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sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Nós (os homens) e futebol...


Há algo de primitivo em todo o homem, e quando digo homem, não me refiro á espécie humana, mas aos representantes do gênero masculino, o homem, e não a mulher.

O homem é criado desde pequeno de forma mais primitiva do que a mulher, quem nunca viu uma mãe ou pai colocando um pequerrucho pra fazer xixi ao pé de uma árvore em uma rua lotada? Agora já viu um pai ou mãe fazendo o mesmo com a filhota? Na praia, as menininhas em sua maioria, mesmo aquelas que recém deram os primeiros passos, usam a parte de cima do biquini, ou maiô completo. Os guris, por outro lado, até pelados andam quando são bem pequenos.

É, talvez, uma preparação pro futuro. Todos sabem que é uma selva lá fora, logo, o caçador mais apto terá maior chance de sucesso. Quase como se estivéssemos de volta ás cavernas, vemos os homens sendo preparados para o que der e vier. Se a filha briga na escolinha é um escândalo, se o filho briga, tudo bem, coisa de guri. Se ela tira notas ruins, não terá futuro, se ele tira notas ruins, pelo menos é bom em esportes. Se a guria rouba um beijo de um colega, "minha filha o que é isso? Que comportamento é esse?", se o guri repetir conduta "Mas, ah, guri.".

Os pais protegem a virtude das filhas desde a mais tenra infância. Já com os filhos... Há até um certo orgulho nos progenitores quando o pimpolho se comporta de forma moralmente reprovável, contanto que ele demonstre competitividade.

Quando crescidos, os homens se deparam com uma sociedade que ainda exige que eles sejam chefes de família, bons provedores, que defendam sua casa e família, que sejam educados e inteligentes e espirituosos e capazes de citar Nietzsche, mas ao mesmo tempo encontram mulheres evoluídas que aprenderam que biologia não é destino, que querem, antes de casar e ter filhos, saber mais, trabalhar mais, ganhar mais, ver mais filmes da Nora Ephron e da Sophia Copolla, ler mais livros da Martha Medeiros e fazer academia entre o trabalho e as aulas da pós-graduação. E aí, meus camaradas, o homem se perde. Ele não consegue encontrar seu meio-termo, então exagera pra mais ou menos e ajuda a mulher menos do que deve, e então é um grosseiro e um relapso, ou ajuda demais e então é um machista e um afetado.

Talvez seja por isso que nós, homens, gostamos tanto de futebol, no futebol nós vemos representado um mundo de regras simples onde o mais apto física e mentalmente é favorito á vitória, ao mesmo tempo, mesmo esse mundo de regras simples guarda espaço para o imponderável, e o mais fraco ainda pode levar a melhor contra todas as chances. O esporte substitui a guerra no inconsciente do homem, nós gritamos, torcemos, xingamos e confraternizamos com completos desconhecidos, quando vamos ao campo (de batalha) lutar pela bola estamos satisfazendo os instintos que foram cultivados em nós por nossos ancestrais mas que nem sempre encontram lugar na sociedade moderna, nos abraçamos aos nossos companheiros após o triunfo, caçoamos do inimigo derrotado, bradamos gritos de guerra e tocamos tambores primevos.

Ali, seja calçando chuteiras na sexta-feira de noite, seja quarando ao sol no estádio no final de semana, nós estamos satisfazendo nosso cro-magnon interior, encontrando um lugar nesse (nem sempre) admirável mundo novo onde podemos ser aquilo que nascemos e somos criados pra ser, mas que a sociedade do século XXI não nos permite ser.

E ainda há quem se pergunte por que nós gostamos tanto de futebol.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O Muro de Nelson


Nelson não era uma pessoa muito sociável. Na verdade, Nelson era bastante anti-social. Nelson não era anti-social como você, que não gosta de pessoas te espremendo em danceterias, nem como você, que não se sente á vontade em grupos onde não conhece quase ninguém. Oh, não. Nelson era muito anti-social. O suficiente pra se manter afastado de todos, pra se manter sozinho sem nem sequer dar bom dia aos vizinhos. Nelson erigiu um muro ao seu redor para garantir sua própria solidão, e nem sequer gostava da solidão, ele apenas não gostava de gente. Não era uma decisão baseada em dados ou em alguma racionalidade duvidosa, tipo "As pessoas estão destruindo o mundo, por isso não gosto delas...", não. Nelson não gostava das pessoas, ponto. As pessoas com seus olhares, com suas vozes, com seus toques... Nelson detestava as pessoas. Nelson era o tipo de pessoa que, em uma história infantil, criaria cobras. Uma criação de cobras era a única coisa capaz de fazer jus á total, plena e absoluta falta de empatia ou simpatia de Nelson pelas pessoas.
Nelson trabalhava em casa, evitava ao máximo o contato com o mundo exterior, e quando mantinha algum, era desagradável, pra garantir que as pessoas se mantivessem afastadas dele, fazendo questão de mostrar em todas as cores seu desprezo por elas. Isso, além de garantir a solidão que Nelson tanto prezava, deu á ele uma péssima fama. As pessoas que o viam nos lugares que ele era obrigado á frequentar, como o supermercado, lhe lançavam olhares desdenhosos, isso quando lançavam algum. Na maior parte do tempo, as pessoas fingiam que não o tinham visto. Seus vizinhos largavam a porta do prédio e andavam mais rápido quando ele se aproximava, aumentavam o volume da TV quando ele batia as janelas de seu apartamento, deixavam á sua porta as roupas que ele eventualmente derrubava do varal em suas áreas de serviço.
As pessoas devolviam silenciosamente á Nelson o desprezo que ele lhes dispensava de maneira tão alardeada, e essa situação causava e justificava o comportamento de Nelson.
Nelson se abstinha de viver, sim, pois viver, mais do que estar respirando, é participar dessa instituição injusta e imperfeita chamada humanidade. Nelson renegava o dever de dar ás pessoas a oportunidade de serem surpreendidas por ele, de surpreendê-lo ou, que diabos, de agir exatamente como ele esperava para que ele pudesse mandar tudo lá pra casa do Capita e pensar consigo mesmo "eu não disse?".
Nelson não conhecia o prazer de um abraço, de um aperto de mão, não sabia como era o frio na barriga ao lembrar de um pequeno vexame, ou a sensação cálida ao relembrar um beijo.
Nelson tinha todas as ferramentas para viver, mas preferiu fazer-se morto, e o pior de tudo: Ninguém sentiu sua falta.
"Está vivo! Vivo!!!"

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Resenha cinema: 2012


Lá estava eu, sentado em minha poltrona esperando pelo fim do mundo, ou, ao menos, algo semelhante.

Roland Emmerich não me decepcionaria, certo? Certo. Se há algo que Roland Emmerich saiba fazer é destruir tudo, ele já provou isso em Independence Day e O Dia Depois de Amanhã, logo, quando ele se travestiu com as profecias Maias e resolveu mandar tudo lá pra casa do Capita, eu sabia o que viria pela frente, um espetáculo técnico de proporções bíblicas e uma trama água com açúcar servindo de acessório.

Lá estão todos os elementos, o cientista abnegado, seu chefe meio mau-caráter, o presidente gente boníssima, o pai de família tentando se reconectar aos filhos em meio á tragédia global, o cachorro que ás vezes fica pra trás, o maluco que já sabia... Tudo tão clichê que poderia até dar sono. Poderia até a primeira rachadura separar o chão em Los Angeles, daí em diante é uma sucessão de fugas, perseguições, destruição massiva, explosões, maremotos, terremotos, barulho por todos os lados, tudo com o selo Emmerich de excelência técnica, garantia de qualidade, senão do enredo, do que realmente interessa nesse tipo de película: Os efeitos especiais.

O filme não é ruim, começa com a descoberta de que as erupções solares estão criando neutrinos, partículas atômicas até então inofensivas, mas que por alguma razão, passam á gerar alterações físicas no centro da terra. O personagem de Chiwetel Ejiofor, geologista, conta tudo pro Presidente dos EUA, Danny Glover, e eles se preparam para o fim catastrófico que deve levar anos. Até a cúpula de especialistas descobrir que estavam errados e que tudo aconteceria logo ali, em 2012, exatamente como os Maias previram (Qualquer semelhança com O Dia Depois de Amanhã não deve ser mera coincidência.).

Como vem sendo hábito do diretor alemão o filme traz uma pontinha de sarcasmo e crítica aos norte-americanos, e distrai com louvor, em alguns momentos até nos pegamos na ponta da cadeira, torcendo pelo personagem de John Cusack, ou querendo esmurrar o personagem de Oliver Platt, mas, como sempre foi hábito de Emmerich, é descartável, a gente esquece dele no dia seguinte.

Vá, mande o senso crítico lá pra casa do Capita por duas horas e divirta-se, pior que os vampirinhos purpurinados de Prepúcio não deve ser.


"Eu estava errado."

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Auto Piedade, ou Musical Particular.


