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quinta-feira, 16 de agosto de 2012
Suas Manchas
A Marciele era uma vaca. Não que ela fosse, de fato, uma vaca. Literalmente. Não, ela não era um bovino do gênero feminino, não dava leite e nem era destinada ao abate.
Mas nossa, como era vaca, no sentido figurado, aquela menina.
A Marciele era aquele tipo de pessoa pra quem existem três formas de fazer as coisas: A certa, a errada, e o método Marciele, que era basicamente a forma errada, mas causando o máximo de dano. E a Marciele sempre fazia as coisas de acordo com o seu próprio método, sem se importar com o dano colateral, mais ou menos como as intervenções militares norte-americanas no Oriente Médio.
Essa forma de agir da Marciele era pública e notória, e ela, vaca que era, nem mesmo tentava esconder. Ela era o que era e azar era do goleiro. Mas sabe como são os seres humanos. Criaturas sociais, afinal de contas... E a Marciele, mesmo sendo vaca, tinha um círculo de amigos, que sabia que ela era vaca, mas relevava isso na medida do possível, e nesse grupo, surgiu, por uma dessas aleatoriedades da vida, o Genival.
O Genival era um rapaz muito gente boa. Era amigo pra todas as horas, educado, boa-praça, aquele tipo de sujeito que convenciona-se taxar de "queridão". Era bonito, o Genival, não tipo Jude Law, mas tinha aquela boniteza de galã dos anos cinquenta que lhe rendia sucesso razoável entre as representantes do sexo oposto.
A Marciele, que era bonita, até (Seria bem bonita se não fosse tão vaca, mas sendo ela a vaca que era, ninguém lhe outorgava mais que um "bonita, até".), não ficou particularmente entusiasmada com o Genival quando ele se juntou ao seu círculo de amizades. Um dos esportes preferidos da Marciele era ficar apontando os defeitos das pessoas, fossem eles reais ou visíveis apenas ao seus olhos. E o Genival, pra ela, tinha um cabelo ruim, os olhos muito juntos, o maxilar muito projetado e era muito moleirão. Ela usou essa palavra, mesmo, "moleirão".
O resto das meninas do grupo não deu ouvidos à Marciele, que, final de contas, era muito vaca, e gostavam do Genival, o achavam bonito, amável e agradável, e, sendo tudo isso, e estando solteiro, ele se tornou o centro das atenções entre as meninas também solteiras do grupo, tudo normal dentro da dinâmica social humana.
O ponto é que, por alguma razão, ter suas opiniões a respeito do Genival ignoradas pelas demais meninas do grupo mexeu com os brios da Marciele, e ela, vaca que era, resolveu estragar o que considerava a brincadeira das outras.
Para tanto, a Marciele planejou seduzir o Genival, de modo a fazê-lo ficar com ela em detrimento das demais. Mesmo ele tendo os olhos muito juntos, sendo moleirão e tal e coisa, ela faria o sacrifício, afinal de contas, era muito importante pra Marciele sentir que dominava as coisas, doesse a quem doesse.
Como era bonita, até, e sabia ser dissimulada quando queria, a Marciele não teve dificuldades pra seduzir o Genival. Especialmente porque sendo a vaca que era, a Marciele não tinha pudores em usar táticas moralmente reprováveis e até apelativas na hora de obter o que queria, de modo que ela não teve lá grandes dificuldades para suceder em seu intento, e em pouco mais de três semanas ela andava de mãozinhas dadas com o Genival pra toda a parte, para ira das demais meninas do grupo, que confabulavam coléricas e diziam à boca, ás vezes não tão pequena, que a Marciele era muito vaca.
E a Marciele, sentindo-se vitoriosa, resolveu enrolar um pouquinho, para então dizer ao Genival que não era bem aquilo, que não era ele, mas ela, e que eles eram incompatíveis e parará, para poder voltar à sua rotina de sempre.
O problema, foi que nesse ínterim, o Genival foi se apaixonando pela Marciele. De verdade. A despeito dos alertas que seus amigos e amigas faziam de que tomasse cuidado com a Marciele, Genival resolveu arriscar. E não se arrependeu.
Tanto que foi aprendendo a relevar as características que faziam todo mundo ver a Marciele como a menina vaca que ela era, e sob todas aquelas camadas bovinas, ele achou uma moça a quem amar. E a amou.
Talvez tenha sido inocência do Genival, talvez ele fosse o pior tipo de cego, aquele que não quer ver, ou talvez a Marciele tenha sido particularmente bem sucedida em esconder sua verdadeira personalidade enquanto estavam juntos, mas a verdade é que a Marciele não foi vaca com o Genival.
Eles passeavam juntos de mãos dadas, conversavam, faziam amor, e Genival estava alegre.
Alegre, apaixonado, fazendo declarações de amor, comprando presentes e fazendo planos de médio e longo prazo, tudo ligando sua vida à vida da Marciele.
Genival acabou se afastando dos amigos, pois cansou de ouvir os detratores do amor de sua vida. Precisava apenas de Marciele a seu lado pra ser feliz.
E ela ficou. E foi doce com Genival. Foi amável como jamais ninguém imaginou que ela pudesse ser. Foi gentil, paciente, compreensiva, e se via, também, vivendo ao lado de Genival, de quem aprendeu a admirar as qualidades, e aprendeu a ser feliz. Não a felicidade fugaz e vazia das pequenas picuinhas que fazia para saborear vitórias irrelevantes. Não. A felicidade plena de edificar algo ao lado de alguém a quem se ama Uma felicidade que Marciele só conheceu ao encontrar alguém que se arriscasse por ela. Que estivesse disposto a tentar. A fazer a acrobacia sem rede de segurança. Alguém capaz de se colocar na reta como Genival fizera.
Foi depois de quase um ano de um namoro como ninguém jamais achou que a Marciele teria na vida, que ela, deitada ao lado de Genival na cama que dividiam todos os dias e de onde o casal guardava apenas boas lembranças, tomou coragem, e, acariciando os cabelos encaracolados dele disse com voz macia:
-Olha, Geninho... Não dá mais pra mim.
Genival, claro, ficou incrédulo, sofreu muito enquanto ouvia que não era ele, mas ela, e que eles eram muito incompatíveis e parará. Ainda ouvindo o som dos cacos de seu coração se espatifando no chão foi que o Genival encontrou fôlego pra perguntar:
-Mas Marci... Tu não é feliz comigo?
-Sou. - Respondeu a Marciele.
-Mas então...? - Genival não conseguiu formular a pergunta. Ainda assim Marciele respondeu:
-Ah... Sei lá, Geninho... Não dá mais.
E saiu pra nunca mais voltar, deixando atrás de si um farrapo humano em forma de homem. O que Genival não entendeu, e nem Marciele soube explicar, é que como aquele escorpião que ferroa o peixe e morre afogado porque é da sua natureza e o leopardo que não muda suas pintas, a vaca da Marciele também não era capaz de mudar suas manchas.
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