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quinta-feira, 18 de março de 2010
Conforme o Plano.
A frase atingiu Teobaldo como um murro.
-Eu não gosto mais de você.
Teobaldo encarou Cristina por alguns segundos, a boca entreaberta. Se deu conta disso e imaginou o quanto seria patética sua figura naquele momento. Era um domingo, onze, onze e meia da manhã. Teobaldo acordara á pouco, comia um sanduíche de peito de peru com mostarda, mordera o sanduíche com vontade e a mostarda escorrera pela parte de trás do pão, escorreu pela sua barriga, e se acomodou no cós de sua bermuda. Teobaldo levantou e foi até o banheiro praguejando. Ainda amaldiçoando a própria falta de jeito, tirou as bermudas e as jogou no cesto de roupas suja, foi quando viu que havia mostarda também em suas cuecas, no elástico da cintura. Tirou a peça, e a jogou, também, no cesto de roupa suja. Colocou o roupão, calçou os chinelos e voltou á sala para continuar comendo seu sanduíche e assistindo Esporte Espetacular, programa do qual nem gostava, mas estava assistindo por causa dos jogos do Rainha da Praia, poderia passar horas assistindo jogos de vôley de praia. Não desgrudava os olhos dos derriéres das jogadoras. Era um sujeito simples, de simples prazeres.
Enquanto comia o sanduíche, com a mostarda escorrendo pelo queixo e se empoçando em sua barba de quatro dias, ouviu a chave na porta. Sabia que era Cristina. Cristina morava com Teobaldo já tinha uns oito meses. Morava é força de expressão. Cristina tinha as chaves, tinha uma gaveta na cômoda, uma porta no guarda-roupa, uma divisória no armário do banheiro, e um travesseiro. Mas morar lá, mesmo, ela não morava. Por mais de uma razão. A principal era de que Cristina não gostava da casa de Teobaldo.
Teobaldo não era o mais organizado e higiênio dos homens. Não que fosse um desses porcos imundos que tomam banho uma vez por semana (E olhe lá.) e só varrem a sala quando a sujeira começa á estalar sob as solas dos sapatos, nada disso, mas ele certamente limpava menos do que poderia. Ou deveria.
E era bagunceiro. Teobaldo era inacreditavelmente bagunceiro. Ele não tinha lugar pra nada, e, se alguém ousasse arrumar suas coisas, ele acusaria, entre risos, a alma caridosa de ter desarrumado tudo.
Isso era provavelmente um reflexo da criação de Teobaldo. Sua mãe era extremamente cuidadosa. Limpava tudo como se esperasse pela visita do rei da Dinamarca. Seu pai colecionava livros e miniaturas de carros, Teobaldo foi um filho tardio, foi criado pela mãe já na casa dos quarenta anos e pelo pai já com cinquenta, então, imagine uma criança que cresceu morando em um lugar onde as regras quanto á tocar nas coisas eram tão rígidas quanto as do Museu do Louvre.
Teobaldo cresceu clamando por um pouco de espaço, um pouco de bagunça e de relaxamento.
Então, ao se ver morando sozinho, dono do próprio nariz, ele deu seu brado de liberdade vivendo em uma casa que lhe era aconchegante, e que era uma tremenda baderna. E isso não agradava Cristina.
Cristina era organizada, era metódica, tão organizada e metódica que as pessoas que não gostavam de Cristina se referiam á ela como T-1000, em referência ao andróide vivido por Robert Patrick em O Exterminador do Futuro 2.
Cristina sabia o que queria, e quando se decidia á buscar por alguma coisa que quisesse formulava um plano de ação do qual não se desgrudava. Sério.
Cristina digitava seus planos passo á passo no Word, imprimia e carregava na bolsa, sempre que cumpria uma das etapas descritas no documento, ela sacava a folha A-4 da bolsa e, com sua caneta Mont Blanc, fazia um pequeno e satisfeito "V", ao lado da etapa vencida.
Cristina jamais deixava de conseguir as coisas que queria. Ela tinha tudo planejado. Haviam alguns objetivos inalcançados em sua bolsa, mas eles ainda eram planos em desenvolvimento, então, ela não os considerava fracassos, eram apenas isso: Planos em desenvolvimento.