A humanidade tem uma forte tendência á auto comiseração, mais forte do que a nossa capacidade de solidariedade, provavelmente por que é muito mais fácil sentir pena de si mesmo do que de outrem, não precisamos nos esforçar para colocar-nos em nosso próprio lugar, e assim, quando nos elencamos no papel de vítima, economizamos em empatia.
A maioria de nós passa pela infância colhendo as benesses do papel de vítima. Um pequeno resfriado, que rende paparicos e mimos que a saúde plena não oferece, o gesso no braço, que nos desobriga de certos deveres, o papel de rebelde injustiçado que á todos cai bem. Sentimos pena de nós mesmos por que é fácil. Ser vítima é cômodo, não requer grande prática, pois trata-se de uma habilidade inata, cultivada desde o berço, quando percebemos que seremos alimentados após derramar lágrimas. Viver sob o estigma de coitadinho é um talento funesto para o qual todos estamos equipados, encontrar o momento de abandonar esse papel, por outro lado, pode ser mais difícil, mas sem dúvida é mais recompensador.
Todos nos deparamos com momentos de definição na vida, eles podem não ser adornados com luzes, dança ou aplausos como um filme da Disney, podem ser momentos íntimos dos quais ninguém jamais venha á saber, ou podem ter inúmeras testemunhas incapazes de entender o peso daquele instante para seu protagonista. Esse momento de definição, esse instante mágico em que somos obrigados á decidir se permaneceremos sentindo pena de nós mesmos ou se piedade não mais nos satisfaz é difícil, ele requer, acima de tudo, compreenssão e entendimento. Ele pode ser confundido com um momento comum, apenas outro, e, se o deixamos passar, pode levar anos até que outro surja, isso, se surgir.
Para as pessoas que deparam-se com esse momento e têm a clareza para percebê-lo, aproveitá-lo e comprometer-se com ele, a recompensa é imensurável. A paz de espírito de uma pessoa que diante de uma injustiça, de uma injúria, ou de um desafio preferiu rilhar os dentes, cerrar os punhos e não se colocar como uma vítima diante da vida, e sim como alguém disposto á encarar o mundo e o que quer ele tenha á oferecer, seja bom ou ruim, não tem preço. Pode ser o ato de se erguer e assumir um erro, de mesmo com lágrimas nos olhos e terror no coração, impedir alguém mais forte de ferir á quem se ama, abandonar o medo e o manto de vítima e abraçar a própria força. Esses são frutos amargos de plantar, mas doces de colher, e seu sabor permanece conosco, e nos momentos mais difíceis, a lembrança de sua doçura nos dá impulso, nos afasta do caminho fácil do flagelo auto imposto e nos guia pelas veredas da coragem.
Parar de sentir pena de si mesmo é mandar a covardia lá pra casa do Capita. É abraçar a coragem em detrimento do medo, a sabedoria em detrimento da ignorância, a vida em detrimento da morte.
É trabalhoso, no início pode ser incômodo, desagradável ou até aterrador, mas mesmo nesses casos, a sensação de completude decorrente de enfrentar as mazelas da vida, de abandonar a auto piedade é tão maior e mais profunda que o incômodo o desagrado e até mesmo o terror, que vale todo o esforço.
E se, algum tempo depois de abandonar esse sentimento mesquinho que é a auto-piedade, você sentir um sabor doce na boca ao relembrar o momento, se sentir iluminado, e ouvir, ainda que apenas em sua mente, aplausos, pode até, arriscar um passo de dança.

"Renegue o medo."

sábado, 21 de novembro de 2009

Herói Secreto.


Enquanto andava pelas ruas noturnas chutando latas vazias de refrigerante e fazendo grande alarido, Gervásio, jornal embaixo do braço, pés cansados, olhava pra trás e pensava nos problemas que tinha o esperando em casa.
Gervásio não era bonito, nem inteligente, tampouco era rico, Gervásio era um exemplar assustadoramente representativo do Homem-Comum. Essa estranha raça de hominídeos que povoa a terra nos dias de hoje, descendente direta do Homo-Sapiens-Sapiens, que sabia que sabia, e talvez aí repousasse seu maior erro. De qualquer forma, o Homem-Comum não sabe que sabe, ele acha que sabe, e, talvez aí repouse o seu maior erro.
Gervásio levava uma existência particularmente enfadonha, trabalhava de nove ás seis num emprego que detestava e no qual não era particularmente competente, estudara até a conclusão do Ensino-Médio (Á época Segundo-Grau.), e sua educação era exatamente isso, média, no início da vida adulta tentara abrir um negócio próprio mas não aguentou a pesada taxa de encargos federais, estaduais e municipais somada as mazelas de sustentar os prejuízos dos primeiros anos de um empreendimento particular, de modo que abandonara o empreendedorismo. Encontrou um emprego modesto em uma loja de sapatos, era pra ser temporário enquanto se recuperava do baque financeiro da falência de sua primeira incursão ao mundo dos microempresários, mas aquele "temporário" foi se esticando, esticando, esticando... E virou permanente. Gervásio era o funcionário mais velho da loja, e hoje era gerente. Nada pra se orgulhar, com o treinamento adequado um chimpanzé com acefalia poderia realizar as suas funções, além disso, a gerência era o ápice do crescimento profissional com o qual Gervásio poderia sonhar naquele emprego, acima dele unicamente o proprietário da loja, e isso Gervásio jamais seria. E nem queria ser. Na verdade o que Gervásio queria mesmo era mandar aquele emprego medíocre lá pra casa do Capita e tentar outra coisa, nem que fosse fugir com o circo e passar o resto da vida lavando elefantes com um escovão. Mas Gervásio não podia. Gervásio constituira família no tempo em que trabalhava na loja de sapatos. Jamais sonhara com a chefia de família, entretanto, á época, pareceu a coisa certa á fazer. Morava com Natália pois era conveniente para ambos, e, quando ela disse que estava grávida, pareceu conveniente sorrir e abraçá-la, mesmo que não se sentisse particularmente entusiasmado com a paternidade.
Deivid era um nome imbecil, mas Natália adorava desde que assistia A Gata e o Rato, sentindo paixão por Bruce Willis e seu personagem, o detetive David, de modo que Gervásio escondeu seu desapontamento com o nome e registrou o menino sob tal graça, embora tenha lutado por breves instantes contra os ímpetos de nomeá-lo Alaor, para que tivesse um másculo nome de peão.
Claro, Gervásio amava seu filho, fosse pela onda de calor que percorreu seu corpo quando o bebê agarrou seu dedo com a mãozinha minúscula, fosse pelo instinto primevo de proteger sua cria e, por consequência, a continuidade de sua descendência, seguiu amando-o quando os médicos disseram que o menino sofria de paralisia cerebral e, embora, no futuro tivesse possibilidades de levar uma vida normal, iria requerer alguns cuidados especiais nos primeiros anos de desenvolvimento.
Gervásio trabalhava por Deivid e Natália, para garantir que eles tivessem o necessário para levar a vida. Era difícil. O emprego de Gervásio não rendia uma grande soma, a família morava em um apartamento cujo aluguel consumia metade dos rendimentos de Gervásio, e com Deivid precisando de cuidados, Natália não podia trabalhar fora.
A vida de Gervásio estava difícil, ele sabia, em algumas ocasiões, na cama antes de dormir se revoltava internamente, e bradava pensamentos acusadores ao Criador que poderia, ou não, o estar observando de cima, em outras, se sentia afortunado ao comparar a sua situação com a de outrem, como a família rica que sofria com o sequestro do único filho á mais de duas semanas e sobre a qual lia no jornal enquanto esperava pelo trem.
Ao ver a composição se aproximar da estação, dobrou o jornal, reposicionando-o sob o braço, e se colocou onde imaginava que a porta do vagão abriria, muitas pessoas faziam isso na estação, de modo que Gervásio se sentiu como se tivesse vencido várias delas quando a porta dupla separou-se bem á frente de seu nariz. A sensação fugaz de triunfo desapareceu quando Gervásio sentou-se e notou a bolsa de viagem da nike sob o banco em frente ao seu. Olhou em volta, não haviam tantas pessoas no vagão, ninguém sentando próximo á bolsa. Agachou-se e a apanhou. Entregaria para alguém quando chegasse á sua parada. Pegou o jornal, olhou o caderno de esportes, seu time estava em situação decente no torneio nacional, talvez classificada ao torneio do continente, por que não? Gervásio gostaria de levar Deivid á um jogo do torneio continental, o moleque vibrava com futebol, Gervásio não era um fã muito apaixonado, mas o entusiasmo do guri o levava a acompanhar o esporte com mais atenção. Gervásio lia sem absorver as letras. Parou, olhou pra bolsa. O que haveria nela, ele imaginava. Não custava dar uma olhada. A colocou no colo, agarrou os dois cursores do zíper, e os separou com delicadeza. Maços gordos de notas de cem iluminaram sua face. Era dinheiro demais para Gervásio estimar um quantia, centenas de milhares de reais, talvez um milhão. Poderia ser dinheiro falso, imaginou de imediato. Gervásio repetiu o gesto das atendentes de casas lotéricas e arranhou as riscas horizontais próximas á efigie de uma das notas, constatou o relevo entre o alívio e o pavor, o dinheiro era verdadeiro. Gervásio fechou a bolsa sobressaltado e olhando para os lados quando o trem parou.
Algumas pessoas entraram no vagão, e sentaram perto de onde estava Gervásio. Ele abraçou-se a bolsa. Se pôs á divagar, imaginando o que faria. Poderia separar uma parte do dinheiro, então iria trocando as notas grandes aos poucos, em vários estabelecimentos comerciais, de modo á impossibilitar o rastreio do dinheiro. Depois que trocasse uma boa parte, compraria passagens de avião para a Argentina. Sua esposa sempre falava com ternura da viagem que fizera a Mendoza antes de conhecê-lo, ela adorava o frio, embora ele preferisse o calor, mesmo que suasse em bicas até em temperaturas amenas, mas rico, poderia habituar-se ao frio. Poderia levar Deivid á jogos pelo continente todo, e, mais importante, garantir-lhe o melhor tratamento que fosse possível, garantindo que seu rebento se desenvolvesse ao máximo. Sim, pensou Gervásio, abandonaria o emprego na sapataria no dia seguinte, talvez esmurrasse seu chefe. Não, o seu Rodolfo sempre fora gentil com ele, odiava o emprego, não ao patrão. Apenas abandonaria o emprego, de forma amigável e seguiria seu caminho. Não contaria a Natália, a origem do dinheiro, depois que tivesse resolvido o problema das notas grandes, diria que ganhou na loteria, ou que herdou de um parente distante e obscuro. A mente de Gervásio viajou por tanto tempo que ele mal percebeu o tempo da viagem, quando sua parada se aproximava, na penúltima estação, só sobrara ele e um outro sujeito no vagão. Encaminhou-se entusiasmado para a porta, remexendo as pernas querendo que o trem parasse logo, quando ouviu o homem gritar do fundo do vagão. Seria com ele? Pensou se deveria olhar, e, ao dar-se conta que só ele estava no vagão, virou-se. O sujeito apontou-lhe seu jornal, esquecido no banco.
Gervásio não podia ligar menos para o jornal, mas não queria levantar suspeitas, deu um sorriso amarelo, acenou em agradecimento e apanhou o jornal. Colado á porta do vagão, deu uma espiadela nas notícias da capa, mais para disfarçar. Foi quando deu-se conta da manchete. O sequestro.
Não havia nenhum detalhe sobre pagamento de resgate, mas mesmo não sendo particularmente brilhante, talvez pela adrenalina da situação alimentando seu cérebro ocioso, Gervásio somou dois mais dois. Por que outra razão alguém esqueceria uma bolsa repleta de dinheiro sob o banco de um trem? Aquele dinheiro provavelmente representava a vida de alguém. Gervásio tentou racionalizar, a família era rica, podia pagar outro resgate, isso se aquilo fosse, de fato, o resgate de um sequestro. Por que Gervásio deveria se importar? Achado não é roubado, certo?... Não. Gervásio não podia. Não era certo. Além disso, o sujeito no vagão poderia ser um bandido. Vira gervásio, podia segui-lo e ameaçar sua família.
Aqueles segundos se arrastaram com passos de velha enquanto o Gervásio travava um duelo com sua própria consciência. Gervásio estava tomando uma decisão, e não sabia se era por temer pela segurança de sua família e de outra pessoa ou por um medo incnsciente de mudar de vida.
Deixou o jornal cair de próposito, e, ao abaixar-se para apanhá-lo, posicionou a bolsa sob o banco do trem.
Assim que as portas se abriram, Gervásio saiu andando rápido, e só respirou quando a composição gritou deixando a estação. Foi nesse momento que o coração de Gervásio se apertou no peito, se encolhendo até quase sumir. Os pés judiados de Gervásio o conduziram como se fosse um zumbi até sua casa. Tomou banho, fingiu assistir o noticiário, a novela e o jogo de futebol ao lado da esposa e do filho, e depois deitou-se na cama imaginando o que havia acontecido, e, durante a madrugada, quando Natália teve que se levantar para atender Deivid, ele se perguntou se a alternativa não teria sido melhor.
Na manhã seguinte, acordou, aprontou-se para o trabalho e apanhou o jornal sob a porta, a manchete, em bom tamanho, mostrava a notícia de que, após o pagamento do resgate, menino vítima de sequestro fora libertado naquela madrugada.
Com os olhos marejados, Gervásio foi ao quarto de Deivid, e beijou o filho, mesmo em segredo, havia dado ao filho motivo para orgulhar-se dele. Era um herói. Secreto. Mas herói.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Temporal em Porto Alegre


