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quinta-feira, 12 de junho de 2014

O Everest do Aberval


O Aberval, aos quarenta e nove anos de idade, viu-se desempregado pela primeira vez desde a adolescência.
Fora chamado no RH da Chevalier, rede de lojas de roupas masculinas onde trabalhara por vinte e um anos, e informado que, por conta da crise, compras pela internet, concorrência com a China e talicoisa, a empresa estava precisando reduzir seus quadros, e que a nova meta era ter empregados com pouco tempo de casa, aumentar a rotatividade, e não sei o quê, lá...
Receberia uma indenização razoável, afinal de contas, vinte e um anos não são pouca coisa, e já no dia seguinte, estaria liberado após assinar a papelada da rescisão.
Após receber condolências e tapinhas nas costas de seus colegas, Aberval trabalhou até as seis horas da tarde como fizera por anos a fio, e apenas seis e um, levantou-se de sua cadeira e foi bater o ponto antes de ir ao banheiro.
Aberval era assim. Contrito.
Homem conservador, sério, quase retrógrado. Amara apenas uma mulher na vida, sua esposa, Abigail, com quem se casara aos dezoito anos de idade e a quem perdera por conta de um câncer após mais de vinte anos juntos.
Jamais achou correto ou necessário casar-se novamente.
Experimentara a plenitude de uma relação com Abigail, com quem infelizmente não pudera constituir família, mas, com o mundo do jeito que estava, e ela tendo morrido tão cedo, talvez fosse melhor não ter havido crianças.
Se antes de Abigail morrer, Aberval já era um funcionário modelo na empresa onde trabalhava, uma rede de lojas de roupas masculinas que gozava de certo prestígio, depois de perder a esposa, Aberval se dedicara com ainda mais afinco ao trabalho, fazendo horas extras, desenvolvendo projetos, e galgando os mais altos degraus que poderia alcançar.
Havia feito de quase tudo na empresa desde que começara lá, aos vinte e sete anos. Começou como vendedor, depois gerente, aí, gerente geral, e supervisor regional, até ser promovido a supervisor geral, respondendo apenas ao fundador da rede, doutor Abílio, e seus dois filhos imbecis, Gustavo e Felipe.
Tinha certeza, o Aberval, de que sua demissão passava pelos dois, já que ele e o doutor Abílio eram muito chegados.
Infelizmente o tempo passou, e o doutor Abílio tornara-se um distinto cavalheiro em idade provecta, experimentando lapsos mais e mais frequentes de memória, o que deixou o caminho livre para os "irmãos Crápula" tomarem as rédeas da empresa.
Enfim... Não havia mais o que fazer, Aberval estava na rua.
Chegou a pensar em deixar assim. Em ficar desempregado. Estava com quase cinquenta anos, tinha algum dinheiro guardado, uma previdência privada interessante e agora a indenização pela demissão. Era possível viver dignamente com aquilo. Quiçá até mesmo com algum conforto.
Mas Aberval não era homem de rolar pro lado e morrer numa gaiola por mais confortável que fosse. Mas não, mesmo...
Aberval fora primeiro lugar no tiro de guerra na época do quartel, havia sido patrão de CTG, era eleitor hipotético do Bolsonaro, era um profissional modelo. Um homem com tais credenciais jamais se mixaria pra um solavanco da vida.
Não... Aberval seguiria em frente.
Na manhã seguinte, após assinar os documentos da demissão e se despedir dos colegas apanhou um jornal e se pôs a procurar nos classificados.
Marcou uma dúzia de anúncios e se pôs a fazer as ligações e marcar entrevistas.
As coisas estavam difíceis. Por mais que houvessem empregos disponíveis, a maioria dos empregadores parecia reticente em dar a vaga a um homem de mais de quarenta e cinco anos com longa experiência e que costumava receber salários bem mais altos do que os que estavam sendo oferecidos.
Aberval sabia que seu salário anterior e suas credenciais eram assustadoras para a maioria dos empregadores, mas estava disposto a receber menos e colocar sua larga experiência a serviço de uma nova empresa. Quem sabe passar os próximos dez, quinze anos galgando novamente degrau a degrau até o topo como fizera em seu último emprego?
Era um desafio e desafios eram aquilo de que Aberval precisava para se manter vivo e inteiro.
Após oito entrevistas que terminaram com frases vazias ditas como paliativo ao "tu não serve" que ficava implícito nas caretas dos entrevistadores, Aberval conheceu Cíntia.
Cíntia era uma moça de trinta e poucos anos, usava óculos com grossos aros verde-escuros que contrastavam com seu cabelo roxo e suas roupas coloridas. Ela era dona de uma loja de moda jovem que acabara de abrir uma filial, estava enlouquecendo porque embora tivesse noções bastante elogiáveis de moda e estilo, era quase analfabeta pra "esses troços" de administração.
As credenciais de Aberval a impressionaram positivamente, mas o visual de Aberval a impressionara negativamente, e ela foi muito franca ao explanar.
Falou:
-Olha, eu gostei do teu currículo, seu Aberval, mas tipo, tu parece meu vô, tá ligado? Eu nem conseguiria te chamar pelo primeiro nome sem colocar um "seu" na frente, manja? E eu não sei como é que o senhor iria se ambientar com as nossas lojas e nosso tipo de público. Então, por mais que me doa, porque eu tô assim, do-en-te, atrás de alguém que faça o que parece que o senhor faz, eu vou ter que deixar passar. Lamento...
