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sexta-feira, 6 de maio de 2011
Fura Bolo
Estavam Gerusa e Otávio voltando pra casa. Era uma rua deserta, tarde da noite, e ele andava sorridente olhando pro céu com o braço mal-acomodado sobre o ombro esquerdo e por trás da cabeça dela. Não estava mal-acomodado por ela ter qualquer tipo de problema no ombro, não, mas por conta da diferença de altura. Ainda assim, estava satisfeito. Ela parecia satisfeita, também. Segurava a mão dele, que pendia sobre o seu ombro direito, e os dois, que haviam conversado, dançado, e se beijado naquela noite, agora voltavam juntos pra casa dela, onde ele esperava entrar, já que a noite fora tão boa.
Mais que boa, até. Ela superara totalmente as expectativas dele. Otávio sempre achara Gerusa atraente, desde antes de começar a conversar com ela no local onde trabalhavam. Mais do que isso. Na verdade "atraente" não fazia justiça aos adjetivos de estivador que Otávio em mais de uma ocasião usara para se referir à ela. E era compreensível, Gerusa era tudo de bom. Era muito bonita sem ser daquelas belezas fabricadas da TV ou das revistas, era linda sem parecer ter saído de uma linha de produção. Tinha estilo, e era provocante sem resquícios de vulgaridade, chamando demais a atenção com sua discrição charmosa.
Isso, Otávio viu de imediato. O que Otávio levou mais tempo pra perceber foi que Gerusa também era divertida. Era engraçada, inteligente e até meio malandra, no melhor dos sentidos. Tinha presença de espírito, e não se escandalizava com qualquer bobagem. Tinha bom gosto pra música, pra cinema e pra literatura, sem ser daquelas meninas xaroponas que querem parecer descolada. Gerusa simplesmente era descolada.
Otávio ficou tremendamente surpreso quando soube que Gerusa era solteira. Mais ainda ao descobrir que ela não tinha namorado, nem noivo, nem nada remotamente sério com homem algum. Chegou a considerar que, sendo o mundo como era, e andando sua sorte como andava, Gerusa devia ser homossexual, e comer a fruta de que Otávio gostava até o caroço. Mas não. Para sua surpresa e alívio, em mais de uma ocasião posterior a esse pensamento, Otávio a viu elogiar a aparência de homens em capas de revistas de colegas de trabalho. O que foi, ao mesmo tempo um alívio, e motivo de preocupação. Afinal, se elogiar a aparência de Hugh Jackman na capa da revista Set advogava em favor da opção sexual de Gerusa, também advogava em nome do bom gosto dela. E uma mulher de bom gosto não sairia com Otávio que era, quando muito um sujeito meia-boca.
Pior que isso, era pelo menos dez anos mais velho que a Gerusa. Outra pessoa não veria problema nisso, acharia tratar-se de uma bobagem tremenda, mas para Otávio era um empecilho dos grandes. Ele não era nenhum Robert Redford, não era charmoso, nem bonitão, nem sofisticado.
Ainda assim ele se aproximou dela. Sem muita esperança. Mais pelo simples prazer de tê-la por perto. Se houve alguma sugestão de flerte, fora totalmente instintiva, e não calculada. Passaram a conversar e sair como amigos, faziam compras, iam ao cinema, se exercitavam, e em tudo, apenas amizade era mirada de parte de Otávio. E ainda assim, por alguma razão, as afinidades que ambos partilhavam acabaram por atraí-los, até que aconteceu. Em um entardecer, após caminharem juntos às margens do Guaíba, Gerusa e Otávio conversavam, e, sem aviso, ela o beijou.
Otávio ficou surpreso, não sabia se era prudente se envolver com alguém que era mais jovem, mais inteligente, mais bonita e mais... Bom, quase tudo do que ele. Mas acabou mandando a rpudência ralo abaixo após sentir as mãos macias dela envolvendo seu rosto barbado, e de sentir a maciez de suas curvas ao envolve-la ela cintura com os braços.
Com mil diabos. Dá pra tentar fazer funcionar! - Pensou Otávio, otimista.
E parecia, mesmo que daria. Gerusa, como namorada, era ainda mais genial do que como amiga. Àquele rol sensacional de qualidades cresceu a ternura e a sensualidade de uma companheira com quem se podia pensar em dividir tudo. A diferença de idade que tanto preocupava Otávio nunca se mostrou um obstáculo.
Até que, naquela noite lá do início, após dançarem, conversarem e se beijarem estavam voltando pra casa quando ela disse:
-Ai... Que vontade de comer um picolé que me deu...
Ele sorriu:
-Picolé, meu amor?
-É. - Ela confirmou. - Mas picolé. Não queria sorvete, nem sacolé, nem raspadinha. Picolé, mesmo. Um... Um chicabon... Não, Chicabon, não. Um picolé de fruta, tipo...
-Tipo um La Frutta de limão?
-Não. Não... Queria de morango. Tem picolé de morango?
-Deve ter. Eu me lembro bem do Fura Bolo, tinha até as sementinhas...
-Do quê?
-Fura Bolo. Era um picolé, um picolé de morango em forma de mão, com o indicador apontando pra cima. - Explicou Otávio.
Gerusa riu demais.
-Fura Bolo, Otávio? Ah, por causa do dedo indicador, ah, ah, ah, ah, ah, ah ,ah ,ah, ah, ah, ah, ah, ah! Que ideia.
-Eu que o diga. Uma vez, quando era pequeno, fui jantar com meus pais em uma churrascaria, e antes de ir embora eu ganhei um Fura Bolo. Quando mordi o dedo, todo mundo sabe que um Fura Bolo se começa a comer pelo dedo, o garçom, de brincadeira, deu um grito de dor, e eu não consegui mais comer o picolé.
Ela riu até perder o ar. Otávio riu junto, a princípio, mas parou em seguida. Gerusa olhou pra ele ainda rindo.
-Nossa. De que época era esse picolé?
-Hã... Princípio dos anos oitenta, eu acho...
-Nossa! Eu nem pensava em nascer, ainda.
-Mas ele foi e voltou, era feito pela Nestlé, então sumia da tabela e voltava. Nos anos noventa eu comi vários Fura Bolos.
Gerusa riu muito, de novo.
-Que mais que tinha na tua época, meu anjo?
Otávio sorriu sem dizer nada. Apontou com o queixo pro prédio da Gerusa.
-Chegamos.
Ele não sabia se havia sido a diferença de idade entre eles finalmente se tornar algo palpável, ou se foi o escárnio dela ao rir de seu trauma infantil ou ao perguntar de que época o Fura Bolo era. O que ele sabia é que nunca mais procuraria por aquela insensível cocota pós-púbere. E se procurasse, seria pra furar o olho dela com um picolé Fura Bolo. Será que a Nestlé ia colocá-lo de volta nos freezeres das padarias?
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