A tempestade se avizinhava sobre Porto Alegre, grandes nuvens escuras se espichavam sobre o céu da cidade como longos tentáculos á envolvê-la sob uma abóbada de escuridão.
Relâmpagos cortavam o céu, trovões ribombavam com fúria e um vento forte soprava, tirando o lixo do chão para rápidas danças no ar.
Alheio á tudo isso, ele pensava apenas nela. Nas mensagens secretas que recebera naquele dia e no anterior.
Ao mesmo tempo em que não podia conter a vontade que sentia de vê-la, de tê-la nos braços, de sentir o perfume de seus cabelos, pensava se valia a pena se violentar novamente assim que ela fosse embora dois dias depois.
Ele era um pessimista rematado. Como os perus natalinos, morria de véspera. Isso ocorria desde a sua infância, se furtava de pequenos prazeres pensando em poupar-se do sofrimento de não mais tê-los. Era, também, uma escolha consciente. Ele preferia daquele jeito, achava que seria mais prático levar a vida longe de satisfações fugazes, afinal, era melhor viver sem experimentá-las do que conviver com a saudade que ficaria no vácuo de tais satisfações.
"Mecanismo de defesa", era o que dizia quando o confrontavam com suas duvidosas convicções. Em mais de uma vez perdera oportunidades que, se não mudariam sua vida, o teriam divertido muito por algumas horas, ou dias. Não ligava. Quando lhe contavam quanto tal atividade fora divertida ele sorria, comentava, mas jamais se arrependia de não ter ido. Era seu jeito de ser.
Agora, ali estava ele, ouvindo o som insistente da chuva espancando os telhados da vizinhança, observando a iluminação amarela das lâmpadas ligadas de forma precoce nas ruas, e em sua mente, apenas ela e a sua iminente chegada.
Lembrava do que fizera na última vez em que ela viera á cidade. Havia feito proposta de não vê-la. Pouparia-se, assim, do sofrimento da despedida, demasiado penosa para ele quando da penúltima passagem da jovem por Porto Alegre, um ano antes. Era o mais sensato. Ela não voltaria para o velho pago, certo? Mesmo se voltasse, o que ele tinha á oferecer? Não muito. Suas responsabilidades auto-impostas o prenderiam ainda por algum tempo á uma vida que ele não queria forçar ninguém á dividir com ele. Sabia perfeitamente o que aconteceria com ambos se fossem tolos o bastante pra levar aquilo adiante. Tinha exemplos próximos. Não a veria. Não a veria. Não a veria.
Precisava vê-la.
Amaldiçoando a própria estupidez, mandou toda a cautela lá pra casa do Capita e marcou hora e local, e foi. Era de manhã, a luz matutina a deixara ainda mais linda. Ela estava feliz também. As coisas iam bem pra ela em sua nova vida. Novo emprego, animais de estimação, vida social movimentada. Ele ficou feliz por encontrá-la, e feliz por ela, honestamente. E, ao mesmo tempo, sentiu-se tão miseravelmente deslocado que abreviou o encontro não a levando em casa como fazia sempre. Á tarde, não conseguiu abster-se de vê-la novamente. Ela continuava linda, divertida, falando muito, ás vezes bobagens, mas só ás vezes. A presença dela o inebriava de novo. Marcou um terceiro encontro, e tomou sua decisão.
Uma decisão difícil. A de seguir com sua estratégia costumeira. Furtou-se ao prazer da companhia dela. E, de coração partido, não a viu mais.
Passou-se algum tempo, e agora, ali estava ele, regenerando com dificuldade sua carapaça, e ela avisava que estaria novamente na cidade.
Complicado, ele pensava. Complicado demais.
Ela voltaria pra casa depois, e ele? Ficaria em Porto Alegre novamente, pensando no "se...?", não sabia se queria aquela sensação de vazio que sentia toda vez que ela se despedia dizendo á que horas deveria estar no aeroporto no dia seguinte.
Fez proposta de não dizer nada, se fazer de morto, como fazem alguns animais sorrateiros em sua luta por sobrevivência.
Todavia, ainda sentia o cheiro dos cabelos dela. Ouvia o som de sua risada, era capaz de ver a cor de seus olhos, particularmente encantadores em certos dias. E não sabia se poderia resistir para seu próprio bem.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Resenha Cinema: Código de Conduta


