daquele verão, mais de oitenta por cento acima da média? Os teus colegas de cabelo em pé, e tu ali, tranquilo, fazendo chover!
-Não... Não, não. Aquele trampo nem... Eu nem curto aquilo. É só um lance que eu faço pra viver. Não tem nada de agradável lá. Eu só faço a minha parte.
-Olha só... O pilar da empresa, e essa modéstia. Fala, fala o que seria, qualquer coisa, Menelau. Fala que a gente dá um jeito, eu topo qualquer parada pra ver aquele sorriso de novo, qualquer coisa! Escrever um romance best seller em uma mês? Por que tu podes, nós dois sabemos das tuas extravagâncias literárias! Gol de bicicleta na final do campeonato da firma? Tu sabes que pode, é só alguém cruzar à feição que tu guardas, tu é assim, um craque lúcido e discreto, um Zidane amador. O que é? O quê? Impedir um assalto e nocautear o bandido? Foto na Zero Hora entregando o marginal armado pra PM? Com essa direita a gente sabe que rola, é só tu teres a oportunidade, encontrar um tolo incauto que tenha a ousadia de mexer contigo... Fala, Menelau, fala que eu te escuto, é só dizer que a gente arranja.
O sujeito estava ansioso, as mãos crispadas sobre as cobertas de Menelau, falava rápido, arremessandro perdigotos em direção á Menelau, seu hálito cheirava á carne crua, os cabelos, agora, em completo desalinho, os olhos arregalados.
-Olha - Começou Menelau. - Eu já entendi quem tu é... Por que... Por que esse interesse em mim? Eu não sou, sei lá, eu não sou um grande homem de nosso tempo, sou um sujeito comum, bem mediano, até... Por que... Por que essa atenção?
-Ah... Eu devia saber que não dá pra te enganar, Menelau. Tu és inteligente e perspicaz demais pra mim, mereces uma explicação. Veja bem, Menelau, - Começou o estranho se ajeitando na cama de Menelau:
-Como eu posso te explicar... Sabe quando tu comes em um restaurante caríssimo, e a comida é deliciosa, algo pretenciosa, cara, e depois que tu comes, tu tens a certeza inatacável da experiência gastronômica superior, mas, por mais deliciosa e perfeita que fosse aquela comida, falta algo, tu não sabes o quê. Tu comestes a entrada, o prato principal, o acompanhamento, a sobremesa e o cafézinho, mas faltou alguma coisa. E então, tu sai do restaurante, entra no carro, dirige duas quadras e para no sinal, e um moleque te oferece uma paçoca, e tu compra, compra mais pro guri não voltar pro meio-fio de mãos vazias, tu compra e larga ali por cima do painel do carro.
Então, por acaso, pra não enfiar o dedo no nariz, no sinal seguinte, algo distraído, tu comes a tal da paçoca, e, quase como por mágica, ela te dá uma sensação de completude e satisfação profundas, e tu percebe que, aquela paçoquinha cretina, vagabunda, bagaceira, em sua infinita simplicidade, era o que faltava à lauta e cara refeição do restaurante. Entendeu, Menelau? Genocídios, estupros de crianças, abortos e desvios monstruosos de dinheiro da saúde me alimentam, agradam ao meu paladar, são meu prato principal, mas as travessuras, os pequenos orgulhos vazios... Esses me deliciam.
Menelau o encarou com serenidade.
-Cachorro acorrentado. - Disse.
-Quê? - Perguntou o sujeito, recuando como se levasse um soco na cara.
-Tu é um cachorro acorrentado. Só me morde se eu chegar perto. - Explicou Menelau.
-Do que tu estás falando, Menelau? -Retrucou o sujeito. Já não estava tão impecável, a camisa já estava amarrotada e felpas brancas da coberta de Menelau se grudaram á sua calça.
-Eu não quero nada do que tu tem á oferecer. O que eu quero eu consigo sozinho, ou não consigo sozinho. Não preciso da tua ajuda, nem quero a tua ajuda. Obrigado.
-Filho da puta! Filho de mil putas! Como que tu, um medíocre de merda, com o nome de um corno histórico da literatura tem a audácia de me dizer "não"? Quem tu pensa que é, desgraçado? Miserável! Imbecil! Vai morrer sozinho e ser esquecido uma semana depois! Uma semana, no máximo! Engasga com cuspe e morre cretino! Tu podia ter sido grande, mas em algum momento na porra da tua adolescência tu resolveu ser "uma boa pessoa" e virou um monte de nada, um medíocre, um cretino que não é bom de verdade em porra nenhuma, em porra nenhuma!
O sujeito cerrou os punho jogou a cabeça pra trás e gritou alto, fazendo tremer o apartamento, então encarou Menelau e, quando abriu a boca para falar, Menelau acordou.
Estava deitado na cama, no quarto, e não havia ninguém sentado à seus pés.
Ele massageou as próprias têmporas e se deu conta que não estava mais com dor de cabeça.
Afofou o travesseiro, e o virou, deitando a cabeça no lado fresco da fronha. Antes de fechar os olhos, sorriu pro lado, algo cínico, algo superior, talvez até um pouquinho pretensioso, mas em paz consigo mesmo.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Resenha Cinema: Ilha do Medo




Outro dia, falando de O Sequestro do Metrô 123, mencionei a relação entre diretores e seus atores fetiche, ontem fui ver a última produção da dupla Scorsese (Que é 1, 2 e adota um novo ator fetiche) e seu xodó da vez, Leonardo DiCaprio.
Não houve nenhuma surpresa, o produto resultante da parceria é bom como sempre (Gangues de Nova York, O Aviador e Os Infiltrados, são todo bons filmes.), e ainda mostra que Scorsese continua com vontade de sobra pra experimentar, sem nenhuma dispisção de se ater a um único filão do cinema.
No filme é 1954, a Guerra Fria corre solta, e acompanhamos Teddy Daniels (DiCaprio, ótimo no papel), agente federal que, com seu parceiro Chuck Aule (Mark Ruffalo), é enviado à Ilha Shutter, uma instalação de segurança máxima do governo que abriga criminosos insanos, para investigar a possível fuga de uma paciente/prisioneira, Rachel Solando (Emily Mortimer, misturando ternura e loucura numa nota bem convincente.), enclausurada por assassinar os três filhos.
Desde o momento em que os investigadores colocam o pé na ilha, a atmosfera do lugar começa a afetar Daniels, que não está lá unicamente para investigar o sumiço da prisioneira, mas tem razões próprias, que evocam a morte de sua esposa, dolores (Michelle Williams), e a busca pela confrontação com o homem que a causou, Andrew Laeddis (Elias Koteas), além da suspeita de que a Ilha Shutter guarda mais do que apenas uma prisão-hospício.
Conforme dá prosseguimento à investigação, Daniels percebe que os responsáveis pelo local, os doutores John Cawley (Ben Kingsley, excelente) e Jeremiah Naehring (Max Von Sidow), resistem em lhe dar liberdade para se movimentar no local, o que aumenta suas suspeitas quanto a verdade por trás, não apenas da verdadeira função do hospício, como também de sua própria presença lá. E, no momento em que uma tempestade impede que os investigadores deixem a ilha, Daniels se vê cada vez mais perturbado pelo ambiente, onde é constantemente assombrado por visões de sua esposa morta, e de suas próprias experiências na tomada do campo de concentração de Dachau, no fim da Segunda Guerra Mundial.
Contar mais do que isso poderia estragar a experiência de ver o filme, onde as revelações são parte integrante e importante da diversão.
O que é bacana é perceber que, entra ano sai ano, e Scorsese, a despeito de sua mania de fazer filmes e mais filmes com o mesmo ator, não tem medo de tentar coisas novas, e flutua entre gêneros, ás vezes dentro do mesmo filme (Ilha do Medo surge entre o suspense, o filme noir e o filme de guerra.) sem perder a mão.
O elenco, que além dos protagonistas DiCaprio, Ruffalo e Kingsley, traz gente como Mortimer (Só eu sou louco por aquela mulher?), Von Sydow, Ted Levine, Jackie Earle Haley e Patricia Clarkson, que aparecem e desaparecem rapidamente, no melhor estilo dos filmes de mistério B dos anos 50 e 60, é muito competente, e há personagens que até mereciam maior destaque, mas nada que estrague a experiência.
Ilha do Medo é um ótimo filme, que demanda uma certa dose de paciência, e agrada, em especial, ao espectador detetive, que adora tentar descobrir o mistério junto com o protagonista, mas não vai deixar nenhum amante de bom cinema desapontado.

"-Se eu tentar furar seu olho com os dentes, você irá conseguir reagir antes que eu o cegue?
-Por quê não tenta?"

terça-feira, 23 de março de 2010

Mais que um nome.


