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sexta-feira, 26 de março de 2010

Menelau e o Diabo


Menelau acordou naquela madrugada com dor de cabeça. Era a terceira vez seguida que aquilo acontecia. Ás três da manhã, e Menelau, com a cabeça latejando como se fosse açoitada pela bateria da Imperadores do Samba, mantinha os olhos fechados por saber que abrí-los e se levantar não aliviaria sua violenta nevralgia.
Tentou respirar fundo, de forma compassada, olhos fechados e silêncio, apenas o som da própria respiração e os carros passando na rua abaixo. Inspirava e expirava, inspirava e expirava, inspirava e expirava, num ritmo cadenciado que foi, aos poucos, entrando no ritmo do latejar de sua cabeça. Tambores de selva.
Era isso que parecia. O som de tambores primitivos em uma selva escura com árvores centenárias de galhos retorcidos e folhagem densa por onde a luz não passa. Aquele pensamento opressivo fez a dor de cabeça de Menelau aumentar. Ele trancou a respiração por um segundo e apertou a cabeça entre as mãos. Só então ele se deu conta: Continuava ouvindo uma respiração compassada dentro do quarto.
Abriu os olhos num átimo, e distinguiu, sentado aos pés da cama, um homem.
Cabe dizer aqui, que Menelau morava sozinho, o que explica a reação apavorada dele.
Ele sentou, mirando o estranho sentado aos pés de sua cama, olhou para o telefone celular no criado-mudo ao lado da cama, mas o estranho falou, com uma voz macia e profunda, que encheu o quarto com um calor sufocante:
-Tu não vais precisar disso, Menelau. Tu não precisas chamar por ajuda. Eu estou aqui pra te ajudar.
Algo na voz daquele homem, á despeito do calor no quarto, gelou até a alma de Menelau. Ele encolheu as pernas e as abraçou. Mirando ainda o estranho, buscou fôlego para falar, mas antes que balbuciasse qualquer coisa, o estranho falou novamente:
-Quem tu achas que eu sou?
Menelau não fazia ideia, entretanto, começava á torcer para que fosse um ladrão. Com um ladrão saberia lidar. Aquelas recomendações que as autoridades fazem na TV em época de onda de assaltos, manter a calma, não reagir, falar o menos possível, entregar o que o meliante exigir... Tudo isso estava bem vívido na mente de Menelau, mas aquilo... Aquilo era diferente. Algo transcendental, sobrenatural, ou seja lá como pudesse ser rotulada. Menelau não gostava.
O homem perguntou de novo, sua voz firme e baixa, pouco mais que um sussurro:
-Quem tu achas que eu sou, Menelau?
-Eu não sei. -Balbuciou Menelau, horrorizado.
-Chuta. - Aconselhou o sujeito, casual.
-Um fantasma? -Sugeriu Menelau, com alguma esperança.
-Tu podes chutar melhor que isso, Menelau. Tu já chutaste melhor que isso. Lembra, na sexta-série? Na gincana de Ciências? Ninguém sabia, tinha passado e repassado, valia o dobro de pontos, e tu chutou. Chutou por que a História só ama aos vencedores. "Simetria Radial" tu disse, fingindo ter certeza, e quando a professora gritou que estava certo e teu grupo comemorou, tu lançou um sorriso superior pra Viviane, como se tu tivesse planejado aquela ação inteira.
Menelau sentiu seu sangue gelar. Mal lembrava daquela ocasião. Era verdade, ele chutara descaradamente, depois usou aquele pequeno triunfo para fazer charme pra Viviane, a moreninha que viera de Brasília com o irmão. Flertava muito com ela. Foi ali que ele conseguiu coragem pra finalmente dar um passo á frente e tascar uns beijos na Vivi.
-E foram bons, não foram? Aqueles beijos, eu digo. - O estranho falara novamente, arrancando Menelau de seu devaneio e o colocando novamente na realidade imediata e aterrorizante instalada em seu quarto.
-Não foram bons? Os beijos? - Insistiu o estranho.
-Foram. Foram muito bons. - Aquiesceu Menelau, incerto. Pensou, então, que não havia razão para a incerteza, os beijos de Viviane fora excelentes, ela beijava bem, na verdade, ela meio que ensinou Menelau á beijar, ele era um beijador menos que amador. Se não fosse por Viviane ele jamais teria feito o sucesso que fez mais tarde com-
-Andréia... A Andréia da farmácia. Outra beleza...