Ontem saí de casa e, na companhia de amigos, fui ao cinema para ver 2012, nova tentativa (e bem sucedida.) do diretor alemão Roland Emmerich de destruir o mundo após cometer 10.000 A.C., mas não consegui.
A sessão que tinhamos em vista estava lotada, então encaramos o novo filme de Jamie Foxx e Gerard Butler, Código de Conduta, de F. Gary Gray.
A premissa é interessante: Pai de família, após ver a esposa e a filha serem violentadas e mortas durante assalto, se desespera ao saber que um dos dois criminosos irá receber uma pena atenuada por colaborar com a promotoria no processo contra o outro, declarando guerra ao sistema judiciário da Philadelphia.
O filme começa bem, uma sequência crua e bruta mostrando o crime da qual Butler e família são vítimas, para imediatamente a seguir apresentar Nick, o personagem de Foxx, promotor arrogante, preocupado com seu alto índice de condenações mirando promoções futuras, e, para isso, fazendo acordos duvidosos que visam ter "alguma justiça ao invés de nenhuma.".
Daí o filme salta dez anos e mostra o início dos planos do personagem de Butler, Clyde, sabotando a injeção letal do criminoso condenado (Que de indolor passa á dolorosa pra cacete.), e seguindo em direção á sua vingança bíblica contra o sistema que libertou o assassino estuprador que lhe roubou a razão de viver.
OK, o filme é maneiro, é um exercício divertido imaginar que, com o planejamento certo, alguém pudesse fazer a bagunça que o personagem central do filme faz com as autoridades, além disso, ele começa sua sanha vingativa contra assassinos estupradores, personagens desprezíveis para com os quais ninguém terá nenhum tipo de empatia ou simpatia, o mesmo vale para os outros personagens que, de início, morrem feito moscas.
O lance é que o filme tem dois problemas cruciais, pra mim. Primeiro:
Á certa altura, Clyde se torna um tipo de supervilão, uma mistura de jigsaw com o Coringa de Batman - Cavaleiro das Trevas.
Ele tem tanta coisa planejada, e executa os planos de um modo tão inacreditável que fica impossível manter a conexão com ele. Isso é provavelmente uma forma de virar a simpatia da audiência, inicialmente do lado do pai de família brutalizado, para o promotor, inicialmente um personagem arrogante com quem ninguém se importa.
Não funciona.
Eu sou fã de cinema e posso admirar uma história totalmente inverossímil, mas quando um filme começa com os dois pés na realidade e de certo ponto em diante manda toda a coerência lá pra casa do Capita, fica difícil acompanhar sem uma ponta de desconfiança.
O segundo problema, e advirto aqui um spoiler dos bravos: O personagem de Foxx não morre.
Nada contra ele, acho um bom ator, gostei muito de Ray, mas é a segunda vez em que vejo um filme em que o personagem do Foxx deveria morrer e não morre (O outro é, olha o spoiller de novo, Colateral.).
Á despeito dessas falhas o filme é bacana e distrai, o novo fim do mundo de Roland Emmerich pode esperar mais um dia.

"Não é o que você sabe, mas o que pode provar no tribunal."

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Amor ao jogo.




Gersão era centroavante.
Mais que isso, Gersão era O Centroavante.
Assim mesmo, com artigo em maiúscula. Quando jogava, Gersão gelava os corações de zagueiros pelos campos de várzea de todo o Rio Grande do Sul em todos os certames de que participava, tamanha era sua naturalidade no ofício de fazer gols.
Alguns diriam que era pelo empenho. Gersão adorava jogar futebol desde a mais tenra infância, e aperfeiçoara-se na matéria ao longo de mais de vinte anos de prática. Outros diriam que era a genética.
Era grande e forte como um touro, o Gersão, rápido como um leopardo, habilidoso como... Bom, ele era habilidoso. Não que isso fizesse diferença, como todos os gaúchos sabem, centroavante não precisa ser habilidoso, se fosse habilidoso, melhor, mas habilidade era requisito de meia-armador e ponta-de-lança, posições em que homem que é homem não joga, já diria Luís Fernando Veríssimo.
Enfim, centroavante não precisa ser habilidoso, tem é que ser forte, e saber fazer gols, e, por Deus, Gersão era forte, e por Deus, ele fazia gols.
Mais que apenas isso, sabia como poucos fazer papel de pivô, e tinha uma malandragem toda particular para enfiar os cotovelos nas costelas dos zagueiros adversários que fossem incautos o suficiente para tentar emparelhar com Gersão em sua inexorável marcha em direção ao gol.
Gersão, com seu futebol cinematográfico e temperamento quente e explosivo, era a estrela do seu time, o Balaco de Vila Capim, que já erguera três campeonatos da várzea, sempre com ele como artilheiro e estrela da equipe, e agora já mirava um inédito tetra, e uma inédita quarta artilharia á despeito das promessas em contrário dos rancorosos adversários.
Gersão, como todo o jogador varzeano, tinha uma vida além das quatro linhas. Fora dos gramados trabalhava como eletricista, profissão no qual era competente, embora não tão competente quanto era em sua vida dentro dos gramados, com o número nove brilhando às costas, mas competente o bastante para realizar um trabalho de fundamento e viver honestamente sem passar necessidade.
Enfim, por ser grande, forte, centroavante estrela do seu time, e tivesse um emprego bastante decente e que lhe rendeu casa própria e um garboso Corcel II vermelho, ano 1978 do qual cuidava com amor paternal, Gersão fazia sucesso com as moças da vila.
Inclusive com Sheila, morena esplendorosa, dona de um rosto angelical preso por um pescoço perfumado e macio a um corpo de deusa da luxúria.
Sério. Deus da luxúria, mesmo.
Os seios de Sheila podiam fazer moribundos voltarem à idade de lactação, sua barriga torneada faria Kristen Bell andar de burca pelo resto da vida, seus quadris fariam xeques árabes empenharem seus palácios para ter mais camelos que oferecer em sua troca, e suas pernas podiam envolver um homem adulto e espremê-lo até que ele implorasse por piedade (embora, mesmo assim, um homem adulto em sã consciência iria preferir continuar sob o jugo de suas coxas suaves)...
É, Sheila era tudo isso. E, por incrível que possa parecer, era uma moça direita, conforme descobriu a duras penas Gersão, que só recebeu acesso ás curvas deliciosas de Sheila após presenteá-la com aliança de compromisso, conhecer os pais da jovem, e pedir-lhe a mão em matrimônio.
Parecia um sacrifício. Sacrifício que, confirmaria Gersão mais tarde, valera a pena. Valera tanto que Gersão deixara de lado a vida de prazeres mundanos provenientes de sua notoriedade de centroavante matador.
Gersão abandonara as noitadas e tornara-se homem de uma mulher só, e, para azar dos zagueiros dos times adversários, não dividia mais a sua energia entre várias mulheres e o futebol. Encontrara sua alma gêmea em Sheila, que era dedicada, prendada e amorosa, e merecia que ele se dedicasse a ela na mesma medida, o que ele fazia com todas as suas energias.
Ou assim ele supunha.
Aconteceu que mesmo que fosse Sheila uma mulher jovem, bela e fogosa, Gersão, estando casado, se acomodou com relação aos prazeres da carne, e passou a depositar mais e mais de sua energia no futebol, esporte que tanto amava.
Os zagueiros estavam todos com sede de Gersão, pareciam ter feito um pacto de impedi-lo ou de ser artilheiro do campeonato, ou campeão, e chegavam em todas as divididas com ele como se o mundo fosse acabar no próximo lance, e Gersão, tanto por vontade de ser campeão com seus companheiros quanto por orgulho, treinava com afinco e dedicação absolutos para estar mais forte, mais rápido e mais preparado no gramado a cada final de semana.
E funcionava. Os zagueiros batiam em Gersão como moscas no pára-brisa de uma Hummer, Gersão estava conseguindo se manter na artilharia do campeonato novamente, entretanto sua equipe não ia bem, era terceira colocada no torneio, pois, embora bem servida na frente, carecia de qualidade atrás. Os zagueiros do Balaco eram esforçados, OK, mas isso não bastava.
Eles careciam da força, do vigor, do empenho que Gersão esbanjava. Esbanjava e cobrava de seus companheiros e do técnico e dono do time, Castrinho, que piava fino com Gersão, menos por medo de uma eventual altercação com seu jogador, e mais por temor de perder o futebol esplendoroso de seu Centroavante.
Castrinho prometeu uma solução imediata para os problemas defensivos do Balaco, e ela surgiu na forma de Romero Torres.
Romero, recém chegado á Vila Capim fora descoberto em uma pelada de parque por Castrinho. Era pouco mais baixo que Gersão, mas tinha físico de frigidaire.
Era sólido, parecia maciço, formava um objeto inamovível quando protegia uma bola. Não tinha apenas o físico de frigidaire, era intelectualmente frio como devem ser os defensores, saltava alto, sabia sair jogando, aparecia perigosamente nos escanteios cedidos pelo adversário e batia faltas como um cavalo.
Como os grandes zagueiros latino-americanos do passado, tinha dois nomes, e exigia ser chamado por ambos. Após um único treino em que demonstrou competência marcando ao próprio Gersão, foi aprovado por Castrinho e pelo craque, e ganhou a flamante camisa três do Balaco, tornando-se o pesadelo dos atacantes dos times adversários, que agora, além de temerem os gols de Gersão no ataque, precisavam orar contra a frieza e força de Romero Torres na defesa.
Por ser um tremendo zagueiro, passou a ser admirado pelos torcedores do Balaco, em especial pelas mulheres, que logo descobriram que era solteiro, além de todos os outros detalhes da vida do novato.
Fora dos campos era, pasmem, professor, ofício no qual era ainda mais competente do que no campo, levava uma vida de monge, para tristeza das mulheres da redondeza, que vendo seu físico sólido dentro do fardamento do Balaco e ouvindo-o declamar Neruda de memória tal e qual Figueroa, o cobiçavam com olhos gulosos pelas ruas da vila, mas ele parecia alheio a tudo enquanto estudava de forma contrita em busca de qualificação.
Dentro das quatro linhas, o Balaco, agora bem guarnecido na zaga e ainda empurrado pelos gols de Gersão, se classificara para as semi-finais do varzeano contra o Tinguará com pinta de favorito.
Após a vitória na partida, um chocolate de 6 x 0 com quatro gols de Gersão e um de Romero Torres, de falta, a final se aproximava e todos apostavam no Balaco.
Até que, durante um dos churrascos de confraternização da equipe que Castrinho organizava após belas vitórias, surgiu a conversa.
Alcoviteiros de plantão diziam à boca pequena que Sheila, a esposa de Gersão, conhecera Romero Torres.
Conhecera no sentido bíblico.
A notícia não tardou a chegar aos ouvidos de Castrinho, que apavorado, confrontou Romero, mas o zagueiro nada disse, deixando o técnico do Balaco ainda mais nervoso.
Se de fato Romero Torres estivesse mantendo um affair secreto com Sheila, e Gersão soubesse, Castrinho ficaria, na melhor das hipóteses, sem um dos pilares de seu time, na pior, sem ambos.
Porém, nada podia fazer, exceto rezar para a máxima de o corno ser o último á saber estar certa e que Gersão descobrisse suas recém ganhas galhadas apenas após a partida final. Porém as preces de Castrinho não foram ouvidas. Fosse por ele ser um mau cristão, fosse por não existir nada além do mundo, os rumores encontraram os ouvidos de Gersão, e, com o rosto deformado de raiva e desapontamento, o avante buscou o conselho de Castrinho.
Perguntou-lhe se ele sabia dos boatos, e após ouvir a tímida confirmação, perguntou o que Castrinho faria em seu lugar.
O técnico respondeu com uma súplica:
Que Gersão não fizesse nenhuma loucura, que era jovem, alto, forte e artilheiro, que pensasse no futuro, e mais um rosário de pedidos que encontraram os ouvidos moucos de um Gersão monocórdico que saiu sem dizer palavra.
Ao chegar em casa, ele exigiu a confirmação de Sheila, que em princípio negou toda a história, mas após ofensiva insistência de Gersão, confirmou a traição.
Mais que isso, deu detalhes dos tórridos encontros com Romero Torres, e da performance do zagueiro entre quatro paredes. Disse que Gersão trouxera aquilo para si, que a negligenciara e voltara todas as suas energias para o futebol.
"O esporte é que é a tua verdadeira paixão. Eu fico em segundo plano", disse ela.
Gersão, com uma expressão fria saiu de casa, passou pelo seu Corcel, apanhou um embrulho, e sob os olhares tensos de todos os fofoqueiros da vila, encaminhou-se caminhando devagar mas decidido à casa de Romero Torres.
Todos esperaram pelo pior. "Gersão apanhou um revólver e vai balear o zagueiro", imaginaram. Muitos aguçaram os ouvidos aguardando o estampido de um tiro. Mas nada ocorreu, exceto silêncio. Quando Castrinho, sabendo do ocorrido, foi até a casa de Romero Torres para descobrir o que ocorria, foi atendido pelo zagueiro, que lhe agradeceu pela preocupação, pediu licença e voltou para dentro.
Durante dois dias ninguém viu ou sequer ouviu palavra de Gersão ou de Romero Torres.
No sábado, dia da final, o Corcel vermelho parou diante do campinho, e Gersão saiu com seu material de jogo pela porta. Ninguém disse nenhuma palavra ou fez nenhuma pergunta enquanto ele se fardava. Pouco depois, Romero Torres chegou de táxi, já fardado. Cumprimentou a todos e ouviu a tensa preleção de Castrinho.
Ao final do jogo, uma vitória de 3 x 0 do Balaco, com dois gols de Gersão e atuação esplêndida de Romero Torres, ambos se cumprimentaram de forma seca, porém cordial, e dali em diante, ninguém voltou a ver nem Romero Torres e nem Sheila.
Gersão seguiu sua vida, voltaria a ser artilheiro do varzeano, mas não ergueria mais o troféu de campeão. Ninguém lhe perguntou o que ocorrera na noite em que ele e Romero Torres conversaram até o nascer do sol, mas há que diga que Gersão sabia que não ergueria outra taça sem Romero Torres na defesa, e que Sheila tinha razão.
O esporte era, de fato, a maior paixão na vida do centroavante.