-Lolita. - Disse ela.
-Ah, tá. - Respondeu ele rindo e ignorando a absoluta falta de educação de sua reação.
-"Ah, tá" o quê? - Perguntou ela, irritada.
Ela ficou mais bonita irritada. Cabe dizer que ela era bonita. Miúda, miúda, não. Mignon, que nem o filé. Era pequena, sem volume exagerado em parte alguma. Uma moça compacta, não ocuparia grandes espaços se morasse num apartamento em Tóquio. A pele muito alva, os cabelos castanhos lisos deitados sobre os ombros á mostra na blusa de alças cor-de-rosa. Ela o fustigava com os olhos cor de mel cheios de desagrado, e os lábios avermelhados contraídos, estava, de fato, muito contrariada.
-Qual a graça?
-Nenhuma. - Ele respondeu tentando desconversar.
Ela disse "então tá", cheia de desdém, e foi saindo, desviando das pessoas que se acotovelavam fingindo dançar no salão da danceteria.
Ele a olhou, pequenina, sumindo na multidão, pensou melhor. Correu etrás dela e a segurou pelo braço. Ela virou com a boca entreaberta e um olho fechado, numa expressão clássica de raiva feminina.
Ele disse:
-Qual é o problema dos teus pais? Eram presidentes do fã-clube do Nabokov?
-Escuta aqui, ô- Ela começou, mas ele a interrompeu:
-Não, por que pra batizar um filho com nome de personagem de romance, ainda mais desse romance, ainda mais esse nome, tem que ser alguém muito perturbado. Ainda mais nos dias de hoje.
-Cala a boca, palhaço.- Respondeu Lolita, irritada.
-Não calo, não. Tu nunca pensa á respeito? Isso não te incomoda? Sei lá. Não te parece que "Lolita" não é nome, é destino? Não te preocupa o futuro? Que algum Clare Quilty da vida te sequestre pra tentar te enfiar em um filme pornô?
-Vai encher outra, otário.
-Não vou! Me diz, o quê mais, além da má atitude, tu tem da Lolita da literatura? Costas flexíveis?
-Eu vou te meter a mão na cara.
-Tu é a luz da vida de alguém? O fogo nas entranhas de alguém? O pecado e a alma de alguém?
-Eu... Que lindo isso...
Pouco depois, conversavam, braços colados em uma pequena mesa da danceteria. Berravam no ouvido um do outro por que a Lady Gaga não calava a boca em altíssimo volume fazendo os frequentadores se contorcerem ao som da música. Mas ele e ela pareciam alheios á isso conversando.
Ele parecia boa gente. Á despeito da forma pouco ortodoxa de puxar assunto, era inteligente, educado, conforme conversavam ela lhe fazia perguntas e descobria mais sobre ele.
Era professor. De literatura como seu pai e sua mãe. Era do interior, estudara alguns anos fora do Brasil, na Europa, voltara pra cá havia pouco tempo, morava em uma pensão, mas não dessas fuleiras, um lugar de família. Gostava de poesia, especialmente francesa, mas lia de tudo, até bobagens como Crepúsculo e Harry Potter, que era pra saber o que a garotada andava lendo nos dias de hoje. Obrigação profissional e talicoisa.
Gostava muito de ir ao cinema, também, gostava de fast-food mas tentava evitar, a família tinha tendência á engordar, então ele comia pouco segunda á sexta, se exercitava bastante, para os próprios padrões, e ia á forra nos finais de semana. Raramente ia á danceterias, sua presença ali, naquela noite, era obra do acaso, era aniversário de um colega, ele foi meio á contragosto, na verdade já estava indo embora quando a viu, e não conseguiu tirar os olhos dela. Precisou perguntar seu nome.
Ela sorriu.
-Mas eu devo ser muito velho pra ti. - Ele falou, algo sem jeito, olhando para as próprias mãos no colo.
-Capaz. Quantos anos tu tem? - Ela quis saber.
-Trinta e sete. - Ele respondeu sem rodeios. Era mais do que ela imaginava, mas ele estava, na verdade, em boa forma. Não parecia ter muito mais de trinta.
-Bom, não é uma diferença tão grande. -Ela disse alongando o som do "ão".
-Até parece.- Ele disse com um sorriso algo tristonho.
-Não é!- Ela insistiu.
Ele sorriu e fechou um olho a encarando.
-Tu deve ter o quê? Dezesseis? Dezessete?
-Eu acho que tenho que ficar feliz. Mulher adora quando dão anos á menos. Tenho vinte e quatro anos.
-Vinte e quatro? - Ele não pôde esconder o horror na própria voz.
-Vinte e quatro! - Ela aquiesceu, desafiadora.
-Parece que nome é destino, mesmo. - Ele concluiu.
Se beijaram. Se beijaram por um bom tempo na danceteria, mesmo. Foram para o apartamento dela. Se beijaram mais. Ela o despiu com destreza e agilidade, ele a despiu com um pouco de desânimo, algo desajeitado. Ela o beijou, explorou seu corpo com lábios e língua. Fizeram amor. Ele não alcançou píncaros de prazer. Teve lá um orgasmo algo mecânico, proveniente do movimento, e era isso.
Horas mais tarde, quando o céu já ganhava tons de azul, ele se lavou, se vestiu e se despediu dela à porta. Na luz matutina, sem maquiagem, ela parecia ter mesmo os seus vinte e quatro anos. Até mais.
Ela, meio sem jeito, vestindo uma camiseta grande e com uma toalha nos cabelos se apoiou na porta e disse:
-Sabe que só agora eu me dei conta de que não perguntei o teu nome?
Ele sorriu. Passou as costas do dedo indicador no queixo dela e disse:
-Humberto.
-Prazer, Humberto. Eu sou Lolita Gomes Fagundes. - Ela sorriu e estendeu a mão com o queixo no ombro direito.
Ele segurou a mão dela se emperdigou e disse:
-Prazer. Humberto Agá Gutemberg.
Ela se despediu dele com um beijo que ele não correspondeu com grande entusiasmo. Trocaram telefones mas ele "acidentalmente" trocou o último dígito do próprio número.
Se apressou na rua, já eram quase seis da manhã, ele precisava trabalhar ás sete e quinze. Provavelmente áquela hora dona Charlote já teria começado á preparar o café da manhã para os pensionistas, e ele poderia comer algo antes de sair. Com sorte, andaria com a pequena Dolores até a parada de ônibus.
Nome, com mil diabos, era destino, mesmo.
Mas não precisava ser tanto, pensou Humberto.

sábado, 20 de março de 2010

Resenha Cinema: O Livro de Eli


Ontem, como um bom fã de Denzel Washington, fui ao cinema assistir O Livro de Eli, mais recente incursão do ator à telona.
Não sabia muito bem o que esperar do filme. Fui mais por ser uma sexta-feira calorenta em Porto Alegre onde não havia muito mais o que fazer. E, quase por acidente, esbarrei no melhor filme do ano até agora.
O filme dirigido pelos irmãos Hughes (Os mesmos de Do Inferno.) mostra a terra cerca de trinta anos após uma guerra devastadora. Não são dadas explicações mastigadinhas de como foi a guerra, de que artilharia foi usada, ou qual a razão do conflito, apenas pistas.
A fotografia, muito bem utilizada, deixa o filme cinzento, quase preto e branco, o céu ganha uma cor branco prateada ofuscante, e os cenários desérticos cortados por estradas esburacadas e cobertas de cinzas evidenciam que a guerra, qualquer que tenha sido, não deixou o mundo no melhor dos estados.
Nesse cenário inóspito e abrasivo encontramos Eli (Denzel Washington, fazendo o que faz melhor), um andarilho que vaga pelos Estados Unidos rumando para o oeste munido de uma faca, uma escopeta, uma pistola, um I-Pod e um livro.
A missão de Eli é levar o livro que carrega consigo, o último exemplar da Bíblia, até o seu lugar de direito. Guiado por uma voz interior, ele anda em direção ao oeste de forma inexorável, disposto a completar sua missão.
Mas esse é um caminho cheio de percalços, que vão desde os bandidos que armam emboscadas nas estradas, maníacos e canibais, até Carnegie.
Carnegie (Gary Oldman, baita ator.) comanda uma pequena cidadela no meio do nada. Ele lidera a cidade e uma busca:
Ele procura pela Bíblia.
O livro que é um bálsamo aos desesperados e miseráveis poderá expandir a área de influência de Carnegie muito além daquele lugarejo arruinado, se ele possuir as palavras sagradas.
Obviamente Carnegie descobre que Eli carrega o livro que ele tem procurado por tantos anos, e aí começa o conflito entre os dois. O déspota arruinado que deseja usar a palavra de Deus em benefício próprio e o viajante abnegado que tenta protegê-la a qualquer custo.
Se a princípio Carnegie tenta seduzir Eli com promessas de vida fácil, comida quente, água limpa e uma bela jovem, Solara (Mila Kunis, uma graça e que não compromete no papel.), quando isso falha, ele parte para métodos mais violentos, que esbarram nas habilidades de Eli, mais do que apenas um andarilho, um guerreiro experiente protegido por uma fé inabalável, e que vai defender seu livro e sua missão, ou morrer tentando.
À primeira vista, eu sei, pode não parecer muito. Mas além dos atrativos óbvios, como as atuações sempre ótimas de Washington e Oldman, da graciosa Mila Kunis, da direção segura dos irmãos Hughes e das excelentes cenas de luta (que ao contrário do que parecia ter virado regra no cinema por "culpa" de Jason Bourne, não esconde a ação em cortes rápidos ou filmando as sequências do meio da pancadaria) com toda a elegância das técnicas de combate de Eli mostrada em belos e detalhados planos sequência (A luta dele com os bandoleiros sob o viaduto, onde só se pode ver as silhuetas dos combatentes é lindíssima.), há também uma boa história, que não trata a audiência como idiota, contando em um flashback como tudo aconteceu.
O Livro de Eli dá a cada um a chance de interpretar os indícios mostrados no filme e fazer a sua própria teoria. Existe ainda o elemento de crítica àqueles que se travestem com religião para próprio benefício, ao consumismo desenfreado, e, sobretudo, o poder da crença, afinal, Eli é protegido por seu Deus ou é apenas um lutador habilidoso com uma sorte inacreditável?
O filme traz tudo isso à baila, é entretenimento de primeira, mas pode te dar o que pensar. Na eventualidade do fim do mundo, qual seria o teu bem mais precioso?

"As pessoas tinham mais do que precisavam. Nós não tínhamos ideia do que era precioso e o que não era. Jogávamos fora coisas pelas quais mataríamos agora."

quinta-feira, 18 de março de 2010

Conforme o Plano.