Fora o homem novamente. Era verdade, era o que Menelau diria á seguir. Andréia, filha do dono da farmácia era uma morena voluptuosa. Desenvolveu-se cedo, tinha um corpaço de mulher aos treze anos, os guris da sala e da escola inteira sonhavam com as curvas de Andréia. E Andréia, sabe Deus por que, dera bola á Menelau. Menelau que, à época, "ficava" com Viviane, e, sem nenhum peso na consciência, desmarcou o encontro com Vivi atrás do museu após a aula para se encontrar com a voluptuosa Andréia. E, naquele encontro quente com Andréia, quando ela elogiou os beijos de Menelau, ele sorriu, o mesmo sorriso pretencioso e malicioso que dera após chutar "simetria radial" na gincana de biologia, ou naquele tempo ainda era "ciências"? Bom, não importava, era um sorriso pro lado, pretencioso, malicioso, algo cínico, e foi o que Menelau lançou para Andréia antes de beijá-la novamente, e agarrar com firmeza a cintura dela, e depois de um beijo longo deu um beijo curto, apenas no lábio superior dela, exatamente como Viviane fizera nele nos dias que sucederam a gincana.
-Eu, particularmente, adorava o sorriso. Por que tu parasse com ele? - Inquiriu o interlocutor misterioso de Menelau.
-Sei lá... Acho que... Não tive muitas outras oportunidades. - Respondeu Menelau, que por um momento esqueceu a estranheza da situação e foi o mais honesto possível. Até por que, sendo bem franco, Menelau também sentia um pouco de falta daquele sorriso.
-Ah, oportunidades tu teve. Apenas não as aproveitou. - Disse o sujeito aos pés da cama, passando as costas da mão na camisa preta impecável que vestia. E prosseguiu:
-Por que tu não aproveitou, por exemplo, naquele trabalho da faculdade? Aquele sobre os ciganos. Geografia Humana, não era?
-Era... - Concordou Menelau, puxando pela memória. -Professor Pedro Rocha, que nem o jogador do São Paulo.
Menelau lembrava do trabalho. Povos sem pátria. Queria os Palestinos, que eram significativos e para o qual fontes de pesquisa eram praticamente inesgotáveis, no sorteio ele e seu grupo acabaram com os ciganos. Praticamente nenhuma literatura.
Como todos os membros de seu grupo trabalhavam á tarde, dividiram as tarefas, e juntariam tudo ao final do prazo dado pelo professor.
Antes, porém, de iniciar o trabalho, Menelau foi até o professor Pedro Rocha e comentou as dificuldades em encontrar fontes de pesquisa, o professor concordou, e deu-lhe um par de revistas antigas que continham algumas informações sobre o tema.
Menelau guardou-as para si, fez seu relatório um dia antes do prazo final de entrega e, durante a apresentação do trabalho, inventou e contou uma história sobre ciganos pouco amistosos que o teriam expulsado de uma acampamento nos arredores de Guaíba. Sucesso total, nota dez, parabenizações pessoais proferidas pelo professor. A únca apresentação á receber tal honraria.
Uma colega sua, Jaqueline, que passara as duas semanas do trabalho pesquisando na biblioteca e na internet e, após a apresentação recebera algumas críticas, olhou para Menelau com admiração e uma ponta de inveja. Era a chance perfeita para o seu sorriso, aquele sorriso algo superior, algo cínico e pretencioso.
-Mas tu não sorriste.
-Não... Não sorri. Bom, sorri.
-Sorriu um sorriso simpatético. Como quem se desculpa pelo próprio sucesso.
-Pois é... Eu sei... Sei lá. Me senti mal, sabe? Ela passou duas semanas pesquisando. Coitada da Jaque. Tava á beira de um ataque de nervos. Todo mundo tinha medo do Pedro Rocha. Ele era o professor que não dava dez pra ninguém, e tal.
-Tu tiraste o dez na prova do bimestre anterior. Era outra chance de dar aquele sorriso. Ainda mais depois de ter lutado pelo dez.
-Não foi bem luta... Eu recebi a prova com 9,5 e fui perguntar qual havia sido meu erro na questão do 0,5.
-E ele reconheceu que estava errado e te deu dez. Era outra chance de dar aquele sorriso. Por que tu não destes?
-Não me senti assim tão superior. Fui só oportunista.
-Chance que todos os outros tiveram e não usaram.
-Não, só eu tive. Ninguém mais tirou nove e meio.
-Mais uma razão pra dar o sorriso. E tu não destes.
-Pois é...
-Por quê?