sábado, 14 de novembro de 2009

Eu e os gibis


É uma relação antiga, essa. Eu leio gibis desde antes de saber ler. Lembro de ter gibis do Superman nas mãos e de me meravilhar com os desenhos enquanto podia apenas imaginar o que diziam os balões e os recordatórios nas páginas repletas de figuras ágeis e coloridas.
Foi só depois das séries iniciais que eu pude, enfim, descobrir o prazer de ler uma história. Aos nove anos de idade eu lia vorazmente os gibis do Conan que meu pai comprava. Estavam longe de ser a leitura ideal pra fedelhos de terceira série, mas eu adorava o bárbaro cimério em histórias escritas por Roy Thomas e desenhadas por John Buscema, vibrava quando ele decapitava inimigos usando sua espada de aço hirkaniano, quando bradava por seu deus, Crom, ou quando arrastava uma mulher relutante para seu leito.
Lia Batman, Superman, Hulk, Demolidor... Flertei com a DC do Superman, do Flash, do Batman e do Lanterna-Verde, entretanto fui fisgado pela Marvel de X-Men, Quarteto Fantástico, Motoqueiro-Fantasma, onde mesmo os personagens mais estranhos tinham, em sua essência, problemas normais, de pessoas normais.
E o personagem de gibis que viria a me converter no apaixonado por quadrinhos que sou hoje era um jovem nerd, não muito diferente de mim á época.
Ele não tinha sorte com as gurias, não tinha muito dinheiro, não era o sujeito mais bonito da sua turma, nem o mais descolado, embora fosse o mais inteligente. Ele tinha uma tia idosa que mandava ele vestir uma blusa, ou pegar um guarda-chuva, ele tinha, por ter sido arrogante, perdido um tio que lhe era muito caro, e aprendeu á duras penas que grandes poderes conferiam grandes responsabilidades.
Foi lendo o Homem-Aranha que eu aprendi muitas coisas que, ainda hoje, adulto, descrente e muito chato, emprego na minha vida.
Não digo com isso que eu seja um super-herói, nem em poderes e muito menos em conduta, sou repleto de falhas assim como a maioria, talvez até mais. Mas ás vezes, quando me dou a oportunidade de pensar antes de mandar tudo lá pra casa do Capita e fazer uma bobagem, penso nas minhas responsabilidades.
Ás vezes é o suficiente pra me livrar de olhar pra trás envergonhado com alguma atitude mal pensada. Ás vezes.
Seria bom se nós (E quando digo nós me refiro á todos, não apenas ao leitor e á mim.) fôssemos capazes de extrair alguma sabedoria de toda a parte. Eu tento fazer isso. Há quem leve a vida de acordo com um livro (A Bíblia, o Corão, o Talmud.), eu tento levar de acordo com vários, livros, gibis, filmes... Se não sou perfeito, e nem nutriria tais pretensões, ao menos tenho noção de o quanto sou imperfeito. É uma perspectiva bem interessante.

"-Com grandes poderes vem grandes responsabilidades.
-E...?
-E o quê?
-E? Falta uma parte da sentença. Está incompleta. O que vem com as grandes responsabilidades?
-Todo o resto."