A frase atingiu Teobaldo como um murro.
-Eu não gosto mais de você.
Teobaldo encarou Cristina por alguns segundos, a boca entreaberta. Se deu conta disso e imaginou o quanto seria patética sua figura naquele momento. Era um domingo, onze, onze e meia da manhã. Teobaldo acordara á pouco, comia um sanduíche de peito de peru com mostarda, mordera o sanduíche com vontade e a mostarda escorrera pela parte de trás do pão, escorreu pela sua barriga, e se acomodou no cós de sua bermuda. Teobaldo levantou e foi até o banheiro praguejando. Ainda amaldiçoando a própria falta de jeito, tirou as bermudas e as jogou no cesto de roupas suja, foi quando viu que havia mostarda também em suas cuecas, no elástico da cintura. Tirou a peça, e a jogou, também, no cesto de roupa suja. Colocou o roupão, calçou os chinelos e voltou á sala para continuar comendo seu sanduíche e assistindo Esporte Espetacular, programa do qual nem gostava, mas estava assistindo por causa dos jogos do Rainha da Praia, poderia passar horas assistindo jogos de vôley de praia. Não desgrudava os olhos dos derriéres das jogadoras. Era um sujeito simples, de simples prazeres.
Enquanto comia o sanduíche, com a mostarda escorrendo pelo queixo e se empoçando em sua barba de quatro dias, ouviu a chave na porta. Sabia que era Cristina. Cristina morava com Teobaldo já tinha uns oito meses. Morava é força de expressão. Cristina tinha as chaves, tinha uma gaveta na cômoda, uma porta no guarda-roupa, uma divisória no armário do banheiro, e um travesseiro. Mas morar lá, mesmo, ela não morava. Por mais de uma razão. A principal era de que Cristina não gostava da casa de Teobaldo.
Teobaldo não era o mais organizado e higiênio dos homens. Não que fosse um desses porcos imundos que tomam banho uma vez por semana (E olhe lá.) e só varrem a sala quando a sujeira começa á estalar sob as solas dos sapatos, nada disso, mas ele certamente limpava menos do que poderia. Ou deveria.
E era bagunceiro. Teobaldo era inacreditavelmente bagunceiro. Ele não tinha lugar pra nada, e, se alguém ousasse arrumar suas coisas, ele acusaria, entre risos, a alma caridosa de ter desarrumado tudo.
Isso era provavelmente um reflexo da criação de Teobaldo. Sua mãe era extremamente cuidadosa. Limpava tudo como se esperasse pela visita do rei da Dinamarca. Seu pai colecionava livros e miniaturas de carros, Teobaldo foi um filho tardio, foi criado pela mãe já na casa dos quarenta anos e pelo pai já com cinquenta, então, imagine uma criança que cresceu morando em um lugar onde as regras quanto á tocar nas coisas eram tão rígidas quanto as do Museu do Louvre.
Teobaldo cresceu clamando por um pouco de espaço, um pouco de bagunça e de relaxamento.
Então, ao se ver morando sozinho, dono do próprio nariz, ele deu seu brado de liberdade vivendo em uma casa que lhe era aconchegante, e que era uma tremenda baderna. E isso não agradava Cristina.
Cristina era organizada, era metódica, tão organizada e metódica que as pessoas que não gostavam de Cristina se referiam á ela como T-1000, em referência ao andróide vivido por Robert Patrick em O Exterminador do Futuro 2.
Cristina sabia o que queria, e quando se decidia á buscar por alguma coisa que quisesse formulava um plano de ação do qual não se desgrudava. Sério.
Cristina digitava seus planos passo á passo no Word, imprimia e carregava na bolsa, sempre que cumpria uma das etapas descritas no documento, ela sacava a folha A-4 da bolsa e, com sua caneta Mont Blanc, fazia um pequeno e satisfeito "V", ao lado da etapa vencida.
Cristina jamais deixava de conseguir as coisas que queria. Ela tinha tudo planejado. Haviam alguns objetivos inalcançados em sua bolsa, mas eles ainda eram planos em desenvolvimento, então, ela não os considerava fracassos, eram apenas isso: Planos em desenvolvimento.
Cristina se vestia com esmero, usava boas roupas, tailleur, terninhos, camisas sociais e pantalonas em cores sóbrias. Usava o cabelo preso, óculos de grau com armação fina, sapatos de salto médio. Cristina estudava comércio exterior e fazia estágio em um escritório de advocacia onde, em seis meses, conquistara a admiração de todos os superiores e a antipatia de todos os colegas. Era eficiente e fria como uma calculadora alemã.
Seu pai era cardiologista, sua mãe psicóloga, Cristina cresceu cercada de afeto, vá lá, mas um afeto algo mecânico, obrigatório, sóbrio.
Era o extremo oposto de Teobaldo. Teobaldo se vestia com as roupas que estivessem mais á mão no armário. Usava roupas baratas que comprava apenas quando as que já tinha começavam á se desmanchar de tanto uso. Usava o cabelo comprido, até cansar e cortar, cortava á máquina, em casa mesmo, e o cabelo crescia sem nenhum formato, corte ou penteado. Teobaldo não ligava. Precisaria usar óculos, mas já perdera três pares, o que o levou á conviver com a leve miopia. Ele usava tênis All-Star, mas curtia mesmo era estar de pés descalços ou então de havaianas. Teobaldo cursara arquitetura, mas largara, tentara História, mas não se adaptou. Agora fazia letras, inglês, pois conhecia a língua e se sentia á vontade pra fazer traduções e ensinar o idioma.
Seus alunos o adoravam á despeito de sua indolência, e as pessoas que encontravam alguma falha em suas traduções o perdoavam pois ele era muito gente boa.
Algumas pessoas se perguntavam, quando viam Cristina e Teobaldo na rua o que eles faziam juntos. Não eram um casal parelho. Não que um fosse lindo e o outro medonho, não, mas eles eram muito, muito diferentes.
Teobaldo era a figura do relaxamento, da não preocupação, nascera para ter um quisque na beira de alguma praia havaiana. Parecia que em sua testa havia um letreiro escrito "No stress", Cristina, por outro lado, parecia um jason Bourne de saias. Nenhum movimento feito sem propósito, a expressão séria, o olhar fulminante. Ela poderia perfeitamente dizer que era agente da CIA e ninguém ficaria surpreso.
Cristina gostava de Teobaldo. Gostava dele por ele ser um bom sujeito. Por ser correto, ter um certo charme, ter uma voz bonita e, como ela, gostar de Chico Buarque, que aliás, foi o que os aproximou naquela noite na casa de um amigo em comum. Era um jantar de aniversário, várias pessoas, e, quem estivesse perto do aparelho de som na hora em que acabasse a música podia escolher a próxima. Cristina e Teobaldo se aproximaram ao mesmo tempo do CD player, houve um instante de constrangimento quando Teobaldo encarou os frios olhos castanho-esverdeados de Cristina, mas ele sorriu e disse:
-Coloca o que tu quiser.
E quando Cristina levou a mão à pilha de CDs ele a agarrou pelo pulso e completou:
-Contanto que seja Chico.
Ouviram alguns protestos quando Cotidiano soou pela sala, mas Cristina calou as críticas aolembrar que haviam ouvido Sandy e Júnior e Só Pra Contrariar e que seria bom limparem um pouco os ouvidos.
Teobaldo achou graça do jeito dela. Da forma firme e decidida com que ela subjugara todos os convidados da festa com uma frase.
Cristina gostou de Teobaldo pela sua ousadia, de segurá-la pelo pulso, de ter a audácia de lhe dar uma ordem.
Antes que a música se encerrasse, Cristina e Teobaldo é que se beijavam com boca de paixão.
Á despeito das diferenças, nasceu um romance. Cristina conheceu todos os defeitos de Teobaldo em cerca de duas semanas. Era só o que ela precisava. Mentalmente perfilou seus defeitos em uma lista e suas qualidades em outra. Acabou concluindo que, á despeito de serem mais defeitos do que qualidades, as qualidades pesavam mais. E foi ficando. Naquele momento poderia dar-se ao luxo de um romance rápido. Tinha tudo planejado.
A forma casual com que Teobaldo olhava o relacionamento estranhamente agradava Cristina, que, mesmo sem admitir, precisava de um pouco de casualidade em sua vida tão formal, ao menos por enquanto.
Teobaldo gostava de Cristina, gostava de passar tempo com ela. Era cuca-fresca, não estava sempre á vontade com os programas que Cristina queria fazer, mas preferia não reclamar. Gostava de passar tempo com ela, então, podia ser fazendo alguma coisa que não fosse exatamente a sua ideia de um bom programa, até por que, Teobaldo reconhecia que, á bem da verdade, não tinha um programa preferido além de deitar e ouvir música ou caminhar sem rumo por alguma praia.
Mas aquele romance casual foi se desgastando. Conforme Cristina recebia mais e mais atribuições em seu estágio e os trabalhos da faculdade se acumulavam, ela se tornava mais tensa, fazia mais cobranças, e, tensa que estava, toda a conversa com Teobaldo e sua letargia se transformava em confronto. Ele, á princípio não ligava. Relevava tudo. Mas as coisas foram ganhando mais e mais proporções, e até Teobaldo e sua indefectível passividade acabaram por encontrar seu limite. E as discussões começaram. Começaram e cresceram até se tornar brigas que culminavam em períodos sem se falar, que culminaram com aquela cena lá do início.
Cristina entrou, encarou Teobaldo, sentado no sofá de roupão e chinelos, com o queixo todo sujo de mostarda, vendo as bundas das jogadoras de voley na TV. Ele a olhou de volta com um meio sorriso.
Talvez tenha sido o meio sorriso, ou o roupão entreaberto mostrando as partes íntimas, ou o queixo sujo. O fato é que Cristina, ali, teve certeza, e, tendo certeza de que não dava mais. Ela tinha tudo planejado e aquilo não era parte do plano. E, tendo decidido-se, verbalizou.
-Eu não gosto mais de você.
Como eu já havia mencionado, a frase atingiu Teobaldo como um murro. Primeiro que, parte do modo cuca-fresca de ser de Teobaldo era uma estratégia para que todos gostassem dele. Segundo por que ele, á despeito dos problemas, ainda amava Cristina, ou, pelo menos, gostava bastante dela. Em terceiro por que ele odiava a mania dela de chamar as pessoas de "você".
Ele largou o sanduíche sujo de mostarda no braço do sofá, Cristina chegou á tomar fôlego para reclamar, mas desistiu, não era mais da conta dela.
Teobaldo se levantou, parou na frente dela e perguntou:
-O que tu disse?
Ela repetiu. Não gostava mais dele. Não dava mais. A letargia, a apatia, a falta de atitude e de ambição de Teobaldo, tudo aquilo não era o que Cristina queria, não era o que ela planejara.
Teobaldo não disse nada. Tentou uma jogada audaciosa como a que usara para iniciar o namoro, rapidamente se inclinou para frente tentanto beijar Cristina nos lábios. Mas ela se inclinou igualmente rápido pra trás, evitando o beijo e dando um passo pro lado.
-Vê se cresce, Teobaldo.
Ela disse isso, foi até o quarto e pegou suas roupas no armário. Colocou em uma bolsa de couro caramelo que comprara durante uma das raras viagens do casal á serra, acomodou com cuidado suas roupas no fundo da bolsa, depois foi ao banheiro e pegou seus itens de perfumaria, batons, absorventes e esmaltes, que colocou, separadamente em bolsinhos laterais da bolsa. Por último colocou a chave sobre a cômdoda. Teobaldo ainda estava parado de pé no entro da sala. Uma lágrima escorria de seu olho direito. Cristina pensou em dizer alguma coisa. Talvez avisar que não levaria o travesseiro Super-Pluma-Ergo, uma de suas posses, que Teobaldo roubara durante o namoro. Mas achou melhor não dizer nada. Nem se despediu. Saiu sem dizer nada, deixando aquele homem adulto, de roupão e chinelos com a cara suja de mostarda chorando no meio da sala.
Ao descer as escadas do prédio, Cristina chegou á sentir, na boca do estômago, o soluço que poderia virar choro. Mas engoliu em seco. Sacou da bolsa uma folha A-4 e marcou um pequeno "V" do lado de uma linha. Estava tudo conforme o planejado.
Saiu andando do prédio ainda com uma sensação de nó na garganta.
Nos meses que se seguiram, Cristina trabalhou com ainda mais afinco, impressionou ainda mais seus chefes, estudou de forma contrita, fez mais desafetos para os quais ligava ainda menos que antes.
Se formou, primeira da turma, oradora.
Seu estágio virou um emprego formal, e após quatro meses Cristina era chefe de todas as pessoas que não gostavam dela, e que agora, sendo subalternas, não encontraram nehuma razão para mudar de ideia. Ela não ligava. Tudo corria como ela previra. Ela tinha tudo planejado.
Cristina saiu algumas vezes. A primeira com um colega, ele tinha um cargo semelhante ao dela mas em outro setor da empresa.
Ela se arrependeu. Á despeito do charme e dos belos ternos era um tremendo chato. Só falava de si, interrompia Cristina o tempo todo. Tentou fazer sexo com ela na primeiera noite. No banheiro do restaurante. Não durou.
Todos os homens pareciam extremamente chatos e irritantes para Cristina, mesmo aqueles que se vestiam bem, e eram ambiciosos e extremamente ativos. Se tinham essas qualidades tinham defeitos que as superavam. Chegou á pensar que havia encontrado alguém com quem dividir a vida após alguns encontros com um jovem oftalmologista. Ele era divertido, inteligente, tinha um sorriso lindo. Podia ser ele o homem que seria o pai da filha de Cristina. Mas após três meses de namoro, ela percebeu que faltava algo. Que não estava feliz. Não estava se divertindo.
Cristina terminou aquele namoro. E, após dois anos e meio, continuava sozinha. Sua carreira ia bem, de vento em popa. Gozava de boa saúde. Estava com três quilos menos que o peso ideal. Tudo corria conforme seus planos. Mas ela estava sozinha.
Numa tarde, após o trabalho, Cristina sentiu vontade de comer um picolé Tablito, seu preferido. Como estava três quilos abaixo do peso ideal, achou que podia dar-se esse pequeno prazer.
Ao entrar em uma padaria onde havia o freezer da Kibon, levou a mão á porta já mirando o picolé, quando sua mão foi interceptada. Ela sevirou para ver quem a agarrara pelo pulso. Era Teobaldo.
-Pode comer o que quiser. -Disse ele.
-Contanto que seja um Tablito.
E sorriu. Ela sorriu de volta. Conversaram enquanto ela comia o picolé. Ela contou como tudo mudara, contou da promoção, da formatura, do trabalho.
Ele perguntou dos pais dela, ela confirmou que estavam bem, ele perguntou dos namoros, ela disse que estava sozinha. Ele sorriu.
Ela perguntou o que ele andava fazendo, ele disse que se formara, estava trabalhando em uma empresa que fazia traduções juramentadas. Morava no mesmo lugar, fazia as mesmas coisas, só conseguira um diploma, um esmprego estável e visitava um barbeiro á cada três meses para cortar o cabelo.
Cristina o olhou de soslaio enquanto comia seu picolé. Ele comia um risóles que estava empapado de mostarda. Ele mordeu a massa enquanto dava um passo, e, descoordenado que era, enfiou o nariz na mostarda. Parou para se limpar.
Cristina o olhou enquanto sorria sem jeito e limpava a mostarda do nariz com o guardanapo.
Ele era a mesma pessoa de três anos antes. Talvez um pouco menos letárgico. Mas ainda era diferente demais de Cristina. Ainda não era a pessoa que ela havia planejado para ser o pai de sua filha. Ele olhou o relógio, fez cara de "Já!", e se despediu com um aceno. Cristina sacou a folha A-4 da bolsa, mirou-a por alguns instantes. E então a amassou, jogando fora.
Correu até Teobaldo e o beijou.
Tinha tudo planejado. Podia abrir um pequeno precedente.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Resenha DVD / Blueray: (500) Dias Com Ela