Cristina se vestia com esmero, usava boas roupas, tailleur, terninhos, camisas sociais e pantalonas em cores sóbrias. Usava o cabelo preso, óculos de grau com armação fina, sapatos de salto médio. Cristina estudava comércio exterior e fazia estágio em um escritório de advocacia onde, em seis meses, conquistara a admiração de todos os superiores e a antipatia de todos os colegas. Era eficiente e fria como uma calculadora alemã.
Seu pai era cardiologista, sua mãe psicóloga, Cristina cresceu cercada de afeto, vá lá, mas um afeto algo mecânico, obrigatório, sóbrio.
Era o extremo oposto de Teobaldo. Teobaldo se vestia com as roupas que estivessem mais á mão no armário. Usava roupas baratas que comprava apenas quando as que já tinha começavam á se desmanchar de tanto uso. Usava o cabelo comprido, até cansar e cortar, cortava á máquina, em casa mesmo, e o cabelo crescia sem nenhum formato, corte ou penteado. Teobaldo não ligava. Precisaria usar óculos, mas já perdera três pares, o que o levou á conviver com a leve miopia. Ele usava tênis All-Star, mas curtia mesmo era estar de pés descalços ou então de havaianas. Teobaldo cursara arquitetura, mas largara, tentara História, mas não se adaptou. Agora fazia letras, inglês, pois conhecia a língua e se sentia á vontade pra fazer traduções e ensinar o idioma.
Seus alunos o adoravam á despeito de sua indolência, e as pessoas que encontravam alguma falha em suas traduções o perdoavam pois ele era muito gente boa.
Algumas pessoas se perguntavam, quando viam Cristina e Teobaldo na rua o que eles faziam juntos. Não eram um casal parelho. Não que um fosse lindo e o outro medonho, não, mas eles eram muito, muito diferentes.
Teobaldo era a figura do relaxamento, da não preocupação, nascera para ter um quisque na beira de alguma praia havaiana. Parecia que em sua testa havia um letreiro escrito "No stress", Cristina, por outro lado, parecia um jason Bourne de saias. Nenhum movimento feito sem propósito, a expressão séria, o olhar fulminante. Ela poderia perfeitamente dizer que era agente da CIA e ninguém ficaria surpreso.
Cristina gostava de Teobaldo. Gostava dele por ele ser um bom sujeito. Por ser correto, ter um certo charme, ter uma voz bonita e, como ela, gostar de Chico Buarque, que aliás, foi o que os aproximou naquela noite na casa de um amigo em comum. Era um jantar de aniversário, várias pessoas, e, quem estivesse perto do aparelho de som na hora em que acabasse a música podia escolher a próxima. Cristina e Teobaldo se aproximaram ao mesmo tempo do CD player, houve um instante de constrangimento quando Teobaldo encarou os frios olhos castanho-esverdeados de Cristina, mas ele sorriu e disse:
-Coloca o que tu quiser.
E quando Cristina levou a mão à pilha de CDs ele a agarrou pelo pulso e completou:
-Contanto que seja Chico.
Ouviram alguns protestos quando Cotidiano soou pela sala, mas Cristina calou as críticas aolembrar que haviam ouvido Sandy e Júnior e Só Pra Contrariar e que seria bom limparem um pouco os ouvidos.
Teobaldo achou graça do jeito dela. Da forma firme e decidida com que ela subjugara todos os convidados da festa com uma frase.
Cristina gostou de Teobaldo pela sua ousadia, de segurá-la pelo pulso, de ter a audácia de lhe dar uma ordem.
Antes que a música se encerrasse, Cristina e Teobaldo é que se beijavam com boca de paixão.
Á despeito das diferenças, nasceu um romance. Cristina conheceu todos os defeitos de Teobaldo em cerca de duas semanas. Era só o que ela precisava. Mentalmente perfilou seus defeitos em uma lista e suas qualidades em outra. Acabou concluindo que, á despeito de serem mais defeitos do que qualidades, as qualidades pesavam mais. E foi ficando. Naquele momento poderia dar-se ao luxo de um romance rápido. Tinha tudo planejado.