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Pobre Gomide


E lá estava Gomide, o bom e velho Gomide. Ele já estava naquela fase da vida em que os pequenos prazeres eram os único que ainda restavam. Vivera mal, fizera escolhas erradas, não era particularmente mau, nunca fora um crápula completo, estava naquela média aceitável de falta de caráter que perfaz todos os seres humanos. Gomide era um filho de seu tempo, esse tempo desastroso em que todos e cada um dos políticos é tão sujo quanto o proverbial pau do galinheiro, em que pseudo-celebridades surgem de cada bobagem, sejam reality-shows, gestações indesejáveis ou escândalos envolvendo vestidos mínimos. Gomide era uma cria desse tipo de ambiente, e sua estreita visão de mundo era sugerida por novelas, propagandas, noticiários sensacionalistas (desses em que jornalistas show-man berram impropérios na cara do espectador) e tele-evangelistas de fala mansa que arrebanham incautos enquanto enchem os bolsos com somas tão vultuosas que nem é bom pensar.
Gomide tinha qualidades, claro, ninguém é totalmente desprovido delas, e Gomide não era exceção. Ele não negava convite de seus amigos, estava sempre disponível pra eles fosse qual fosse o programa, isso o tornava muito bem quisto por seus camaradas.
Gomide tinha uma lábia que muitos consideravam irresistível, nos bailes frequentados por Gomide, não havia moçoila capaz de resistir á seus encantos, diziam seus conhecidos. Exagero, claro. Gomide era bom de papo, mas muito de seu sucesso estava no radar bem ajustado de Gomide, que jamais desperdiçava saliva com mulheres que estivessem além de sua categoria. Á essas, quando desafiado por seus colegas de botequim, desdenhava. Dizia que eram frias, que não sabiam viver, que eram artificiais. Despeito, claro. Mas estratégicamente posicionado.
Gomide não era um vagabundo, trabalhava, havia passado por dezenas de empregos ao longo de seus quarenta e tantos anos. O problema de Gomide é que o compromisso que tinha para com a diversão e o lazer jamais se repetia, mesmo em grau reduzido, em sua vida profissional. Gomide media seu empenho pelo dos outros, jamais trabalhando mais ou menos do que seus colegas, de modo que vivia estagnado, mas confortável o suficiente para seus próprios parâmetros, nada elevados, que consistiam em pagar suas contas de luz e água, cervejinha, cigarros, três refeições por dia, e roupas decentes além de um ou outro mimo presenteado á si mesmo.
Um dos luxos aos quais Gomide não se furtava eram os jogos em casa do seu time do coração. Gomide adorava futebol, se envolvia em discussões apaixonadas com outros desocupados á ponto de berrar, ficar vermelho e cheio de veias saltadas pela testa e pescoço enquanto cuspia e resfolegava entre um impropério e outro, era, de fato, um apaixonado.
Nas quartas-feiras á noite Gomide estava invariavelmente ou em frente á TV do boteco ou no estádio. Aquela temporada, entretanto, não estava indo bem pra Gomide e seu time, que amargava (Ou amargavam, pois Gomide se referia á seu time como "nós", incluindo-se na agremiação.) uma tenebrosa lanterna e com a aproximação ininterrupta do final do certame a sombra ameaçadora de novo rebaixamento deitava-se sobre Gomide e seu time de forma quase inapelável. Seria necesário um milagre matemático para escapulir do descenço, mas Gomide cria que seria possível. Enfrentaria em seus domínios um time do nordeste, reconhecido pela torcida apaixonada e pelo futebol medíocre, e que tinha um histórico de derrotas memoráveis contra o "Glorioso", apelido carinhoso e nada modesto com o qual Gomide referia-se á seu clube do coração.
Munido de camiseta oficial e bandeira, Gomide foi ao estádio destilando confiança, era o momento da reação.
Infelizmente o futebol do time de Gomide permanecia tão melancólico quanto fora durante todo o torneio. E Gomide, que já fumava demais, fumou em dobro, nervoso que estava diante do papel fisquento que fazia o "Glorioso" em seus domínios. O golpe de misericórdia veio aos 27 do segundo tempo, quando o time visitante, aproveitando-se de falha generalizada na defesa dos donos da casa, fez 0 x 1. Muitos saíram, Gomide os olharia com desaprovação e desdém se conseguisse desgrudar os olhos mesmerizados do gramado em sua torcida contrita.
Porém, nenhuma reação heróica ocorreu, e aquele foi o placar definitivo do match.
Ao final do jogo, cabisbaixo, Gomide saiu do estádio alheio aos protestos de torcedores que o cercavam. Levou a mão ao bolso procurando por seu maço de cigarros, estava vazio. Gomide amaldiçoou á si mesmo por ter jogado um pito quase inteiro fora em uma oportunidade desperdiçada por seu time durante o segundo tempo. Vasculhou outro bolso, encontrou o dinheiro, e resolveu dirigir-se á uma loja de conveniência para comprar mais cigarros, com toda a dor que sentira naquelas últimas duas horas não se privaria daquele raro prazer.
Entrou no estabelecimento, e dirigiu-se ao balconista apontando sua marca favorita, quando notou, atrás de si, o jovem de pouco mais de 15 anos que, empunhando um revólver 38 envelhecido, disse com voz esganiçada:
-Dá o dinheiro, véio. E a camisa! Ligeiro!
Era um abuso, Gomide fora um jovem parrudo e ágil que brigava com maestria, envelhecera na ilusão de ser mais homem que outrem, e não tolerava o que considerava como abusos, geralmente bastavam berros para mostrar o quanto era macho, mas se fossem necessários sopapos, Gomide os distribuiria com prazer, frustrado que estava.
Mandando a cautela lá pra casa do Capita olhou com fúria para o pretenso assaltante, e deu um passo em sua direção, ouviu o estouro seco da pólvora, sentiu frio, e desequilibrou-se. Caído, não pôde reagir enquanto o fedelho tirava a carteira de seus dedos moles, nem quando ele fugiu após disparar contra o balconista.
Enquanto sentia a vida se esvair de seu corpo junto com o sangue que se empoçava sob si, pensou:
-Bem que minha mãe me disse que o cigarro ia acabar me matando.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Resenha Cinema: Os Fantasmas de Scrooge


Ontem fiz minha segunda incursão ao mundo do cinema 3-D, depois do (Excelente, genial.) UP - Altas Aventuras decidi encarar o novo filme do diretor Robert Zemeckis e sua mania (Com a qual continuo não me sentindo á vontade.) de filmes rodados com captura de performance, aquele proceso meio vergonhoso em que os atores realizam as suas cenas em uma grande sala azul vestidos com macacões colantes cheios de bolinhas que servem de sensores e, posteriormente, camadas e mais camadas de pixels são colocadas em cima dessa atuação, criando a iluminação, os cenários as roupas e até a aparência dos personagens (O processo transformou, por exemplo, o rechonchudo Ray Winstone em um guerreiro nórdico de físico perfeito em A Lenda de Beowulf.).
Fui ver Os Fantasmas de Scrooge, última adaptação de Um Conto de Natal de Charles Dickens, do qual gosto bastante e já havia visto em tantas releituras (Como Os Fantasmas Contra-Atacam com Bill Murray, e Minhas Adoráveis Ex-Namoradas com Matthew McConaughey, com os Muppets, com Mickey Mouse...) que chegava á me sentir mal por Dickens, então, quando assisti um daqueles programinhas Hollywood One on One e vi as entrevistas de Zemeckis dizendo que queria que o filme fosse o mais fiel possível á obra original, resolvi assistir, também por que sou um fã confesso de Jim Carrey e Gary Oldman, que interpretam os personagens centrais do filme, respectivamente Ebenezer Scrooge (E os fantasmas do título) e Bob Cratchit ( seu filho, Tim, e o fantasma do sócio de Scrooge, Jacob Marley).
Chegando ao cinema, duas constatações.
Primeira: A tecnologia 3-D está atraindo mais e mais público ao cinema, a sala estava lotada.
Segunda: As pessoas desconhecem tanto a obra de Dickens quanto o processo de Captura de Performance de Zemeckis (Que não é exatamente animação.). A sala estava apinhada de crianças pequenininhas, de quatro, cinco anos de idade, longe de formarem o público ideal pra sombria fábula de Ebenezer e sua véspera de natal repleta de melancolia e até de terror, não foram poucos os choros infantis após a aparição do primeiro fantasma á visitar Scrooge, o espectro de seu falecido sócio, bastante gráfico, enfurecido e enrolado em correntes, nem os risos desconfortáveis dos pais, tentando tornar a experiência menos traumática para os pequerruchos.
Tirando esse pequeno contratempo (Quem gosta, afinal, de ver um filme com crianças choramingando ao fundo?), causado também pelos jornais, que categorizam o filme como "animação", e pelo fato de fitas em 3-D só chegarem dublados ao Brasil, consegui assistir com prazer ao filme, vamos á ele.
De fato, Os Fantasmas de Scrooge é a mais fiel adaptação da obra de Dickens, os elementos mais surreais do livro estão presentes no filme com fidelidade, aproveitando toda a tecnologia á disposição do cinema de hoje, mas mais importante do que isso é que ali está a essência de Ebenezer, um autêntico "self made man" que virou suas costas para todo o sentimentalismo em sua busca por prosperidade, satisfeito com sua mesquinharia e com sua vida solitária até ser confrontado, na véspera do natal, por sua própria consciência na forma dos espíritos dos natais passados, do natal presente e dos natais futuros, e levado em uma viagem onde vislumbra tudo aquilo que perdeu, o modo como todos o veem e como será seu fim se seguir na toada em que se encontra, traçando um paralelo com seu empregado, Robert Cratchit, pobre, mal pago, cheio de filhos, mas alegre, e terno. É uma história batida, mas, ei, é a história original, afinal de contas, ela se tornou batida por que todo mundo deu a "sua interpretação" dela, além disso é cheia de emoção, e, pros mais engajados, até crítica social.
Jim Carrey dá show no papel de Ebenezer em várias fases da vida e dos fantasmas que o assombram, a captura de performance melhorou com relação ao A Lenda de Beowulf, de modo que os atores digitalizados parecem mais críveis (Apesar das feições caricatas.) e menos com bonecos de cera, além disso, ver filmes em 3-D é sempre bacana, o ponto baixo é o fato do filme ser lançado por aqui em 3-D apenas com cópias dubladas, impossibilitando a audiência de acompanhar, em todos os detalhes, a interpretação dos atores em papéis múltiplos, embora a dublagem seja competente.
Enfim, apesar de a Disney (por aqui representada pela Buena Vista, eu acho.) ter mandado o timing lá pra casa do Capita lançando o filme mais de um mês antes do natal (Os shoppings mal começaram a colocar suas decorações natalinas!), Os Fantasmas de Scrooge agrada e agrada bastante, especialmente áqueles que, como eu, adoram o natal.