Não foi por mais senão curiosidade quanto ao trabalho do novo timoneiro da franquia do Homem-Aanha no cinema, Mark Webb, que aluguei esse filme.
Sabendo que o sujeito já dirigiu centenas de video clipes, mas um único longa metragem, me obriguei á trilhar um caminho que, confesso, geralmente prefiro evitar. O das comédias românticas, mas devo confessar que, á despeito da minha própria falta de romantismo e do meu pessimismo em relação ao amor, (500) Dias Com Ela foi uma grata surpresa desde a frase inicial:
"O filme a seguir é uma história de ficção. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. Especialmente você Jenny Beckman.
Vadia."
Na fita conhecemos Tom (Joseph Gordon-Levitt, entregando outra boa interpretação depois do deslize de G. I. Joe), arquiteto de formação ele trabalha como redator de cartões comemorativos, é um rapaz romântico, boa-praça, inteligente, á procura de sua alma-gêmea.
Quando conhece a nova secretária de seu chefe, Summer (Zooey Deschanel, a adorável musa indie de toda uma geração.), moça bonita, divertida, inteligente, Tom acredita que está diante do amor de sua vida. Mas aí esbarra em um problema. Summer é pé-no-chão, preza a própria liberdade, não está procurando um relacionamento sério e nem sequer acredita em amor.
Mas, ainda assim, eles acabam engatando um romance, que já nos primeiros minutos do longa, descobrimos que não acabou bem.
Passamos então á acompanhar as recordações de Tom, que revisita suas memórias dos 500 dias que passou ao lado de Summer procurando o que deu errado, e o separou do amor de sua vida.
Aí entra um dos diferenciais do filme, a narrativa não linear, contando o romance em episódios fora de ordem cronológica através das lembranças de Tom, alternando bons e maus momentos, que variam de acordo com seu estado de espírito, como na sequência musical que mostra como Tom se sentiu após sua primeira noite com Summer, ou na bem sacada sequência dupla, Realidade VS Expectativa.
Há ainda a trilha sonora, charmosa e com mais importância que o elenco de apoio, tem músicas dos Smiths, de Carla Bruni e de Belle and Sebastian, tudo muito cult.
No final das contas, (500) Dias Com Ela é um filme interessante, uma história das mais convencionais (Boy Meets Girl) contada com algumas cores mais frescas e com um elenco particularmente carismático, mas, mais importante do que a forma não linear da narrativa, ou a inversão dos papéis de homem e mulher na relação, talvez seja o olhar, ao mesmo tempo cínico e sincero, que o longa lança sobre os romances:
O amor não é ideal. Pés na bunda acontecem. Mas nós sobrevivemos.

Á propósito, acho que a franquia aracnídea no cinema está em boas mãos, e que Joseph Gordon-Levitt seria uma Peter Parker excelente.

"Eu adoro o sorriso dela. Eu adoro seu cabelo. Eu adoro seus joelhos. Adoro a forma como ela lambe os lábios antes de falar. Adoro o som de sua risada. Eu adoro a marca de nascença em forma de coração em seu pescoço..."
"Eu odeio o dente torto dela. Eu odeio seu corte de cabelo dos anos 60. Eu odeio seus joelhos ossudos. Odeio o jeito que ela aperta os lábios antes de falar. Odeio o barulho que ela faz quando ri. Eu odeio a mancha em forma de barata em seu pescoço..."

sábado, 13 de março de 2010

Perfeição...