-Não... Bom. Sei lá. Não queria fazer aquele papel... Do cara que se acha o maioral, sabe?
-Qual o problema em ser o maioral?
-Em ser o maioral? Nenhum. Mas se achar o maioral sem ser... Bom, isso é algo patético.
-Patético é se desculpar por ser bom em alguma coisa. Tu consegues imaginar um leão se envergonhando de ser um excelente caçador? Tu consegues imaginar ele se desculpando, ou lançando um olhar culpado e um sorriso simpatético pra mãe da zebrinha que ele acabou de abater?
-Na verdade quem caça, mesmo é a leoa.
-Filho da puta. Tem razão. É a leoa. Tu me pegasse. Cadê aquele sorriso?
-Ah... Não é pra tanto. Não foi... Não foi um grande momento. Não merece aquele sorriso.
-E o que mereceria aquele sorriso?
-Hein?
-O que mereceria aquele sorriso, Menelau? Que feito grandioso valeria aquele sorriso? Vários daqueles?
-Ah... Sei lá. Eu era um guri exibido na época daquele sorriso. Orgulhoso. Não era uma boa pessoa.
-Não era... Não era uma boa pessoa? Tu era bom em tudo o que tu fazia naquela época. Tu era capitão do time de futebol, no Vôley era o único que bloqueava as cortadas do Sílvio, todas as gurias da escola queriam dar pra ti! Tu tirava as melhores notas da tua turma, andava com um pessoal barra-pesada e nunca foi influenciado. Senhor do castelo, Menelau. A firmeza de um conde, de um fidalgo. E tu me diz que não era uma boa pessoa? Tu era excelente, Menelau!
-Nah... Não era tudo isso... Eu tinha meus momentos, mas não era... Não era tudo isso. Eu era um fedelho orgulhoso, achava que sabia tudo.
-Mas tu sabes tudo... Tu sabes um pouco de tudo, Menelau! Tu conversas com qualquer pessoa, as pessoas se espantam com tudo que tu sabes! Tu sempre arrancas uma expressão surpresa das pessoas! É sempre mais do que elas esperam, Menelau! Tu tens o direito... Não, tu tens a obrigação, de dar aquele sorriso. Tu tens a porra da obrigação de dar aquele sorriso, entendestes? A porra da obrigação!
O ego de Menelau estava, de fato, inchado. Ele olhava o sujeito, vestido de negro, os cabelos escuros caindo na testa por causa do movimento exaltado que fizera enquanto numerava as qualidades de Menelau, sua camisa e calça, impecavelmente negras, seus sapatos de bico fino muito sujos de barro destoando um pouco do resto da roupa, os olhos faiscando de excitação. O sujeito mirou Menelau:
-O que valeria aquele sorriso, Menelau? Me conta. Seria a Valéria voltar? Ela volta. Foi tu quem dispensou ela. É só tu querer que ela volta. Ela nunca esqueceu de ti. Hoje, com o namorado novo, ela olha pro teto com ele em cima dela e lembra de ti. Ela lembra de gemer o teu nome baixinho, Menelau. Na verdade, logo que eles começaram á namorar, ela fez isso, deu até briga, sabe?
-Não... Eu... Eu ainda gosto da Val, mas não quero ela de volta. Nosso namoro era um pesadelo.
-Eu sei... Eu sei... Tu podias ter traído ela e não traiu. Mais de uma vez.
-É, mas até aí, ela podia ter me traído, também. Várias vezes. Talvez tenha traído, vai saber...
-E tu não ligas?
-Não... Já passou.
-Olha só... Que estóico... Parece que eu estou falando com Marco Aurélio.
-Ah, que isso... Capaz.
-Então, não muda de assunto... Tu tá tentando me enrolar e conseguindo. Não me faz perder o foco, seu safado. O que vale um sorriso daqueles? Dobrar tua produção no trabalho sem se esforçar? Manter o faturamento daquele verão, mais de oitenta por cento acima da média? Os teus colegas de cabelo em pé, e tu ali, tranquilo, fazendo chover!
-Não... Não, não. Aquele trampo nem... Eu nem curto aquilo. É só um lance que eu faço pra viver. Não tem nada de agradável lá. Eu só faço a minha parte.
