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quarta-feira, 4 de maio de 2011

Descolado


O Daniel se levantou da do sofá-cama encardido onde estava deitado. Vestia uma camiseta regata branca, e calças jeas. Estava descalço. Passou a mão na parte da frente da camiseta, e sentiu o puído do tecido fino. Fazia sentido ele pensou. Era o mesmo estado de suas calças rôtas. Andou até a mesa acanhada da sala semi-iliminada pela luz amarelada que vinha da rua. Serviu um gole de whisky J&B em um copo de requeijão encardido, e bebeu em um só gole. Rumou para a janela empoeirada do apartamento que mostravas as fábricas desativadas de uma zona pouco recomendável da cidade. Escorou o ante-braço nú na guarnição suja do vidro e ficou ali, olhando as pessoas atarefadas lá embaixo.
No rádio, uma música lhe chamou a atenção quando o ruído dos carros e ônibus abaixo cessou por tempo suficiente pra ele poder ouvir o som do aparelho. Seria Nei Lisboa entoando "Telhados de Paris" ou algo semelhante? Era difícil discernir entre tantos chiados. Daniel fez força com o ouvido para identificar a letra, já que a melodia era quase irreconhecível e ele não parecia disposto à mexer na antena ou no botão de dial do rádio.
Mas tem no outono uma luz
Que acaricia essa dureza cor de giz
Que mora ao lado e mais parece outro país
Que me estranha mas não sabe se é feliz
Sim. Era Telhados de Paris. Não tinha certeza se era o Lisboa, mas era a música. Andou até o sofá-cama, sentando-se. Agachou-se e puxou as botinas surradas de couro vagamente preto debaixo do sofá e as calçou. Levantou-se de novo, no rádio, entre intervalos do ruído do tráfego, ouvia:
O tempo se foi
Há tempos que eu já desisti
Dos planos daquele assalto
E de versos retos, corretos
O resto da paixão, reguei
Apanhou do encosto de uma cadeira uma jaqueta de couro que, de tão velha, já tinha rachaduras na superície do tecido, no bolso, um maço de cigarros, puxou um, acendeu com um isqueiro Bic azul-marinho. Tragou profundamente e vestiu a jaqueta com o cigarro suspenso nos lábios.
Vai servir pra nós
O doce da loucura é teu, é meu
Pra usar à sós
Eu tenho os olhos doidos, doidos, já vi
Meus olhos doidos, doidos, são doidos por ti
Apanhou a chave, o óculos Ray-Ban estilo aviador e a carteira do lado do cinzeiro lotado de pontas de cigarros, alguns manchados de batom. Abriu a porta e saiu.
Acordou na sua cama. Não fumava e nem bebia whisky barato em copo de requeijão. Não usava botinas, nem regata, nem jeans rasgados, nem jaqueta de couro rachado. Não era descolado como alguém com pinta de roqueiro que vive em uma parte desolada da cidade. Mas no rádio, esse bem sintonizado, Nei Lisboa cantava, e os olhos dele eram, também, loucos por ela.

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