"Embuste."

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Tic-Tac (Não as balinhas.)


Olhando pra trás, pensando... Erros, acertos, um pouco de cada, tomara que tenham sido mais acertos, embora, no fundo ele saiba que os erros são tão mais significativos... Não por que pesem mais, nada disso, gostava de seus acertos e tinha convicção de que acertara mais do que errara, especialmente em coisas importantes, o problema é que os erros o deixavam com a alternativa do acerto. Aquele sentimento chato do "Se eu tivesse feito certo...", e o raio do relógio não volta com seu tic-tac inexorável rumo ao amanhã.
Aquele beijo, por exemplo. Foi um acerto. Nada tão bom é um erro, acredite-me, não se arrependia de nada do que fizera pra poder dar aquele beijo. O problema é que ele acarretou erros. De parte dele, essencialmente. Aliás, pensou ele: "essa é a área onde eu mais erro (Não beijos, a parte sentimental.). Eu devo ser algum tipo de retardado emocional.", triste mas verdadeiro.
Palavras mal escolhidas, ações mal pensadas, encontros, desencontros e dois anos depois lá estava ele, cumprimentando uma pessoa com cadeira cativa em suas afeições como se fosse uma conhecida no shopping e querendo, ainda que por breves instantes, morrer um pouco.
O tempo passa o tempo voa, e a poupança Bamerindus nem existe mais, se encontram de novo. Ela, linda como sempre, ele, uma bagunça ainda pior do que antes, doido pra mandar tudo lá pra casa do Capita e dizer as palavras mágicas. Mas não poderia. Tinha responsabilidades que, pelo menos por enquanto, ainda o prendiam á uma vida que não escolhera (E que fique claro, não são decorrentes de erros seus, mas de outrem.), e que não podia relegar á ninguém mais. Ela tem sua vida em outras paragens, está feliz com seu trabalho, seus gatos e suas coisas...
Ninguém disse que era fácil, certo?
Certo.
E o relógio segue, tic-tac, tic-tac, ele não é nenhum Capitão Gancho, o tic-tac não o apavora, ele nem gostaria de ter mais tempo, acha até que temos tempo demais. Só queria aproveitar melhor o seu, queria olhar pro amanhã sem jamais se sentir assombrado pelo ontem, até por que ontem, entre outras coisas ótimas, está aquele beijo, e tudo o que houve relacionado á ele. Longas conversas, toques rápidos, olhares cúmplices, momentos de vergonha ímpar (Quase sempre dele, claro.), e doçura idem. Não, o ontem não o assombra, tampouco o amanhã, o problema é o hoje, é o agora, enquanto cutuca o teclado com dedos de catar milho e pensa, e pensa e pensa. O ontem foi excelente, e o amanhã só pode melhorar.
Tic-tac, tic-tac... Seja feliz.

"Let me sing you a waltz..."

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Biblioteca Histórica Marvel Homem-Aranha Volume 3


Nesse final de semana, entre as minhas obrigações inalienáveis de trabalhador (É, trabalho sábado, sou um escravo, um lacaio.), mestre de jogos de RPG e jogador de FIFA 2010, dei sequência as minhas leituras. Entre elas o terceiro volume da série Biblioteca Histórica Marvel: Homem-Aranha, excelente série publicada pela Panini trazendo republicações de histórias do heroico cabeça-de-teia datadas dos anos sessenta (Neste volume 1965), e assinadas pela dupla Stan Lee e Steve Ditko, criadores do personagem.
Os gibis trazem os primórdios do super-herói mais conhecido da editora Marvel em histórias deliciosamente inocentes e aventurescas.
Aliás, o Homem-Aranha de Lee e Ditko é a quintessência de tudo o que fez do Homem-Aranha o sucesso que, mesmo nos dias de hoje, o combalido combatente do crime permanece sendo:
O personagem central é um adolescente sem grana, não é o sujeito mais popular do colégio Midtown (Embora estivesse atraindo as atenções de Liz Allen, a patricinha gata do colégio, e de Betty Brant, garota mais velha e assistente de Jonah Jameson, editor do Calrim Diário.), vítima dos Bullys liderados pelo atleta Flash Thompson, tem uma tia idosa e adoentada que se preocupa tanto com ele quanto ele com ela, precisa estudar pra tentar conseguir uma bolsa de estudos pra universidade e ainda todos os problemas inerentes a condição de super-herói mascarado.
A galeria de vilões do personagem, uma das melhores dos quadrinhos, segue em formação nesse volume, apresentando entre os nomes mais memoráveis e recorrentes O Escorpião, o Besouro (originalmente adversário do Tocha-Humana), o Magma, e Spencer Smythe e seu primeiro robô esmaga-aranha (Ao longo dos anos todos esses vilões voltariam a aparecer diversas vezes.), além do retorno do Duende-Verde, que iria crescer até mandar qualquer escrúpulo lá pra casa do Capita e se tornar o mortífero arqui-inimigo tanto do Homem-Aranha quanto de seu alter-ego Peter Parker.
Olhos muito críticos poderão dizer que essas histórias são tolas, demasiado leves, e ingênuas, quem disser isso não deixará de ter razão, quadrinhos são, provavelmente, a forma de arte que envelhece com mais dificuldade, até por serem mais precisamente direcionadas ao público infanto-juvenil (Nos anos sessenta não creio que houvesse um grande número de adultos lendo gibis.), que muda demais de comportamento á cada década, entretanto, os fãs do personagem, que quiserem ver de onde vieram todas as características que, mesmo após pactos demoníacos, clones e divórcios místicos, ainda são o diferencial do personagem devem, pelo menos, dar uma lida nessas histórias tão clássicas.
E que venha o volume 4.

"Com grandes poderes, vem grandes responsabilidades."

