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sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Resenha Cinema: 1917


À primeira vista, pode parecer curioso que em Hollywood haja tantos filmes contando histórias e retratando batalhas da Segunda Guerra Mundial e tão poucos sobre a Primeira... Mas só à primeira vista.
Quando tomamos conhecimento de como a "Guerra Para Acabar com Todas as Guerras" começou e se desenrolou, fica mais fácil entender porque o conflito não é tão atraente para o cinema.
Ao contrário da Segunda Guerra Mundial, a primeira Grande Guerra não tinha vilões óbvios como os nazistas para serem metralhados de maneira impiedosa por heróis de qualquer uma das nações aliadas e arrancar urras da audiência. A tecnologia e a cultura da época eram tão radicalmente diferentes do que temos hoje, que as audiências atuais (compostas majoritariamente por imbecis incapazes de entender que os alemães dos anos 1910 não eram nazistas, eu juro, ouvi isso em primeira mão ontem...) simplesmente não seriam capazes de se relacionar, sem contar o fato de que a Primeira Guerra Mundial foi um conflito de trincheiras, que era muito mais um jogo de espera do tipo "eu te desafio a ultrapassar essa linha" do que um quadro de grandes batalhas lutadas de forma dinâmica com correria e atos heroicos. Na Primeira Guerra Mundial não permitir que o inimigo avançasse era tão ou mais importante do que avançar sobre ele e isso, aparentemente, não gera sequências cinematográficas o suficiente para Hollywood.
Mas eis que Sam Mendes, o diretor de Beleza Americana, Soldado Anônimo, Estrada para a Perdição e Foi Apenas um Sonho resolveu contar uma história de verdade a respeito do conflito. Uma história inspirada pelas experiências de seu avô no fronte, e junto com a roteirista Krysty Wilson-Cairns criou 1917.
O longa acompanha dois jovens soldados lotados no fronte ocidental três anos após o início da guerra. Os cabos Blake (Dean Charles Chapman, de A Música da Minha Vida) e Schofield (George MacKay, de Capitão Fantástico) estão descansando atrás das linhas quando são chamados por seu sargento e levados até o general Erinmore (Colin Firth).
O oficial em comando lhes informa que, na calada da noite, as forças alemãs fizeram uma retirada de suas trincheiras do outro lado da Terra de Ninguém. Assumindo que eles estão batendo em retirada e que a guerra está a um passo de ser vencida, as forças britânicas partiram em perseguição com dois batalhões da companhia Devons para dar cabo dos Hunos fujões. Os britânicos, porém, cometeram um erro. Imagens aéreas revelam que os alemães fizeram um recuo estratégico para uma posição muito mais fortificada e com artilharia superior alguns quilômetros a oeste. A Cia. Devons, então, está marchando para o próprio extermínio sem saber.
O comandante da Devons precisa ser avisado de que o seu ataque, marcado para o amanhecer do dia seguinte, deve ser cancelado, entretanto, durante seu recuo, os alemães cortaram todas as linhas telefônicas, e a única maneira de informar a ordem ao comandante do batalhão é entregá-la pessoalmente.
A missão que Erinmore passa a Blake e Schofield é tão simples quanto indigesta:
Encontrar o comandante e informá-lo de que o ataque deve ser cancelado. Mas para isso eles terão que se infiltrar dezesseis quilômetros para dentro do território ocupado pelo exército inimigo para impedir o massacre dos mil e seiscentos homens da Devons, incluindo o irmão mais velho de Blake.
A partir daí seguimos os dois soldados em uma jornada épica das entranhas desesperadas das próprias linhas, passando pela lama, arame farpado e cadáveres decompostos na Terra de Ninguém, a escuridão macabra dos bunkers inimigos, a falsa paz dos campos além, e as ruínas de cidades arrasadas pelos bombardeios enquanto eles experimentam em primeira mão o que de melhor e de pior a humanidade tem a oferecer durante um dos mais violentos conflitos da História.
1917 é espetacular.
Vamos começar pelo que todo mundo anda falando a respeito:
