Bem vindos a casa do Capita. O pequeno lar virtual de um nerd à moda antiga onde se fala de cinema, de quadrinhos, literatura, videogames, RPG (E não me refiro a reeducação postural geral.) e até de coisas que não importam nem um pouco. Aproveite o passeio.
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sexta-feira, 16 de março de 2012
Irmãos de armas
Estavam sentados à mesa a Lourdes, o Caio, o Milton, o Sandro e o Felizardo. Sobre a mesa, copos de Coca Cola, uma pilha de livros, mapas de lugares que não existiam, fichas em pastas plásticas flexíveis, lápis e dados poliédricos de quatro à vinte faces.
Eles estavam jogando RPG.
O Caio já jogava fazia anos, era um aficionado pela matéria. Colecionava suplementos, livros, mapas, dados, revistas... Ele adorava a coisa, se dedicava, e jogava incessantemente desde os quatorze anos de idade. Lourdes era casada com Caio, e caíra no mundo dos role playing games meio que ao acaso, sugada de forma colateral pelo amor do cônjuge ao jogo. Acabou gostando e, apesar de seguidamente dizer que não sabia jogar, dominava suficientemente as regras pra não atravancar nenhuma sessão de jogo, e nem se tornar irritante como frequentemente acontece com pessoas que não são tão afeitas à atividade quanto os colegas de mesa. O Milton era amigo do Caio desde a tenra infância e se davam bem. Tão bem que Caio acabou levando Milton consigo para o mundo do RPG quando eles ainda eram adolescentes. Jogavam juntos já tinha mais de quinze anos, e se divertiam muito com a atividade a despeito de algumas eventuais desavenças.
O Sandro era amigo antigo do Caio e do Milton, mas não partilhava do mesmo entusiasmo dos colegas pelo jogo. Ele gostava, sim, do RPG, mas não tinha paciência pra ficar seis horas em volta da mesa jogando dados, de modo que seguidamente se levantava e ficava andando ao redor dos colegas, ou simplesmente se jogava em um sofá próximo e ficava assistindo TV acompanhando o jogo de forma periférica e vindo à mesa apenas para jogar os dados ou responder uma pergunta à qual não cabia a resposta "Eu faço uma cara feia e fico em silêncio.". Enfim, o Sandro curtia o jogo, e mesmo, ás vezes, dando a impressão de não querer mais saber de jogar, sempre voltava.
O Felizardo... Bom, o Felizardo era um caso à parte. Era também amigo antigo de Caio, Milton e Sandro, se dava bem com a Lourdes, pois era polido e educado, mas era dessas pessoas mais ensimesmadas que são de falar pouco, em especial sobre si próprias. Ele era assim, o Felizardo. Uma das coisas curiosas a respeito dele, é que ele, vez que outra, tinha arroubos de verborragia em que falava feito um condenado. Normalmente ninguém estava interessado no que o Felizardo dizia, pois ele falava sobre assuntos que pareciam surgir na sua cabeça de maneira totalmente aleatória e que não faziam sentido no contexto do assunto do resto do pessoal.
Ainda assim, o Felizardo jogava RPG com o pessoal numa boa. Era atento ao jogo, e não atrapalhava o bom andamento das partidas embora, vez que outra, se fixasse aos efeitos de determinadas magias e ataques querendo saber, direitinho, nos mais imperceptíveis detalhes, como poderia escapar de uma determinada situação. Nada demais, contudo, já que, parte da graça do jogo, era, justamente, saber como escapar da morte quase certa. Mas a impressão que dava, é que ele gostava menos de jogar do que todo mundo, até o Sandro, e ficava ali, mais pra se manter em contato com os amigos do que qualquer outra coisa.
Agora ali estavam eles, todos sentados à mesa em meio ao material espalhado entre o grupo quando o Caio, que mestrava a partida anunciou a presença de um imenso dragão em uma câmara ampla oculta atrás de uma porta de pedra recém aberta pelo ladrão interpretado por Milton.