A forma casual com que Teobaldo olhava o relacionamento estranhamente agradava Cristina, que, mesmo sem admitir, precisava de um pouco de casualidade em sua vida tão formal, ao menos por enquanto.
Teobaldo gostava de Cristina, gostava de passar tempo com ela. Era cuca-fresca, não estava sempre á vontade com os programas que Cristina queria fazer, mas preferia não reclamar. Gostava de passar tempo com ela, então, podia ser fazendo alguma coisa que não fosse exatamente a sua ideia de um bom programa, até por que, Teobaldo reconhecia que, á bem da verdade, não tinha um programa preferido além de deitar e ouvir música ou caminhar sem rumo por alguma praia.
Mas aquele romance casual foi se desgastando. Conforme Cristina recebia mais e mais atribuições em seu estágio e os trabalhos da faculdade se acumulavam, ela se tornava mais tensa, fazia mais cobranças, e, tensa que estava, toda a conversa com Teobaldo e sua letargia se transformava em confronto. Ele, á princípio não ligava. Relevava tudo. Mas as coisas foram ganhando mais e mais proporções, e até Teobaldo e sua indefectível passividade acabaram por encontrar seu limite. E as discussões começaram. Começaram e cresceram até se tornar brigas que culminavam em períodos sem se falar, que culminaram com aquela cena lá do início.
Cristina entrou, encarou Teobaldo, sentado no sofá de roupão e chinelos, com o queixo todo sujo de mostarda, vendo as bundas das jogadoras de voley na TV. Ele a olhou de volta com um meio sorriso.
Talvez tenha sido o meio sorriso, ou o roupão entreaberto mostrando as partes íntimas, ou o queixo sujo. O fato é que Cristina, ali, teve certeza, e, tendo certeza de que não dava mais. Ela tinha tudo planejado e aquilo não era parte do plano. E, tendo decidido-se, verbalizou.
-Eu não gosto mais de você.
Como eu já havia mencionado, a frase atingiu Teobaldo como um murro. Primeiro que, parte do modo cuca-fresca de ser de Teobaldo era uma estratégia para que todos gostassem dele. Segundo por que ele, á despeito dos problemas, ainda amava Cristina, ou, pelo menos, gostava bastante dela. Em terceiro por que ele odiava a mania dela de chamar as pessoas de "você".
Ele largou o sanduíche sujo de mostarda no braço do sofá, Cristina chegou á tomar fôlego para reclamar, mas desistiu, não era mais da conta dela.
Teobaldo se levantou, parou na frente dela e perguntou:
-O que tu disse?
Ela repetiu. Não gostava mais dele. Não dava mais. A letargia, a apatia, a falta de atitude e de ambição de Teobaldo, tudo aquilo não era o que Cristina queria, não era o que ela planejara.
Teobaldo não disse nada. Tentou uma jogada audaciosa como a que usara para iniciar o namoro, rapidamente se inclinou para frente tentanto beijar Cristina nos lábios. Mas ela se inclinou igualmente rápido pra trás, evitando o beijo e dando um passo pro lado.
-Vê se cresce, Teobaldo.
Ela disse isso, foi até o quarto e pegou suas roupas no armário. Colocou em uma bolsa de couro caramelo que comprara durante uma das raras viagens do casal á serra, acomodou com cuidado suas roupas no fundo da bolsa, depois foi ao banheiro e pegou seus itens de perfumaria, batons, absorventes e esmaltes, que colocou, separadamente em bolsinhos laterais da bolsa. Por último colocou a chave sobre a cômdoda. Teobaldo ainda estava parado de pé no entro da sala. Uma lágrima escorria de seu olho direito. Cristina pensou em dizer alguma coisa. Talvez avisar que não levaria o travesseiro Super-Pluma-Ergo, uma de suas posses, que Teobaldo roubara durante o namoro. Mas achou melhor não dizer nada. Nem se despediu. Saiu sem dizer nada, deixando aquele homem adulto, de roupão e chinelos com a cara suja de mostarda chorando no meio da sala.