A cinematografia é um disparate. O longa é rodado como dois grandes planos sequência com um único corte mais ou menos na metade do filme, permitindo que a audiência acompanhe cada passo do caminho dos protagonistas como se estivéssemos ao lado deles. Sim, nós obviamente conseguimos perceber onde estão os cortes "disfarçados", quando a câmera se movimenta para alguma coisa vaga ou sem importância, ainda assim, é impossível não levar em consideração o tamanho do trabalho envolvido em criar a ilusão de uma única (ou duas únicas...) tomada para um filme de quase duas horas em termos de direção, edição (Lee Smith), fotografia (Roger Deakins), e trabalho de elenco e continuidade, e o visual é singular da melhor maneira possível.
Contribui para esse visual o sensacional desenho de produção de Dennis Gassner, que captura com maestria todas as facetas do conflito, das trincheiras sufocantes ao terreno bombardeado repleto de lama e moscas, dos ratos por todos os lados aos cadáveres em diferentes estados de decomposição dando testemunho de o quão pouco as trincheiras avançavam durante os anos pelos quais o conflito se estendeu.
Todos parecem famintos, esgotados e emputecidos além do que um ser humano deveria suportar, mas mesmo em meio a tanto horror, o longa sempre encontra espaço para nos lembrar de que ainda há bem no mundo. Pequenos relances de candura, fraternidade e altruísmo que brilham como faróis em meio a tanta escuridão.
Entre tantos acertos técnicos e narrativos, ainda há espaço para que o arco dos protagonistas tenha destaque.
Blake e Schofield já começam o filme amigos, mas são homens diametralmente diferentes. Blake é mais jovem, impulsivo e otimista. Ele acredita na glória da vitória. Ele já começa o filme parecendo otimista e impulsivo, e sua ânsia em salvar o irmão apenas o leva a correr mais riscos.
Schofield é mais velho e calejado. Ele já lutou no fronte e percebeu o absurdo do conflito que se desenrola há três anos. Suas experiências o tornaram cauteloso, pragmático, até cínico a ponto de não voltar para a casa durante as folgas porque não vê um ponto em ir para ter que retornar ao fronte depois. Ele apenas deseja escapar de tudo aquilo com vida, e a forma como a missão o afeta sem que isso jamais soe forçado ou arbitrário de forma alguma, é mais um testamento da qualidade do longa.
Muito do êxito do arco do personagem se deve à espetacular atuação de George MacKay, que exibe com segurança e veracidade a determinação e o desespero de um homem lutando contra o relógio e seus próprios instintos.
A ação é esporádica e frequentemente inesperada, nós geralmente acompanhamos Blake e Schofield chegando a lugares onde as batalhas já terminaram, mas quando a guerra chega, ela é violenta e tem os dois pés na realidade. Homens atiram uns nos outros de trás de coberturas com rifles que disparam uma única bala de cada vez e erram muito mais do que acertam enquanto se arrastam por lama, escombros e água tentando se manter tão invisíveis quanto possível.
Entre tantos acertos, talvez o maior de todos seja a maneira como 1917 trata a ambiguidade de uma guerra sem vilões óbvios. Não há um inimigo específico a derrotar. Nós raramente vemos o rosto de um alemão, talvez num esforço consciente de Mendes e Wilson-Cairns em mostrar que o verdadeiro inimigo é a guerra em si.
Ao lançar uma merecida luz sobre uma guerra que muitos parecem dispostos a esquecer sem jamais glorificá-la, escolhendo dar ênfase às melhores qualidades das pessoas, bravura, compaixão, disposição em se sacrificar em nome de um bem maior, Sam Mendes criou um dos melhores filmes de Guerra do cinema recente, que reverbera o adágio a respeito do que acontece com as pessoas que desconhecem sua História.
Eu não tenho palavras o suficiente para recomendar 1917 da maneira como o filme merece ser recomendado, então, nem pense a respeito. Apenas vá assistir, e pense depois.
É obrigatório.

"-Eu tinha esperança que hoje seria um dia bom. Esperança é uma coisa perigosa."

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