Lourdes perguntou se havia chance de fechar a porta e correr, entretanto foi avisada por Caio que, ao dar as costas ao dragão abriria a chance para um ataque de oportunidade da besta, ao que ela reagiu suspirando profundamente e dando de ombros:
-Tamos ferrados. Vai morrer todo mundo. Tá, eu ataco ele. - Anunciou enquanto virava a página da ficha e sacolejava na mão um dado de vinte faces vermelho.
Pra quem não sabe, dragões são provavelmente as criaturas mais terríveis da fauna RPGística, e pra um grupo de nível médio com poucos componentes como era esse, era uma peleia das mais duras. Enfim...
A Lourdes começou a sacolejar o dado entre as mãos em concha enquanto o Caio, muito animado, anunciou que era pra estabelecer as iniciativas. O Sandro, que vivia um paladino e líder do grupo, rolou um dado de dez faces e anunciou o número três, recebendo palavras de apoio dos companheiros que imediatamente somaram a velocidade de suas armas ao número rolado pelo colega. Estabelecida a ordem de combate o Caio disparou:
-OK, vou dar a primeira rodada de lambuja pra vocês, o dragão está confuso, irritado pela intrusão de vocês, e está se remexendo no espaço da câmara de rocha em busca de uma posição em que fique de frente pra vocês então, vocês atacam antes! Lourdinha, tu começa.
A Lourdes trocou o dado de vinte faces que tinha na mão por cinco dados de seis faces enquanto dizia:
-Vou começar com a minha magia de relâmpago, então. É o que eu tenho de mais forte, mesmo...
Ela rolou os dados, três em um, quatro em outros dois, dois no quarto e seis no quinto dado.
-Dezenove! - Gritou, animada.
-Ih, nem fez cócegas no dragão, mas ele parece ter ficado incomodado com o clarão, e rosna pra ti. - Disse Caio, rindo maquiavélico. - Miltão, tua vez.
O Milton folheava atentamente a sua ficha de personagem, e anunciou enquanto mexia nos óculos que seu larápio iria se esconder nas sombras com sua ação de movimento e que, de lá, dispararia com sua besta encantada contra o dragão. Rolou os dados de porcentagem para o teste de se ocultar nas trevas e obteve sucesso, então agarrou o dado de vinte lados e perguntou:
-Quanto pra acertar o bicho?
-Pra ti, com a besta? - Respondeu Caio, fazendo um rápido cálculo matemático. -Peraí... Hã... Dezoito ou mais.
-Filhadaputa... - Esbravejou Milton, rolando o dado, que correu por alguns centímetros sobre o tampo de vidro da mesa e caiu com o número oito virado pra cima.
-Não deu. - Disse Caio, já mirando Sandro, apoiado nas costas da cadeira em que deveria estar sentado.
-Pois é, tchê... Deixa eu ver o que o Talibude vai fazer... - Disse ele referindo-se ao seu bárbaro sulista, enquanto olhava a ficha de personagem. -Ah, que se foda, vou meter a espada no bucho desse corno. Quanto? - Perguntou ao Caio.
-Dezesseis ou mais.
-Vai pra vala, bicharoco. - Disse rolando o dado e sorrindo ao ver o numero dezenove sair com a face pra cima. -Ah, moleque! Te liga nesse golpe de montante!
Apanhou dois dados de doze faces e rolou dez em ambos enquanto erguia os braços em triunfo.
Caio sorriu enquanto tomava notas:
Muito bem, mais a bonificação de força, isso tudo dá... Vinte e quatro. Quase fez cócegas no dragão, que tá ficando furioso! Feliz, é tu.
Feliz era o apelido do Felizardo. Não deixava de ser irônico.
-Hã... Vou com a minha espada longa mais um, mesmo. Quanto?
-Dezenove ou vinte. - Respondeu Caio.