A maldade humana... Ela não conhece nenhum limite, conhece? Talvez, em algum momento, ela tenha conhecido algum, vá saber. Anos atrás, décadas atrás, quem sabe séculos ou milênios atrás, talvez houvesse um limite. Algo que mesmo a mais torpe das pessoas à época se negaria á fazer. Ou pensaria um pouco e diria "Opa, não. Tá demais. Melhor não fazer isso.". Talvez em algum momento houvesse essa delimitação. Essa fronteira entre o que era uma maldade aceitável e o que se caracterizava como uma atitude tão vil que mesmo uma pessoa desprezível, por mais desprezível que fosse, se negaria á tomar, teria um lampejo, talvez não de decência, mas... Sei lá, de lógica, e preferiria não abrir um precedente. Preferiria não realizar aquela atitude tão vil, tão tenebrosa, por que ela abriria um precedente, e tornaria as outras atitudes vis e tenebrosas tomadas até ali, mais palatáveis do que de fato eram.
Hoje não existe isso. Não há um limite, não há uma fronteira ou barreira de torpeza, não existe mais tábua de salvação. Hoje existe uma bandidagem que comete atrocidades das mais medonhas, indizíveis e abjetas sem nenhuma espécie de critério. Não há consciência.
Essa bandidagem involuída gera medo. Gera pânico. Gera pavor.
E o pavor leva, mesmo as ditas boas pessoas á ansiarem por formas duvidosas de proteção de sua segurança. Ou da ilusão de segurança.
Como a pena de morte.
A pena de morte é uma clara e absoluta ânsia de alguma justiça. Uma forma primitiva, ineficaz e até um pouco covarde de justiça. Ou ilusão de justiça.
A simples ideia de punir um assassino com a pena capital é um paradoxo dos mais tolos: Como é que matar uma pessoa repara a morte de outra?
A resposta é ridiculamente simples:
Não repara.
Apenas gera essa falsa sensação de segurança, ou um sentimento um pouco mais baixo, a vingança. Claro, uma vingança com a legitimidade da justiça, mas ainda assim, vingança. E no momento em que um ente querido de uma pessoa assassinada ou seviciada aplaude a morte do vilão que lhe causou a dor da perda, não está ela descendo ao nível do bandido? Eu talvez seja um bobo por crêr nisso, mas tão importante quanto ter justiça, pra mim, é continuar em paz com a minha consciência, é ter a certeza de ser a melhor pessoa, ou ao menos de tentar, de forma consciente, ser a melhor pessoa.
Outro fator importantíssimo é que a pena de morte não torna os países em que é praticada mais seguros, pelo contrário, veja os Estados Unidos, em que a pena capital nem sequer é praticada em todos os estados, e compare com o Canadá, por exemplo. As nações que permanecem utilizando a pena capital são, de modo geral, nações subdesenvolvidas, Estados onde o clero é parte do governo, e onde dissidentes são as grandes vítimas desse homícidio legitimado por governos corruptos e ditatoriais.
Eu entendo o medo das pessoas, compreendo a ânsia por justiça, sou até mesmo capaz de relevar o desejo de vingança do pai ou da mãe de um filho assassinado, ou da esposa de um marido assassinado, eu entendo. Mas jamais vou concordar. Vivemos em um país que está longe da perfeição, em que cada ser humano em um cargo eletivo é um gângster em potencial, e onde a justiça, via de regra, está á serviço de quem paga mais. Se somos parte de um sistema que, sabemos, não é funcional, será que estamos dispostos, em sã consciência, é colocar a vida de outrem em jogo?
Pois a pena de morte é uma faca de dois gumes. Se partimos do princípio de que, quem mata um inocente merece a execução, basta que um inocente seja injustamente condenado para que eu, você, e todos os outros sejamos, também culpados, e estejamos sujeitos á pena capital.
Entre um culpado vivo e um inocente morto, eu, sem pestanejar, escolho a primeira opção. Não é perfeita, mas é mais digna que vingança travestida de justiça.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Tudo bem...


