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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Negação


O Getúlio acordou um dia e disse "Basta". OK, não foi exatamente assim. O Getúlio acordou um dia, levantou da cama coçando o flanco direito, espremeu uma espinha no queixo enquanto fazia xixi, lavou as mãos, o rosto, escovou os dentes, se vestiu enquanto comia uma maçã e saiu pra trabalhar. Foi apenas na rua que ele disse "basta". E nem disse, mesmo, de verdade. Ele apenas decidiu que havia chegado a algum tipo de limite. O Getúlio resolveu que, daquele dia em diante, dedicação plena, mesmo, ele teria apenas para com o seu cachorro, que sempre o recebia bem quando chegava em casa, sempre tinha um abraço e um pouco de atenção para ele, e demandava em troca apenas a mesma coisa. Um afago e um pouco de atenção.
OK, comida e água, e um banho semanal fora as vacinas. Enfim, ele não se ateria a esses pequenos detalhes.
Getúlio trabalhou naquele dia com o peito estufado. Falou pouco, e com quas ninguém, ciente de que tomara a melhor das decisões, e escolhera o mais acertado dos cursos de ação. Não abriu o seu e-mail a cada dez minutos. Não ficou verificando se o celular recebera uma chamada ou um SMS a cada ida ao banheiro. Estava sereno como a muito tempo não se sentia.
Era, sem sombra de dúvida uma sensação nova aquela para o Getúlio. A serenidade da certeza lhe encheu de esperanças, e preencheu seu peito com a calidez da certeza.
"Sim, com mil demônios", bradou Getúlio, "Eu estou fazendo tudo certo agora, e estive fazendo tudo errado antes!".
Novamente vale destacar que foi um brado metafísico, Getúlio não parou no meio dos corredores da firma bredando "com mil demônios", pois podia pegar mal, e, sei lá, até dar justa-causa, vai saber.
Getúlio almoçou sushi, naquele dia, imagine só. O Getúlio, que não gostava nem de olhar pra peixe em aquário, que não gostava nem de nugget de peixe, comendo peixe cru envolto em arroz e alga marinha! E ele comeu. Comeu sushi de super mercado com molho Shoyu em garrafinha plástica.
Um nojo, mas ele comeu assim, mesmo. Achou que era um dia para estréias.
Trabalhou serenamente o resto do dia, cuidou de seus afazeres com zelo, e ao sair, saiu ouvindo música. Nem sequer virou o pescoço pra ver a bunda da Maria de Lourdes, moça de curvas fartas que cuidava da limpeza e a quem Getúlio sempre reservava um olhar guloso quando ia embora. Não. Getúlio não precisava mais disso. Agora seriam apenas ele e seu cachorro.
Passou pelo mercado, novamente. Comprou bananas e um abacaxi. Sabonete, desodorante e um gel de cabelo. Comprou um sanduíche de atum para si, e uma peça de courino digerível para cães em forma de osso para o seu companheiro.
No elevador do prédio ele chegou a estremecer de antecipação imaginando o momento em que abriria a porta de casa e se depararia com aquele grande monte macio de pêlos amigáveis, e ganharia um abraço apertado, quiçá alguns babados beijos caninos...
Andou sentindo uma ponta de entusiasmo em direção à porta de casa, e já sorrindo, girou a chave na fechadura.
Abriu a porta e...
Lembrou-se: Não tinha um cachorro.
Naquela noite comeu seu sanduíche de atum e viu a novela das oito sofrendo cada vez que olhava para o brinquedo em forma de osso sobre a mesinha de centro. Mas enfim, melhor sofrer de saudades do cão que jamais teve do que sentindo saudades dela. De seu carinho e presença. Que já tivera e não voltaria a ter. A negação era, afinal, uma arte na qual Getúlio aprendera a ser mestre ao longo dos anos.

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