O dado rolou da mão do Felizardo por sobre a mesa até parar de encontro aos livros do Caio com um sete virado pra cima.
-Não deu. - Bradou Caio. - Vez do monstro!
As sequências de combate foram se sucedendo, com o dragão levando larga vantagem. Magias e poções de cura foram usadas em profusão, armaduras foram consumidas pelo hálito do dragão, uma espada mágica se quebrou e um escudo encantado se partiu. Se no RPG de mesa houvessem barras de energia como aquelas dos video-games todos os personagens dos jogadores estariam no vermelho após as doze rodadas de combate que se seguiram. Na décima terceira, o dragão ganhou a iniciativa e meteu a porrada nos jogadores. Quem iniciava uma rodada de matar ou morrer, era justamente o Felizardo. Caio virou-se pra ele após anotar os pontos de vida que todos haviam perdido e notar, com alguma culpa, que seu grupo de players estava às portas da morte.
-Vai, Feliz, tu começa.
O Felizardo olhava pro sua ficha como se visse através dela. Após breves segundos em que todos o encaravam ele ergueu a cabeça e perguntou:
-Por quê?
Ninguém entendeu de imediato, como assim "por quê?" foi a cara que todos fizeram. O Caio, paciente, respondeu:
-Pra gente continuar com a sequência de combate.
-Pra quê? - Inquiriu Felizardo. -Essa sequência de combate vai terminar com um dragão ferido e furioso e quatro aventureiros esperando pra serem consumidos pelo seu sopro flamejante. Esse curso de ação ruma de maneira inexorável em direção à tragédia. Nesse instante em que eu me rendo à inação, porém, eu tenho controle sobre, não apenas o meu próprio destino, mas também sobre o dos meus companheiros e do próprio dragão. Se analisarmos profundamente, quem somos nós? Um bárbaro sulista, uma aprendiz de mago que cresceu no luxo, um facínora vil roendo os ossos da vida, um defensor da ordem e da justiça, e o meu personagem, um guerreiro comum com anseios de fama e de fortuna. E o dragão? Ele tem, não apenas a prerrogativa e o poder de nos obliterar, mas também pode-se dizer que tem o direito. Nós invadimos a caverna onde ele vive. Nós o atacamos à primeira vista. Ele é uma criatura ancestral de poder imensurável e nós? Mesmo que os ventos do acaso impulsionem nossos dados à uma vitória, nós a merecemos? Nós merecemos matar esse dragão que, pelo tamanho, é um adulto de, o quê? Uns quinhentos anos? Essa besta magnífica, com asas grandes como casas, oculta no subsolo embora pudesse devorar vilas inteiras e incendiar grandes cidades e nós invadimos a morada dela e a atacamos de maneira impensada? Por quê? Por quê? Qual o sentido dessa matança?
Todos estavam em silêncio olhando pro Felizardo, assim que ele terminou o discurso, olharam pro Caio, que parecia meio sem graça olhando pro seu caderno de anotações.
-Pô, Felizardo...
Mas o Felizardo mexeu a cabeça e jogou os dado de vinte e de doze faces sobre a mesa com algum desdém enquanto dizia:
-É tudo inútil e sem sentido.
Mas os dados rolaram fazendo barulho sobre o vidro da mesa e caíram com o vinte e o dez virados pra cima.
Todos olharam pra ele, que espiou o resultado da jogada espichando o pescoço, e então virou-se pro Caio, que disse:
-Vinte e seis... O dragão morreu.
Felizardo se levantou da cadeira e dançou gritando com os braços erguidos em triunfo. Sandro perguntou:
-Mas e a falta de sentido de tudo, a prerrogativa do monstro e tudo mais?
-Que se foda, brother, eu matei o dragão! Chupa, lagartão. Agora vamos ver esses tesouros, aí.
Ninguém sabe, de fato, como é bom jogar RPG até dar o golpe derradeiro em um monstro super-poderoso.
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