E quem poderia imaginar?
Vitória certamente não poderia. Ela concebia muitas coisas, se considerava preparada pra muita coisa, tinha lâmpadas de reserva para cada cômodo da casa, tinha lanternas, tinha uma resistência de reserva para o chuveiro, na bolsa, além de um espelho, maquiagem e pente portava um pequeno frasco de gás de mostarda. Mas aquela situação, que agora vivenciava, não estava, certamente, entre as coisas que ela imaginara e para as quais se preparava.
Vitória encarou o pedaço de plástico em sua mão e leu as instruções na caixa de papelão sobre a pia do banheiro. Então olhou o relógio de pulso constatando aflita, que ainda faltavam quarenta e três segundos para fechar os três minutos que as instruções impressas na embalagem demandavam.
Ela cantarolou uma música da Legião Urbana enquanto esperava "...E nem o céu é belo e prateado... E o que eu era eu não sou mais, e não tenho nada pra lembrar... Tararãn-raran, raran..." Esqueceu a letra. Olhou o relógio, passaram-se cerca de quinze segundos. Ela tamborilou os dedos dos pés descalços no piso frio do banheiro, segurou os tornozelos com as mãos, sentada no vaso sanitário. Passou as mãos nos cabelos castanhos ondulados, e então lembrou, com uma ponta de nojo, que não lavara as mãos após o procedimento que acabara de realizar.
Lavou-as. Olhou o relógio, já passara o último minuto que estava esperando. Pegou o pedaço de plástico e olhou o espaço branco entre as palavras "Positivo" e "Negativo" escritas á esquerda e á direita da tira de plástico.
Uma linha azul surgiu. Ela engoliu em seco. Uma linha azul surgiu. O teste de gravidez que ela comprara na farmácia na noite anterior dera positivo. Vitória estava grávida. O que ela faria? O que ela faria?
O que diria para Tadeu? Ela o incentivara á consumar o sexo naquela noite de quinta, duas semanas atrás. Ele, ao constatar que não tinha preservativos, desistiu, sorriu amarelo e disse que ficava pra próxima. Vitória não deixou. Disse que estava tudo bem, que tinha pílula. Ele, á princípio, refugou, mas ela o seduziu. Era mulher, era bonita, inteligente, senhora de si. Podia seduzir qualquer homem. Até Tadeu, com seu bom-mocismo ao mesmo tempo encantador e insuportável.
Aqui cabe dizer que Vitória acreditou, de fato, que tivesse a pílula, mas a do dia seguinte. O problema foi que, na manhã seguinte, acordou tarde por causa das atividades de alcova da noite anterior, tinha que entregar um relatório no trabalho, e foi obrigada á correr para o escritório, a ceninha de desconforto com Tadeu antes de saírem não ajudou. Após o trabalho correu feito louca para a faculdade, onde tinha uma prova para fazer e de onde saiu exausta. Passou dormindo a manhã de sábado, e, á tarde, foi fazer compras com a mãe. Á noite saiu com Carol, sua melhor amiga, de modo que só no domingo pela manhã, lembrou-se da pílula. Correu atrás de uma farmácia, e após passar pelas três drogarias mais próximas de sua casa e dar com o nariz na porta, encontrou uma farmácia aberta no shopping, onde comprou a medicação e a tomou apreenssiva.
Horas depois passou mal. Teve dores de cabeça, enjôos, chegou á vomitar. Mas acreditou que tudo fossem efeitos colaterais da violenta fórmula de hormônios que acabara de ingerir.
Os dias passaram e seu ciclo menstrual atrasou, sentia dores nos seios, apavorou-se. Pesquisou na internet e descobriu que vômitos logo após a ingestão da pílula poderiam acarretar a ineficácia do medicamento. A semana seguinte foi de pânico para Vitória. As dores, enjôos e o atraso do ciclo permaneceram, e ela se viu obrigada á comprar um teste de gravidez na farmácia.
Agora ela vislumbrava com pavor a perspectiva de ser mãe aos vinte e dois anos, tendo recém iniciado o estágio probatório em um trabalho cansativo que precisava ser conciliado com a faculdade á todo o vapor, tendo que pagar o aluguel do apartamento e sonhando com um futuro trabalhando como engenheira, que, subitamente, parecia incrivelmente distante. Teria que trancar a faculdade, grávida não teria energia para trabalhar e estudar, tendo que escolher entre as duas atividades parecia bastante óbvio que seria inevitável abandonar a que consumia dinheiro e permanecer naquela que gerava rendimentos ao final de cada mês. Porém, em algum tempo ela estaria com uma barrigona, seus empregadores notariam, ela já teria terminado o período probatório até a barriga começar a aparecer? Seus empregadores poderiam negar-lhe o emprego se ela surgisse grávida na firma? Como ela poderia evitar isso? Abriria mão de uma licença maternidade? Como? Quem alimentaria o bebê?
Vitória cogitou um aborto. Ouvira falar de drogas abortivas. Medicações que, se tomadas, causavam um aborto espontâneo. Não sabia, porém, se poderia confiar em drogas de qualquer espécie após a peça pregada pela pílula do dia seguinte... Riu sozinha no banheiro. Mas o sorriso virou um soluço, e então um pranto. Vitória não faria isso. Jamais faria um aborto. Não faria uma criança, independente do estágio de gestação, pagar com a vida por um erro que fora dela. Voltaria pra casa da mãe. Paciência. Sairia do emprego, continuaria na faculdade enquanto pudesse, teria o bebê. Sua mãe a ajudaria, jamais lhe viraria as costas, e, aos poucos, ela retomaria sua vida. O período parada seria de quê? Um ano e meio? Dois no máximo? Um pequeno revés. Nada de grave. Vitória poderia superar. Era uma mulher bonita, inteligente, senhora de si. Podia superar aquilo.
Contaria á Tadeu. Ele que agisse como preferisse, ela teria o bebê.
Mas, ao parar pra pensar, raciocinou que, conhecendo Tadeu como conhecia, ele assumiria o bebê. A ajudaria como pudesse, se sacrificaria se fosse necessário. Tadeu era assim. Ela gostava tanto dele por isso. Pelo seu bom-mocismo irritante e encantador na mesma medida. Quando o conhecera já notara essa faceta dele. Tadeu era um bom rapaz. Aparentemente escolhera ser um bom rapaz. Á princípio ela imaginou que, talvez, aquele bom comportamento todo fosse uma fachada, uma arma de sedução usada para se aproximar de mulheres. Conhecera homens desprezíveis na vida, não confiava neles. Mas conforme ela e Tadeu se aproximaram e, ao invés de amantes se tornaram amigos, ela foi percebendo que, consciente ou não, o bom-mocismo de Tadeu era uma qualidade sincera. Vitória jamais descobriu se era uma qualidade que demandava esforço de Tadeu ou se era ao natural, mas isso pouco importava, pois era um comportamento coerente, que ele mantinha sob qualquer tempo.
A amizade deles durava anos, mas, para Vitória e seu histórico de namorados desprezíveis, Tadeu e seu bom-mocismo foram ganhando mais e mais brilho, e ela se pegou, se não apaixonada, extremamente atraída por ele. Com isso ela passou á flertar descaradamente com ele sempre que se ancontravam, mas ele jamais cedia á suas investidas. Á ponto de ela se perguntar se ele não entendia o que ela queria dizer ou se apenas fingia-se de desentendido.
Até aquela noite de quinta, em que, no apartamento dela, ela conseguiu extrair de Tadeu mais do que um sorriso tímido, um abraço fraternal e um "até mais" seguido de um beijo estalado e infantil.
Ela se pegou desejando Tadeu e seus cabelos encaracolados e negros, seu sorriso franco e seus trejeitos algo desajeitados. Foi por isso que ignorou o perigo do sexo desprotegido, e não se arrependeu, pois foi diferente do que ela estava acostumada, foi apaixonado, apaixonante, honesto, cúmplice... Pelo menos até a manhã seguinte, quando ele estava sentado aos pés da cama e perguntou à ela como eles ficavam. Aquilo irritou Vitória. A desencantou. E ela disse que ficavam do mesmo jeito, ainda que não fosse o que ela, de fato, queria.
Se despediu sem abraço fraternal, nem beijo estalado, nem com o abraço apaixonado e o beijo caloroso que imaginara antes de adormecer na noite anterior. E agora, após duas semanas sem falar com Tadeu, aquilo.
Estava grávida dele.
Como seriam as coisas? Talvez Tadeu e ela pudesem... Fazer uma limonada daqueles limões? Quem sabe essa situação servisse para mostrar a ambos que eram bons juntos? Que pertenciam um ao outro mais do que apenas como amigos?
Talvez ficassem juntos, quem sabe Tadeu e seu bom-mocismo a pedissem em casamento? Ela aceitaria? Com mil demônios, sim, sim ela aceitaria. Não tinha certeza se era o que ela queria da vida, pelo menos agora, mas, de qualquer forma, gostava de Tadeu, Talvez o amasse. Se ele fosse o homem que ela imaginava, eles seriam felizes juntos, superariam aquele momento de instabilidade inicial e venceriam juntos, Tadeu, ela e o seu bebê. Criariam a criança e formariam uma família. Ela gostaria de passar o resto da vida com Tadeu. Agora, pensando bem, deixando de lado a raiva daquela manhã de sexta, achava que... Não, não achava. Sabia que o amava. Que podia ser feliz com ele, e que podia fazê-lo feliz se ele lhe desse uma chance. Era uma mulher bonita, inteligente, senhora de si, podia fazer um relacionamento com Tadeu funcionar.
Limpou as lágrimas que ainda lhe escorriam pelo rosto avermelhado, e apanhou o telefone, digitou o número de Tadeu e, enquanto o telefone chamava, olhou novamente o teste de gravidez. A linha azul entre as palavras "Positivo" e "Negativo". Então olhou a embalagem do teste, e viu o diagrama ilustrado na caixa, que mostrava como o resultado do teste era apresetado no produto.
O resultado positivo era representado por duas linhas, uma azul, e uma vermelha. O resultado negativo é que era representado por uma linha azul.
Conferiu a tira plática que tinha na mão:
Uma linha azul. Negativo.
Tadeu atendeu o telefone com a voz sonolenta.
Vitória desligou.
Saltou até o armário do banheiro e o abriu, derrubou algumas caixas e encontrou a embalagem da pílula do dia seguinte. Abriu a bula e encontrou os efeitos colaterais. Hipersensibilidade nos seios, enjôo, confusão no cilco menstrual...
Fez outro teste. Aguardou os três minutos. Constatou a linha azul surgir no campo branco da tira plástica.
Não estava grávida. Não precisaria largar a faculdade, nem abandonar o emprego, nem voltar pra casa da mãe ou tentar engrenar um relacionamento com Tadeu... Estava tudo bem.
Vitória deitou-se na cama, cobriu-se com uma colcha tricotada, e abraçou os joelhos.
Estava tudo bem.
O telefone dela tocou. Ela atendeu, era Tadeu. Ele perguntou, algo sem jeito, se ela havia ligado pra ele. Ela mentiu dizendo que não. Ele respondeu com um "Ah.".
Se desculpou. Perguntou o que ela ia fazer de tarde. Ela dise que não sabia. Ele a convidou pra ir ao cinema ver o filme novo do Tom Hanks. Ela disse que ia pensar, mas que ligava pra ele. Se despediram e ela desligou.
Endireitou-se na cama, encarou o teto e sorriu.
Estava tudo bem.

sábado, 6 de março de 2010

As coisas mudam... ?


Ventava muito naquele dia. O tempo estava seco, ainda não era inverno de fato, mas o outono já arrumava suas malas pensando em se refugiar no hemisfério norte por algum tempo, isso talvez explicasse a temperatura baixa. Estava um friozinho que muitos considerariam gostoso, mas o vento, o ventou açoitava as ruas com um chicote gélido de quando em quando, forçando os transeuntes á procurarem abrigo dentro de grossos casacos e blusas. Ainda assim, era um belo dia. O céu, pintado de um azul sonolento mostrava aqui e ali pequenas rajas brancas de nuvens tênues, o sol brilhava com pouco caso no céu, aparentemente não fazendo esforço algum para aquecer o mundo abaixo.
Andando pelas ruas ela sorriu brevemente ao ver um punhado de folhas em tons de laranja, amarelo, vermelho e dourado ser erguido do chão pelo vento apenas para ser derrubado novamente alguns metros adiante. Sorriria novamente após passar por uma janela aberta e ver um gato siamês se espreguiçar. Ela gostava daquilo, de dourado, vermelho, laranja e amarelo, de gatos, de vento e de dias secos e azuis. Eram coisas que a faziam sentir bem, até a carícia do vento frio em seus cabelos lhe trazia uma sensação de paz e acalento.
Mas ela estava dividida. Não dividida... Fizera uma escolha, mas não tinha certeza de ter tomado a decisão correta. Agora, enquanto parava pra pensar, imaginava tudo o que estava abandonando, e em troca de que. E se perguntava se escolhera certo.
Não que fosse voltar atrás, não era mulher de voltar atrás. Acertava e errava pela própria cabeça, sempre tivera um orgulho silêncioso da própria teimosia, e pagara os preços cobrados por ela sem reclamar, pois tinha satisfação de ter feito a si própria.
Claro, quando em vez, se flagrava imaginando como teriam sido as coisas se tivesse feito essa ou aquela escolha. Não podia evitar, ela não era diferente de mim ou de você, também tinha essas dúvidas, quem não as têm?
De toda a sorte, sempre lidara de maneira satisfatória, para os próprios padrões, com essas pequenas reminiscências. Então o que era diferente agora?
Talves o fato de que as coisas iam bem, de que ela estava em uma situação que, se não era ideal, se não era a que sonhava, ao menos era confortável e acolhia, sabe-se lá... Uma perspectiva de crescimento, talvez.
Mas ela escolhera largar isso. Escolhera um reinício. Reinícios são bons, abrem a perspectiva de um novo final, mas como saberemos que final teríamos tido sem o reinício se não permanecermos em um caminho para ver como acabará? Era essa dúvida que a torturava naquele momento. Não estava trocando o certo pelo duvidoso, trocava o menos duvidoso pelo quase desconhecido, o que era uma perspectiva que não a agradava nem um pouco. Por que estava arriscando-se daquela forma?: O que esperevava encontrar? Uma segunda chance? Mas já não tivera uma? Não a estava vivenciando até poucos meses atrás? Queria então uma terceira chance da qual nunca ouvimos falar? Será que não haviam regras contra elas, as terceiras chances? Ela esperava francamente que não.
As coisas pareciam, ao mesmo tempo tão diferentes e tão iguais... Ela gostava dessa perspectiva. Algumas coisas mudam, outras não... Mas será que as coisas que ela gostava não mudariam? Será que as que a incomodavam mudariam? Ela não sabia... Não tinha certeza. Mas não queria voltar atrás.
Ou talvez fosse exatamente o que ela queria.

terça-feira, 2 de março de 2010

As Mulheres Erradas.