-Olha só... O pilar da empresa, e essa modéstia. Fala, fala o que seria, qualquer coisa, Menelau. Fala que a gente dá um jeito, eu topo qualquer parada pra ver aquele sorriso de novo, qualquer coisa! Escrever um romance best seller em uma mês? Por que tu podes, nós dois sabemos das tuas extravagâncias literárias! Gol de bicicleta na final do campeonato da firma? Tu sabes que pode, é só alguém cruzar à feição que tu guardas, tu é assim, um craque lúcido e discreto, um Zidane amador. O que é? O quê? Impedir um assalto e nocautear o bandido? Foto na Zero Hora entregando o marginal armado pra PM? Com essa direita a gente sabe que rola, é só tu teres a oportunidade, encontrar um tolo incauto que tenha a ousadia de mexer contigo... Fala, Menelau, fala que eu te escuto, é só dizer que a gente arranja.
O sujeito estava ansioso, as mãos crispadas sobre as cobertas de Menelau, falava rápido, arremessandro perdigotos em direção á Menelau, seu hálito cheirava á carne crua, os cabelos, agora, em completo desalinho, os olhos arregalados.
-Olha - Começou Menelau. - Eu já entendi quem tu é... Por que... Por que esse interesse em mim? Eu não sou, sei lá, eu não sou um grande homem de nosso tempo, sou um sujeito comum, bem mediano, até... Por que... Por que essa atenção?
-Ah... Eu devia saber que não dá pra te enganar, Menelau. Tu és inteligente e perspicaz demais pra mim, mereces uma explicação. Veja bem, Menelau, - Começou o estranho se ajeitando na cama de Menelau:
-Como eu posso te explicar... Sabe quando tu comes em um restaurante caríssimo, e a comida é deliciosa, algo pretenciosa, cara, e depois que tu comes, tu tens a certeza inatacável da experiência gastronômica superior, mas, por mais deliciosa e perfeita que fosse aquela comida, falta algo, tu não sabes o quê. Tu comestes a entrada, o prato principal, o acompanhamento, a sobremesa e o cafézinho, mas faltou alguma coisa. E então, tu sai do restaurante, entra no carro, dirige duas quadras e para no sinal, e um moleque te oferece uma paçoca, e tu compra, compra mais pro guri não voltar pro meio-fio de mãos vazias, tu compra e larga ali por cima do painel do carro.
Então, por acaso, pra não enfiar o dedo no nariz, no sinal seguinte, algo distraído, tu comes a tal da paçoca, e, quase como por mágica, ela te dá uma sensação de completude e satisfação profundas, e tu percebe que, aquela paçoquinha cretina, vagabunda, bagaceira, em sua infinita simplicidade, era o que faltava à lauta e cara refeição do restaurante. Entendeu, Menelau? Genocídios, estupros de crianças, abortos e desvios monstruosos de dinheiro da saúde me alimentam, agradam ao meu paladar, são meu prato principal, mas as travessuras, os pequenos orgulhos vazios... Esses me deliciam.
Menelau o encarou com serenidade.
-Cachorro acorrentado. - Disse.
-Quê? - Perguntou o sujeito, recuando como se levasse um soco na cara.
-Tu é um cachorro acorrentado. Só me morde se eu chegar perto. - Explicou Menelau.
-Do que tu estás falando, Menelau? -Retrucou o sujeito. Já não estava tão impecável, a camisa já estava amarrotada e felpas brancas da coberta de Menelau se grudaram á sua calça.
-Eu não quero nada do que tu tem á oferecer. O que eu quero eu consigo sozinho, ou não consigo sozinho. Não preciso da tua ajuda, nem quero a tua ajuda. Obrigado.
-Filho da puta! Filho de mil putas! Como que tu, um medíocre de merda, com o nome de um corno histórico da literatura tem a audácia de me dizer "não"? Quem tu pensa que é, desgraçado? Miserável! Imbecil! Vai morrer sozinho e ser esquecido uma semana depois! Uma semana, no máximo! Engasga com cuspe e morre cretino! Tu podia ter sido grande, mas em algum momento na porra da tua adolescência tu resolveu ser "uma boa pessoa" e virou um monte de nada, um medíocre, um cretino que não é bom de verdade em porra nenhuma, em porra nenhuma!
O sujeito cerrou os punho jogou a cabeça pra trás e gritou alto, fazendo tremer o apartamento, então encarou Menelau e, quando abriu a boca para falar, Menelau acordou.
Estava deitado na cama, no quarto, e não havia ninguém sentado à seus pés.
Ele massageou as próprias têmporas e se deu conta que não estava mais com dor de cabeça.
Afofou o travesseiro, e o virou, deitando a cabeça no lado fresco da fronha. Antes de fechar os olhos, sorriu pro lado, algo cínico, algo superior, talvez até um pouquinho pretensioso, mas em paz consigo mesmo.

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