O Aberval, porém, não se fez de rogado. Sabia que podia ajudar a Cíntia e trabalhar para fazê-la ser proprietária de uma rede de moda jovem de respeito. Fez uma proposta:
-Escuta, e se a gente fizer uma experiência? Eu trabalho numa das tuas lojas um mês, como vendedor, estoquista, o que for, e tu vê se funciona. Se ao final de um mês tu não tiver gostado, ou achar que não deu certo, tu me paga um salário e eu sigo meu caminho.
A Cíntia balançou. Mordeu o lábio rebocado de batom encarnado, fechou um olho cheio de sombra verde, e aí estendeu a mãozinha branca e delicada com as unhas pintadas de amarelo e roxo e disse:
-Feito.
No outro dia, Aberval estava trabalhando como vendedor na DeRraMe, escrito assim, mesmo, uma loja de moda jovem, casual, alternativa e cheia de raipe, fosse isso o quê fosse, de acordo com o que lhe dissera Cíntia um dia antes.
A loja, um espaço com paredes de tijolo a vista entrecortado por pedaços de reboco aqui e ali, manequins usando máscaras de monstros e roupas coloridas e cheias de mensagens irônicas, calças com o fundilho quase nos joelhos, e sapatos mais coloridos que a camisa do Veranópolis parecia exatamente o tipo de coisa que fazia a cabeça dessa geração de imbecis que dominava o mundo.
O gerente, Willas, parecia o filho de uma girafa com uma arara, quase dois metros, magro que nem um caniço, e com o cabelo tingido de verde amarelo e vermelho. Cumprimentou o Aberval com entusiasmo, lhe mostrou a loja toda falando com um sotaque amolecido, típico do Bom Fim, ao terminar as explicações, olhou pro Aberval, de cima abaixo e disse:
-Olha... Boa parte do nosso público é GLS...
-Não tenho partido político definido. - Respondeu o Aberval, dando a conversa por encerrada e indo tratar do trabalho.
Quando descobriu de que se tratava o tal do lance de ser GLS, o Aberval tomou um susto e ficou sem ação.
Estava atendendo dois rapazes que entraram de mãos dadas na loja, passou os primeiro minutos torcendo pra um deles ser cego, mas quando se beijaram suas esperanças escorreram pelor ralo.
Era estranho pro Aberval estar em meio àquele tipo de comportamento. Por mais que se esforçasse, não conseguia achar normal. As meninas beijando o pescoço uma da outra. Os rapazes trocando carícias, até as conversas de seus novos colegas, contando suas peripécias homossexuais. Tudo aquilo fazia o mundo do Aberval abalar.
Mas ele resolveu perseverar.
Tentou encarar o mundo GLS no qual se vira subitamente incluído como a revolução informática anos antes. No começo, era incapaz de entender como funcionava um computador, mas, com esforço e dedicação, Aberval dominou a máquina e a tornou parte de seu dia a dia, hoje, usava um computador com destreza e desenvoltura.
Iria absorver e filtrar os comportamentos que lhe pareciam estranhos, e deixar por essas.
O mês foi transcorrendo, semana após semana, e o Aberval lá, firmão. Aguentando no osso a proximidade com aquela gente, pra ele, tão estranha.
Volta e meia tinha ânsias de sair correndo da loja, ou, de correr alguém. Mas suportava, fechava os olhos, pensava nos seus objetivos, e seguia. Trocava informações profissionais valiosas com Willas e os demais colegas da loja, os ajudando com sua vasta experiência no setor, e vendo-se, até surpreso, ser aceito como uma valiosa parte da equipe.
Até que entrou na loja aquele sujeito.
Já de alguma idade, cabelos obviamente embranquecendo mas cobertos por uma generosa camada de tinta borgonha. Físico de besouro, com tronco amplo e redondo de barril e braços e pernas finos. A cara era macilenta e carregava a expressão de susto perene de quem fez aplicações de botox.
Usava uma calça cargo verde água, tênis amarelos, uma camiseta de manga longa vermelho-vivo e uma echarpe prateada em volta do pescoço. Aproximou-se andando de maneira afetada, e quando falou com Aberval, o surpreendeu com o sotaque carregado do interior do estado.
Aberval percebia nos trejeitos que o sujeito não era apenas gay, mas um afetado e efeminado de marca maior. Desmunhecando visivelmente a cada passo que dava.
Aberval pensou em passar o atendimento a um dos colegas, mas deteve-se. Aquela era uma prova de fogo. Não era uma pessoa homossexual na sua. Não... Era uma vasta bichona escandalosa e purpurinada.
Era um Everest particular que o Aberval deveria escalar sem oxigênio, pela face norte, no inverno se quisesse continuar trabalhando.
Aberval foi solícito. Ignorou as piadinhas de duplo sentido. A voz macia e nasalada, a chatice quase malcriada de alguém que torcia o nariz pra tudo.
Aberval ia filtrando o que o desagradava e concentrando-se em fazer bem seu trabalho.
Encontrou um par de calças e uma blusa que caíram no gosto do boiola, e encaminhou-se para o caixa na certeza de ter suplantado seu Everest profissional.
Com a venda quase concretizada, já na hora de passar o cartão, Aberval, distraidamente, num gesto quase inconsciente de polidez comercial, perguntou:
-Tens um sotaque pesado. És de onde?
O sujeito abaixou o óculos escuro, equilibrando-o na ponta do nariz, ergueu a sobrancelha cheio de charme e disse, pousando a mão na mão de Aberval:
"Sou de São Sebastião do cá ípsilon." e deu uma risadinha.
Aí, não teve jeito. O Aberval se botou nele e só parou de bater no vivente quando vieram três pra separar.
Por mais contrito, profissional e diligente que um homem fosse, tudo tinha limite...

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