Augusto entrou no elevador do hotel, apanhou uma pequena chave do bolso, a encaixou no espaço próprio sob o painel de botões, a girou e apertou o botão onde se liam as letras C e P.
Ele ajeitou cuidadosamente a gravata vermelha que repusava sobre uma camisa branca impecável, e fechou um dos quatro botões do paletó preto imaculado de tão limpo e belíssimamente cortado que usava.
Passou a mão nos cabelos bem penteados e ajeitou os óculos que se equilibravam sobre seu nariz adunco.
Virou de costas para a porta do elevador encarando o espelho que dominava aquela área, viu o próprio reflexo, equilibrou o peso do corpo sobre o pé direito, e então sobre o esquerdo. Passou as costas da mão espalmada pelo ombros removendo uma quase imperceptível partícula branca que o incomodou sobremaneira. Passou a mão pela bochecha constatando que o barbeado da manhã ainda estava em condições embora fossem mais e onze da noite, fez propósito de voltar ao barbeiro no dia seguinte, repetir o barbear e dar uma gorjeta generosa ao sujeito.
Lambeu os dentes verificando se o clareamento que fizera dois meses antes ainda não fora maculado pelo café e pelos cigarros que consumia em quantidade industrial. Pareciam bastante brancos, mas ele não tinha uma base de comparação naquele momento. Apalpou um volume entre o peito e a axila esquerda, e se virou novamente encarando a porta do elevador. Suspirou. Olhou o relógio, marcava onze e dezessete da noite, conferiu o relógio digital no painel do elevador, ele marcava onze e vinte e um. Estava errado, pensou, sentindo uma breve e injustificada sensação de regozijo por ter superado aquele flat caríssimo no tocante ao horário.
Suspirou novamente, bateu o pé no chão duas vezes e observou se podia enxergar o próprio reflexo na superfície do calçado. Não podia. Não se preocupou, sempre encarara esse estigma do brilho dos sapatos como uma licença poética.
Foi quando as luzes dentro do elevador se apagaram, e um solavanco fez o equipamento parar.
Augusto instintivamente se segurou nas paredes com as mãos, ignorando o fato de que se o elevador, de fato, caísse, aquele gesto seria tão útil quanto fogos de artifício embaixo d'água.
Foi até o painel do levador, lembrou-se que no prédio onde sua avó morava quando ele era jovem havia um botão com a legenda campainha, e que, quando aquele botão era pressionado, uma campainha soava como uma trombeta do apocalipse. Ele adorava tocar aquela campainha na infância, o problema é que o zelador do prédio de sua avó não estava em sintonia com as idéias de diversão do, então, pequeno Augusto.
Vasculhou o painel do elevador tentando encontrar algo semelhante ao botão da infância. Havia um abaixo do qual se lia "interfone", o pressionou por um instante sem resposta. Pressionou-o novamente, mantendo o gesto por alguns segundos, entretanto, novamente, não houve nenhum resultado. Associou o interfone á energia elétrica. Não funcionaria se não houvesse luz no edifício.
Procurou seu celular no paletó, retirou o aparelho do bolso interno e tocou na tela, ligando-a. Constatou porém que, embora pudesse usar planilhas, aplicativos, ouvir músicas e ver vídeos, não estava na área de cobertura para o sinal telefônico. Reposicionou o aparelho de volta ao bolso.
Abriu o botão do paletó e, metódicamente, despiu a peça, dobrando-a com cuidado e a pendurando em seguida na barra de metal posicionada sob o espelho do elevador.
Afrouxou o nó da gravata e sentou no chão, apoiando as costas na parede, descansando os braços sobre os joelhos flexionados.
Encarou o elevador sombrio tentando discernir as formas nas quais não prestara atenção ao entrar, mas não conseguiu. Estava escuro demais. Tirou os óculos, fechou as hastes e os colocou no bolso da camisa. Jogou a cabeça pra trás e a escorou na parede, mas imediatamente colocou-a novamente em posição ereta e ajeitou os cabelos.
Olhou para a porta do elevador e suspirou.
Estava cansado. Aquele pequeno imprevisto o lembrara de como estava cansado do trabalho, das viagens, das interações sociais falsas, da vida como a estava vivendo.
Não queria mais fazer aquilo. Era maçante. No início, como em qualquer início, há a sensação de novidade, uma adrenalina intrínseca ao desconhecido e ao aprendizado, mas agora Augusto de tornara um mestre no que fazia. E sabia que o era. Augusto sempre fora vaidoso, sempre tivera orgulho do seu próprio desempenho em tudo que fosse bom. Claro, ele não era bom em tudo. Augusto jamais fora bom com números, por exemplo, ele jamais gostara de matemática, tivera problemas na escola por isso.
As ciências exatas, especialmente matemática, sempre o deixaram sonolento, ele não conseguia se concentrar, prestar atenção em como se faziam as tarefas. Isso o incomodava, mas ele aprendeu á conviver com essa deficiência, aprendeu á conviver com todas as suas deficiências. Não era bom com as palavras. Não que não tivesse um bom vocabulário, possuia um bom vernáculo, porém, não conseguia se expressar na frente das pessoas, começava uma frase, e, na metade, imaginava que poderia tê-la começado melhor, então, terminava a que começara de qualquer jeito, e iniciava outra, querendo dizer a mesmíssima coisa, mas com outras palavras. Posto isso, Augusto não era de falar muito.
Era educado, polido, genitl, ás vezes em excesso, levava consigo a máxima de tratar as pessoas como gostaria de ser tratado, ás pessoas por vezes, confundiam isso com fraqueza. O destratavam. Augusto, no início, detestava isso, suava de ódio. Rangia os dentes. Apertava as mãos.
Com o tempo passou á desprezar todas as pessoas. Todas, sem exceção. As encarava como vermes. Menos que vermes. Passou á ver todos como ferramentas. Como meios para um fim. Isso foi de encontro á carreira que escolheu.
Na verdade, ele não escolheu sua carreira, a carreira acabou escolhendo á Augusto.
Foi por acaso.
Na adolescência Augusto tinha amigos que usavam drogas ilegais. Augusto jamais usou. Augusto não fumava, não bebia, e não usava drogas. Andava com aqueles jovens independente do fato de eles usarem drogas, gostava deles, e não se importava com o fato de, eventualmente, eles estarem drogados.
Numa ocasião, o traficante local mandou um cobrador "conversar" com um dos amigos de Augusto.
O sujeito foi, obviamente, bruto com o amigo de Augusto. Augusto, naquela época ainda era dado a arroubos de ira. Se atracou com o valentão, e arrebentou-lhe a cara de pancadas, parando apenas ao ser contido por seis pessoas.
O traficante ficou sabendo, mas ao invés de mandar alguém atacar Augusto, entrou em contato com ele. Queria lhe oferecer um trabalho.
Augusto não acreditou. Mas o sujeito insistiu, mandou dinheiro pra Augusto por um dos seus amigos, casualmente o mesmo que fora atacado pelo cobrador e seguia frequentando a mesma boca de fumo. Se Augusto não quisesse, não precisava ter nenhum contato com Cabelo, o traficante, receberia trabalhos e pagamentos á distância.
Augusto recebeu duzentos reais, e um endereço com uma única recomendação escrita á mão com caligrafia apressada e ignorando a gramática:
"Desse a porrada."
Augusto tinha dezesseis anos, duzentos reais significavam um tremendo conforto para seu final de semana adolescente.
Foi até o endereço, uma vila com casas velhas e pobres. Parou em frente á um casebre com pinturas descascadas, acariciou as duas notas de cem reais no bolso da calça jeans, suspirou e entrou.
Lá dentro havia apenas um sujeito de cerca de quarenta anos, muito magro, deitado em um colchão no chão de uma sala vazia que cheirava muito mal.
Augusto hesitou antes de atacá-lo, mas quando o fez, foi com uma ferocidade impressionante. O sujeito estava desacordado quando Augusto parou de surrá-lo.
Na semana seguinte, o amigo de Augusto lhe entregou outro envelope com duzentos reais, um endereço, e uma frase:
"Foi bem a utima, faiz ingual."
Nas oito semanas seguintes Augusto recebeu envelopes e recados semelhantes. Até que um envelope mais grosso chegou. Dentro haviam dois mil reais, um revólver, e um endereço e uma única frase abaixo na mesma caligrafia de sempre:
"Dois negão, apaga."
Augusto contou o dinheiro, olhou a arma e foi pra casa pensativo.
Dois mil reais... Vinte notas de cinquenta e dez de cem reais enroladas em um elástico amarelo.
Augusto poderia fazer tanta coisa com aquele dinheiro... Podia comprar roupas legais, uma TV grande, assinar uma TV á cabo, ou fazer farra com seus amigos em um prostíbulo caro.
Mas matar alguém... Ele jamais pensara em matar ninguém. Era impulsivo, violento quando brigava, achava até que, em um arroubo, poderia, acidentalmente, matar alguém. Mas sair de casa, procurar uma pessoa, e matar essa pessoa de maneira fria... Premeditada... Isso ele não sabia se poderia fazer.
Durante o resto daquela tarde e toda aquela noite, Augusto pensou, pensou até sua cabeça doer e seus olhos se fecharem. Pensou no que estaria fazendo se aceitasse aquele dinheiro, se matasse dois homens.
Pensou em como aquela experiência o alteraria, que preço estaria pagando em um nível metafísico, se preocupava, não apenas com as leis dos homens que transgrediria, mas também com as leis de Deus. Não tinha lá uma crença muito firme em nenhuma religião em particular, sua avó era uma católica devotada, mas estava longe de ser uma boa pessoa. Seu pai não acreditava em nada e sua mãe acreditava em tudo, de Budismo á gnomos. Augusto estava imaginando como seria matar alguém. Remover aquela pessoa da existência. Dois mil reais... Mil por cabeça...