Ao descer as escadas do prédio, Cristina chegou á sentir, na boca do estômago, o soluço que poderia virar choro. Mas engoliu em seco. Sacou da bolsa uma folha A-4 e marcou um pequeno "V" do lado de uma linha. Estava tudo conforme o planejado.
Saiu andando do prédio ainda com uma sensação de nó na garganta.
Nos meses que se seguiram, Cristina trabalhou com ainda mais afinco, impressionou ainda mais seus chefes, estudou de forma contrita, fez mais desafetos para os quais ligava ainda menos que antes.
Se formou, primeira da turma, oradora.
Seu estágio virou um emprego formal, e após quatro meses Cristina era chefe de todas as pessoas que não gostavam dela, e que agora, sendo subalternas, não encontraram nehuma razão para mudar de ideia. Ela não ligava. Tudo corria como ela previra. Ela tinha tudo planejado.
Cristina saiu algumas vezes. A primeira com um colega, ele tinha um cargo semelhante ao dela mas em outro setor da empresa.
Ela se arrependeu. Á despeito do charme e dos belos ternos era um tremendo chato. Só falava de si, interrompia Cristina o tempo todo. Tentou fazer sexo com ela na primeiera noite. No banheiro do restaurante. Não durou.
Todos os homens pareciam extremamente chatos e irritantes para Cristina, mesmo aqueles que se vestiam bem, e eram ambiciosos e extremamente ativos. Se tinham essas qualidades tinham defeitos que as superavam. Chegou á pensar que havia encontrado alguém com quem dividir a vida após alguns encontros com um jovem oftalmologista. Ele era divertido, inteligente, tinha um sorriso lindo. Podia ser ele o homem que seria o pai da filha de Cristina. Mas após três meses de namoro, ela percebeu que faltava algo. Que não estava feliz. Não estava se divertindo.
Cristina terminou aquele namoro. E, após dois anos e meio, continuava sozinha. Sua carreira ia bem, de vento em popa. Gozava de boa saúde. Estava com três quilos menos que o peso ideal. Tudo corria conforme seus planos. Mas ela estava sozinha.
Numa tarde, após o trabalho, Cristina sentiu vontade de comer um picolé Tablito, seu preferido. Como estava três quilos abaixo do peso ideal, achou que podia dar-se esse pequeno prazer.
Ao entrar em uma padaria onde havia o freezer da Kibon, levou a mão á porta já mirando o picolé, quando sua mão foi interceptada. Ela sevirou para ver quem a agarrara pelo pulso. Era Teobaldo.
-Pode comer o que quiser. -Disse ele.
-Contanto que seja um Tablito.
E sorriu. Ela sorriu de volta. Conversaram enquanto ela comia o picolé. Ela contou como tudo mudara, contou da promoção, da formatura, do trabalho.
Ele perguntou dos pais dela, ela confirmou que estavam bem, ele perguntou dos namoros, ela disse que estava sozinha. Ele sorriu.
Ela perguntou o que ele andava fazendo, ele disse que se formara, estava trabalhando em uma empresa que fazia traduções juramentadas. Morava no mesmo lugar, fazia as mesmas coisas, só conseguira um diploma, um esmprego estável e visitava um barbeiro á cada três meses para cortar o cabelo.
Cristina o olhou de soslaio enquanto comia seu picolé. Ele comia um risóles que estava empapado de mostarda. Ele mordeu a massa enquanto dava um passo, e, descoordenado que era, enfiou o nariz na mostarda. Parou para se limpar.
Cristina o olhou enquanto sorria sem jeito e limpava a mostarda do nariz com o guardanapo.
Ele era a mesma pessoa de três anos antes. Talvez um pouco menos letárgico. Mas ainda era diferente demais de Cristina. Ainda não era a pessoa que ela havia planejado para ser o pai de sua filha. Ele olhou o relógio, fez cara de "Já!", e se despediu com um aceno. Cristina sacou a folha A-4 da bolsa, mirou-a por alguns instantes. E então a amassou, jogando fora.
Correu até Teobaldo e o beijou.
Tinha tudo planejado. Podia abrir um pequeno precedente.
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