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segunda-feira, 12 de junho de 2017
Resenha DVD: Um Limite Entre Nós
Se ao assistir Um Limite Entre Nós tu tiver a impressão de estar vendo teatro filmado, não se alarme.
Provavelmente era a intenção do diretor/protagonista Denzel Washington ao revisitar a peça que ele próprio estrelou em mais de cem apresentações em 2010, levar o trabalho do dramaturgo August Wilson, responsável pelo script do espetáculo, para uma audiência mais ampla.
Dito isso, Washington faz um ótimo trabalho de direção ao não adulterar a experiência de assistir à uma peça em sua adaptação. Excetuando-se um punhado de cenas, quase toda a história de Um Limite Entre Nós (Estúpido título em português para o original Fences, que em bom português significa "cercas", um conceito recorrente na trama) se passa dentro da casa de Troy Maxson (Denzel Washington), ou no quintal da mesma.
O longa narra como Maxson, um lixeiro de Pittsburgh, tenta criar sua família nos anos cinquenta. Ele está há anos no departamento sanitário, e sua rotina se tornou bastante repetitiva. Todos os dias Troy se levanta de manhã e toma o rumo da capatazia, onde se pendura na traseira do caminhão e percorre a rota jogando o conteúdo das lixeiras na caçamba enquanto conversa com seu bom amigo Bono (Stephen Henderson), ele segue essa rotina até a sexta-feira, quando recebe seu salário semanal, compra uma garrafa de gim e vai pra casa jogar conversa fora com o colega no quintal enquanto bebe no final da tarde.
Troy ama uma plateia e ama contar histórias, seja sobre como fez um pacto com o diabo para mobiliar a casa, seja como ele lutou com a própria Morte enquanto jazia com febre em uma cama de hospital, seja sobre a maldade de seu pai, um catador de algodão do Alabama.
Outra coisa que Troy ama é o beisebol, esporte no qual fora um prodígio das ligas negras que, devido à segregação racial, jamais teve a oportunidade de jogar como profissional, e Rose (Viola Davis), sua esposa e companheira pelos últimos dezoito anos.
Sempre que as narrativas de Troy começam a se tornar excessivamente divergentes da realidade, Rose surge na varanda e endireita o rumo da história.
Troy tem um irmão mais novo, Gabe (Mykelti Williamson), um veterano da Segunda Guerra que voltou do fronte do Pacífico com um ferimento na cabeça que o tornou deficiente, mas que se mudou recentemente da casa de Troy numa demonstração de independência que o irrita profundamente, um filho de outro casamento, Lyons (Russell Hornsby), que eventualmente aparece para tomar algum dinheiro emprestado já que sua carreira como músico não anda muito bem, além de um filho mais jovem, Cory (Jovan Adepo), que aos dezessete anos de idade sonha em obter uma bolsa de estudos universitária jogando futebol americano, algo que Troy não vê com bons olhos.
A vida de Troy é aguardar pela sexta, quando ele pode ir ao bar com seus amigos, flertar com mulheres e beber sem precisar se preocupar em acordar cedo na manhã seguinte.
Essa rotina emoldura uma história sobre relações familiares nas classes trabalhadoras, numa realidade que, nos EUA pode parecer dura, mas para os padrões brasileiros é uma boa vida.
Troy trabalha como lixeiro e nunca tem dinheiro sobrando, mas ele consegue colocar comida na mesa, eventualmente afiançar o irmão que é preso por perturbação da paz, vive em uma casa de três andares com um pequeno quintal que comprou graças à pensão do irmão deficiente, é verdade, mas que é sua, e seu filho tem a chance de ir à universidade.
A dureza da vida de Troy é sopa no mel pra maioria dos brasileiros.
Não.
A verdadeira carga de Um Limite Entre Nós é o legado que Troy está deixando para seus filhos, o peso dos sonhos não realizados e das chances que jamais se consumaram.
O dano que a fuga da rotina que assombra Troy causa em sua vida familiar. E isso independe de classe social.
O longa é sobre como cada pessoa é um produto de seu ambiente, e de como esse ambiente é a grande contribuição de nossos pais à formação de nossa personalidade. Algo que fica dolorosamente claro quando Rose sentencia a Cory que ele é igualzinho ao pai.
É tudo o que Cory não queria. Mas a sombra de Troy, que o perseguia em cada cômodo da casa, o apunhalou e se alojou nele, moldando seu caráter.
A última cena do filme deixa isso bastante claro de uma maneira tão bela quanto devastadora.
Obviamente um drama familiar desse calibre é tudo o que atores como Denzel Washington e Viola Davis podiam querer.
Os dois reprisam os papéis que interpretaram no teatro (à exceção de Cory e Raynell todos os atores são egressos da versão da Broadway) e simplesmente destroem nas interpretações.
Troy Maxson é um papel sob medida para os maneirismos de Washington, que suaviza as facetas mais pérfidas do personagem de modo a mantê-lo charmoso, divertido, com sua fala mansa e seus maneirismos ajuda a entender porque Rose permanece com ele a despeito de suas falhas de caráter.
Viola Davis é outra monstra, ela, que trapaceou bonito ao se candidatar como "atriz coadjuvante" e aumentar exponencialmente suas chances de vitória no Oscar é magnética. A cena do choro no trailer, sozinha, já era melhor que atuações de outras atrizes em filmes inteiros, e Viola Davis vai muito além do choro. Ela é terna quando tenta suavizar as arestas de Troy, austera quando cria seus filhos, e parece uma mulher de gelo quando Troy a desaponta.
E se Washington e Davis têm mais tempo na ribalta, não se engane, há espaço para todo mundo brilhar, ao menos uma cena onde cada um dos personagens, do afável Lyons de Hornsby ao rebelde Cory de Adepo, passando pelo sábio Bono de Henderson e o complicado Gabriel de Williamson, que poderia facilmente virar uma caricatura, todos os personagens ganham a atenção da câmera de Denzel Washington para entregar ao menos um grande momento.
Com a cinematografia esperta de Charlotte Bruus Christensen, trabalho seguro de Washington em seu terceiro longa como diretor, e um esforço de elenco espetacular, Um Limite Entre Nós perde um pouco de seu potencial de crítica social quando visto por uma audiência habituada às agruras da vida em um país de terceiro mundo, mas o peso do drama humano permanece intacto, garantindo 138 minutos de pujança emocional em um longa que merece audiência.
Assista. É um belíssimo filme.
"-Algumas pessoas erguem cercas para manter as pessoas fora. Outras as erguem para manter as pessoas dentro."
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