No dia seguinte, em frente á um boteco pouco maior que um cúbiculo de banheiro público, repleto de sacos de pastelina e garrafas de cerveja e cachaças variadas sobre o balcão, Augusto, vestido com calças jeans, agasalho preto e boné verde escuro vislumbrou dois homens negros sentados á uma mesa. Eles dividiam uma cerveja, um deles, mais velho, era gordo e tinha cabelos grisalhos nas têmporas, bebia tranquilamente enquanto o outro, de bigode, magro e de cabeça raspada, olhava para os lados sem parar. Eram as únicas pessoas fora do boteco. Do lado de dentro, um homem e uma mulher estavam sentados em uma mesa e pouco adiante, quase colado ao balcão, havia um homem de idade avançada comendo um pastel de aparência pouco recomendável.
Augusto se aproximou olhando os dois. O gordo dizia alguma coisa que ele não conseguiu entender, o mais jovem fez um sonoro "Tsc", mexendo muito os braços.
Augusto acariciou a arma em seu bolso. Acertaria os dois? Jamais empunhara um revólver na vida. Jamais disparar uma arma de verdade... Queria matar os dois? Estava tão interessado naqueles dois mil reais? O homem gordo riu alto de alguma coisa, e se virou encarando Augusto. Só então ele percebeu o quanto se aproximara.
O gordo olhou para Augusto, e para seu companheiro de mesa, então, novamente para Augusto.
O rapaz agiu mecanicamente. Não pensou, apenas agiu. Tirou a mão do bolso já com o revólver empunhado, apertou duas vezes o gatilho mirando o sujeito magro de bigode, um tiro pegou no rosto, entre o nariz e o olho esquerdo, o outro no peito, bem no meio do peito.
O gordo tentou se levantar, mas Augusto deu dois passos pra trás, e atirou uma vez na nuca do gordo, que caiu pesadamente sobre a cadeira de metal e então, no chão.
Dentro do boteco a mulher gritou e se abaixou protegendo a cabeça, o homem se jogou no assoalho de ladrilhos cor de laranja, e o botequeiro se escondeu atrás do balcão, apenas o velho seguiu impassível, comendo seu pastel, alheio á tudo.
Augusto olhou os dois homens no chão. O mais gordo estava morto. Os olhos abertos e desprovidos de brilho. O outro se retorcia, gemia. Abriu os olhos e mirou Augusto. O rapaz o olhou por um segundo, ergueu o revólver e disparou de novo. Na testa do homem.
Se deteve brevemente olhando o sangue claro e grosso, quase cor de rosa que escapava da cabeça do gordo. Saiu sem dizer nada. Andou por alguns quarteirões, tirou o agasalho que usava sobre a camiseta e o amarrou na cintura, e jogou o boné e a arma no lixo. Antes de largar o revólver, o limpou com cuidado usando a própria camiseta.
Foi a primeira vez que Augusto matou alguém. Ele fez o serviço por mais do que dinheiro. Ele fez o serviço por curiosidade. Queria saber, mais do que, como era matar alguém, como se sentiria após matar alguém.
Após o crime, duas conclusões chegaram-lhe á mente. Uma, ele não sentiu nada de particularmente diferente ao matar aqueles homens. Sentira um frio na barriga, uma leve apreensão, uma injeção de adrenalina antes de puxar o gatilho, mas não fora mais intensa do que o que sentira ao fazer sexo pela primeira vez, nem de como se sentia antes de uma briga.
Segundo, após matar aqueles dois desconhecidos, Augusto não se sentiu nada diferente, exceto por estar dois mil reais mais rico. Descobriu, então, que poderia fazer aquilo. Que poderia ser bom naquilo.
Nos meses seguintes, Augusto seguiu surrando devedores do tráfico, após quatro meses, recebeu dois mil reais e uma nova ordem de morte, e cumpriu com a mesma frieza de antes.
Cabelo e ele se encontraram. O traficante felicitou Augusto por seus trabalhos até ali, lhe deu cinco mil reais e uma pistola prateada. Era um trabalho para um sujeito graúdo. Não era um amigo de Cabelo, era um sujeito endinheirado que queria que "apagassem" o namorado da filha. Augusto pegou o dinheiro, recebeu as informações de Cabelo, e saiu.
Fez o trabalho três noites mais tarde. Matou o sujeito saindo de uma danceteria.
Roubou a carteira, o telefone e o relógio do pobre coitado, mais para afastar qualquer suspeita do sujeito "graúdo" que encomendara o assassinato.
Sua fama se espalhou no submundo. Recebia, através de Cabelo, vários trabalhos semelhantes. Matou devedores, matou policiais, matou advogados corruptos, matou um político. Os preços variavam de acordo com a dificuldade e a importância do alvo, o valor mais caro que cobrara fora de setecentos mil reais para matar um candidato á senador. Após quinze anos, Augusto perdeu as contas de quantas pessoas matara. Raramente sabia dos motivos, nunca queria saber. Quanto menos soubesse das vítimas melhor.
Mas agora, aos trinta e um anos, sentado em um elevador parado, ele se perguntava se já não fizera o suficiente.
Estava cansado. Cansado de matar pessoas. Acumulara uma imensa quantia, não passaria por problemas financeiros.
Abrira uma empresa de informática como fachada para o dinheiro que recebia pelos assassinatos, já acumulara mais de uma dezena de milhões de reais. Poderia se aposentar agora e viver bem até o fim da vida. Quem sabe uma casinha no interior do estado?
Casaria com uma boa moça, não as vagabundas caras com quem se distraia e desopilava as suas tensões, uma boa moça, carinhosa, que o amasse. Talvez um filho, ou dois...
A luz voltou. O elevador voltou á se mover. O mostrador digital mostrava o número dezoito, e seguiu em direção ao dezenove.
Augusto levantou, alisou a camisa, recolocou os óculos, ajeitou gravata, vestiu novamente o paletó. Tirou a arma do coldre e encaixou o silenciador no cano da pistola. O elevador parou após o vigésimo nono andar com uma campainha fazendo "ping", e a porta se abriu para um hall bem decorado que separava o elevador de uma porta dupla de madeira. Dois homens gordos vestindo ternos azul-marinho o encararam incrédulos. Augusto matou ambos, um tiro na testa de cada um.
Cruzou o pequeno hall desviando dos cadáveres, abriu a porta de madeira e entrou em uma espetacular suíte duplex lindamente decorada. Subiu as escadas cobertas com um tapete felpudo branco, entrou no quarto onde uma gigantesca cama king size dominava o ambiente. Uma luz alaranjada entrava pelos sacadões, um homem de meia idade e uma mulher muito bonita e jovem devidiam a cama. Augusto pressionou o cano da arma contra a testa do homem e puxou o gatilho antes que ele abrisse os olhos.
Ao tirar os olhos do cadáver deparou-se com a mulher. Ela o encarava com os olhos esbugalhados, apoiada nos cotovelos. Os cabelos loiros e finos estavam sobre seu rosto. Ela olhou o homem morto á seu lado, e, encarando Augusto sussurrou um "Por favor.".
Augusto a encarou. Ela era bonita, jovem. Parecia uma pessoa doce. Foi a impressão que ele teve ao vê-la dormindo, não podia confirmar agora pois ela estava desfigurada de horror. Mas ela tinha um belo corpo, belos olhos. Augusto podia se ver vivendo com uma mulher como aquela. Quem sabe? Poderia poupá-la. A levaria com ele. Ela reconheceria sua compaixão, aprenderia á viver com seus defeitos e a admirar suas qualidades, e ela seria a pessoa que dividiria aquela casinha com ele no interior. Ele abaixou a pistola, e fez uma expressão amigável com o rosto.
Foi quando a mulher, em um movimento rápido, enfiou a mão sob o travesseiro do homem morto, e de lá sacou uma pistola. Ela mirou e disparou duas vezes contra Augusto. Um tiro passou longe dele, o outro, no entanto, atingiu-o na coxa esquerda, arrancando-lhe um grunhido de dor e derrubando-o no chão. A mulher se levantou gritando, largou a arma e correu em direção á escada.
Deitado no chão Augusto mirou nas costas da mulher e atirou. A bala atingiu o alvo e ela rolou pelas escadas. Augusto se ergueu com dificuldade, apanhou os óculos que haviam caído de seu rosto e mancou até o topo da escada. Desceu com dificuldade, parando ao lado da moça, estatelada no meio de uma poça de sangue. Ela o encarou ainda com pavor no olhar, tentou dizer algo, mas seu balbucio saiu gorgolejado de sangue que lhe subia pela garganta.
Augusto apontou a arma para a cabeça da moça, e a matou com um tiro certeiro.
Andou rengueando até o elevador, por onde desceu silenciosamente com uma ponta de aflição de que ele parasse novamente. Isso não ocorreu, e ele saiu tranquilamente do hotel, andou uma quadra e meia com dificuldade e entrou em um táxi.
Foi somente após um médico em necessidade de dinheiro remover a bala de sua coxa, lhe suturar, dar analgésicos, receber mil e quinhentos reais pelos serviços ir embora, que Augusto se deu conta que, em quinze anos de profissão, fora a primeira que se ferira.
Jamais sofrera nada além de um eventual golpe na cabeça ou torso, na época em que surrava devedores. Agora levara um tiro. Justamente quando pensava em largar a atividade, casar e ter filhos.
Não era de acreditar em sinais, mas resolveu interpretar aquilo como um. Apanhou um celular vermelho-escuro de uma gaveta, ligou o aparelho e vasculhou a agenda repleta de nomes femininos. Escolheu um aleatóriamente, falou com uma mulher, combinou um preço e se pôs á esperar pela chegada da prostituta.
Melhor se divertir com as mulheres erradas do que ser alvejado pela mulher certa.