sábado, 7 de novembro de 2009

Resenha DVD: Transformers - A Vingança dos Fallen


No sábado chuvoso que atacou Porto Alegre como, parafraseando Luís Fernando Veríssimo: "As Hordas de Saladino á Jerusalém dos Cruzados" resolvi alugar um filme em DVD, afinal, com tanta chuva, depois de trabalhar e jogar RPG, sair de casa estava fora de cogitação, pizza e DVD eram as pedidas, passei na locadora, olhei, olhei, e acabei levando pra casa a sequência do sucesso de 2007 Transformers, Transformers - Revenge of the Fallen, batizado aqui, de forma meio porca como A Vingança dos Derrotados (Fallen significa "decaídos", mas também é o nome próprio de um personagem do filme, enfim, as traduções de títulos são sempre ruinzinhas .), já havia visto o filme no cinema, mas dificilmente vejo um filme apenas uma vez, e esse não seria exceção, até por que, nas últimas semanas, vendo listas de "piores filmes de 2009" vi os robôs gigantes da Hasbro presentes em inúmeras delas e, francamente, não me lembrava de ter achado o filme particularmente ruim, na verdade, eu o havia achado bastante divertido.
Eu, francamente, não sou nenhum expert em cinema, reconheço um filme com mais peso dramático, sou capaz de perceber a qualidade da parte técnica (Com a qual sou muito exigente.), e sou capaz de aproveitar uma montanha russa de divertimento descartável, categoria onde coloco, sem nenhum demérito, a série Transformers.
Quando você senta na poltrona do cinema pra assistir um filme baseado em um desenho animado e uma linha de brinquedos sobre robôs alienígenas gigantes que se transformam em carros e que vivem em um mundo onde Megan Fox se apaixona por Shia LaBeuff, você não deve estar esperando mais do que ação (Optimus Prime mandando tudo lá pra casa do Capita e enfrentando sozinho três decepticons ao mesmo tempo já valeria o ingresso nesse quesito.), efeitos especiais de ponta (Nem precisa falar. São, no mínimo, tão bons quanto os do incensado primeiro longa.), uma trama vagamente plausível (Plausível pra um filme de "robôs alienígenas gigantes que se transformam em carros e que vivem em um mundo onde Megan Fox se apaixona por Shia LaBeuff".) e que um longa com esse mote não seja louco de se levar demasiado á sério (Os pais de Sam Witwicky, Leo, seu colega de quarto da faculdade, e o ex-agente Simmons são de rachar o bico.), todas características que Transformers - A Vingança dos Fallen, traz consigo em doses generosas.
É um filme memorável? Não, uma hora depois já esquecemos dele, mas o pior de 2009? Longe disso. É diversão descompromissada, exatamente o que deve ser um filme desse tipo, leva multidões ao cinema, fatura centenas de milhões de dólares, e prepara uma sequência. Aliás, por mim, poderia ter um Transformers por ano, Megan Fox correndo em câmera lenta e lutas de robôs gigantes são coisas que nunca me cansam.

"Autobots: let's Roll!"

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Calvin & Haroldo



Ontem terminei de ler Calvin e Haroldo, A Hora da Vingança, mais recente volume das compilações das tiras em quadrinhos de Bill Waterson que a Conrad vem publicando no Brasil.
É incrível como a cada volume que leio tenho mais forte a certeza de que, se alguém criou algum quadrinho melhor do que Calvin e Haroldo, o manteve em segredo.
Nas tiras de Waterson, o moleque hiperativo e seu fiel e mordaz tigre de pelúcia destilam um humor em certos momentos ácido como soda cáustica, e em outros tão doce que parece que o leitor tem novamente seis anos e ganhou uma barra de chocolate.
O guri de cabelo arrepiado repleto de opiniões definitivas á respeito de tudo tem em si um pouco de cada um de nós, e talvez aí, nessa inevitável identificação, repouse parte do encanto das tiras.
Quem jamais se sentiu uma vítima por ter de levantar cedo e ir pra aula? Quem jamais se viu desanimado no final da tarde de domingo, incapaz de aproveitar as horas finais do dia porque o final de semana estava acabando, ou foi pego de surpresa por um grito da professora enquanto viajava por galáxias muito distantes dentro de seu próprio caça estelar? Qual de nós já não enxotou uma garota de seu "clube exclusivo", ou mandou tudo lá pra casa do Capita e fugiu de casa após uma travessura apenas para ser encontrado alguns metros mais adiante?
Calvin faz tudo isso. Claro, de nada adiantaria o quadrinho ser repleto de situações familiares se não fosse bem escrito, e Waterson é um poeta (Ás vezes literalmente, como em lindas tiras aquareladas onde os recordatórios trazem poemas maneiraços.) adicionando uma pitada de sarcasmo às aflições infantis de Calvin, tornando-as muito parecidas com as nossas próprias (O desapontamento de Calvin com relação á humanidade ás vezes reflete bem demais as minhas opiniões).
Além disso, há a mãe e o pai de Calvin (Engraçado que hoje em dia, eu acho eles tão excelentes quanto o personagem principal, coisa que não acontecia nos meus tenros anos de infância.), Susie Derkins, a aplicada vizinha e colega de escola de personagem central, e provavelmente a melhor personagem feminina dos gibis ao lado da Morte de Neil Gaiman, e, claro, Haroldo (Hobbes no original), o inseparável tigre de pelúcia de Calvin, que alterna suas participações entre ser a voz da razão do moleque, um competidor feroz, ou simplesmente o melhor amigo do guri, o acolhendo quando o resto do mundo todo parece injusto, e é nessas ocasiões em que Waterson nos mostra que a felicidade, não importa se temos seis ou sessenta anos, está nas coisas mais simples.

"História é a ficção que inventamos para persuadir a nós mesmos de que eventos são reconhecíveis e a vida tem ordem e direção"

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Resenha DVD: 007 - Quantum Of Solace


Pois é, foi no feriadão, sem muito mais o que fazer que eu revi 007 - Quantum Of Solace, continuação de 007 - Cassino Royale, filme que reinventou a franquia do agente menos secreto á serviço de sua Majestade e que eu, paticularmente, achei muito bom.
Havia assistido o Quantum Of Solace (Título intraduzível) no cinema, mas uma das minhas (Muitas) manias é rever filmes de que gosto em casa, com mais calma.
E a segunda aventura do Bond Daniel Craig não compromete em home video, é uma seqüência fantástica de perseguições, lutas e tiroteios embasados por uma trama sólida (Para o Padrão Bond de Tramas.) e que prende a atenção.
O vilão vivido pelo ótimo Mathieu Almaric (Dos excelentes Munique e O Escafandro e a Borboleta) é muito bacana, especialmente por não ter nenhuma peculiaridade esquisita, como dentes de aço, um terceiro mamilo, ou chorar sangue, é apenas um empresário inescrupuloso e podre de rico.
A Bond Girl vivida pela estonteante Olga Kurylenko (Dos péssimos Hitman e Max Payne.) tem um background decente e é uma substituta interessante á Vesper Lynd de Eva (Oh, mon Dieu.) Green
A M de Judy Dench segue ótima, controladora, desconfiada, mantendo, de um modo ou de outro, Bond sob controle, além disso há também os retornos de Giancarlo Giannini, voltando ao papel de René Mathis, Jeffrey Wright, outra vez como Felix Leiter e Jesper Christensen novamente como Mr. White, e a breve aparição de Gemma Arterton como a agente Fields, Strawberry Fields (Mas ah, os nomes das bond girls...).
Mas, ei, vamos falar do sujeito que tem o nome acima do título.
Daniel Craig é, provavelmente, o melhor ator á interpretar James Bond (Connery é gênio, certo, mas não era na época do smoking e da pistola PP-7), ele enche o espião de nuances, consegue saltar da crueldade fria de um camarada que manda a sutileza lá pra casa do Capita e mata com pistolas, facas, ou com o que estiver mais á mão, para a fragilidade de um homem feito que tenta negar que amava a mulher morta como traidora. É sempre um ator crível, mesmo quando faz uma frase de efeito, mesmo quando se levanta e sai andando depois de um acidente de avião de onde ninguém sairia nem se arrastando. Mas (e esse é um "mas" importante), ele não é James Bond.
James Bond não é atlético, James Bond não se envolve em perseguições á pé pelos telhados de Siena, na Itália, James Bond sabe perfeitamente o drinque que está bebendo, James Bond jamais deixa de traçar a Bond girl.
Daniel Craig é um ótimo intérprete em um filme de ação excelente, mas parece que interpreta o JB errado, o que vemos na tela se aproxima muito mais de Jason Bourne. Não que isso seja ruim, mas vai levar um tempo pra eu me habituar á esse novo 007.

"-Você não era loira quando entrou lá?
-Não gosta de ruivas, senhor bond?
-Contanto que o punho combine com o colarinho..."

Quero meu pavor de volta.


E eis que houve um tempo em que eu ligava. Eu me importava, eu ficava chocado, e sentia medo.
Houve um tempo em que antes de dormir eu juntava as mãos e rezava fervorosamente pedindo á Deus, não por mim, mas por outras pessoas. Rezava sentindo meu coração encolhido de angústia, tristeza e dó pelas situações ás quais muitas pessoas estavam sujeitas.
Era um tempo em que eu ficava pasmo ao ler jornais e assistir noticiários, em que o sensacionalismo me fazia esbugalhar os olhos e a incredulidade me açoitava como um chicote de fatos apavorantes nos quais eu não podia nem queria acreditar.
Foi-se esse tempo. A humanidade (enquanto instituição.) me roubou o dom do choque. As pessoas (generalizando, mesmo.) conseguiram tirar de mim o assombro, nada mais me surpreende. Não importa quão torpe seja a ação, quão desprezível, quão lastimável, eu não me surpreendo, eu não fico chocado.
O dom da raça humana de mandar toda a moral e decência lá pra casa do Capita, essa tendência quase patológica de sempre se superar no tocante a ações tenebrosas e ímpias acabou com a minha capacidade de sentir ojeriza ou pavor.
Houve um tempo em que eu sentia medo de muita coisa, hoje, não mais. Hoje eu não tenho mais medo de nada, quando eu saio ás ruas eu estou sempre, sempre preparado para sofrer alguma espécie de violência. Espero por um assalto, por um atropelamento, por, pelo menos, um xingamento de um pseudo-torcedor do time rival, se não acontecer nada disso, ótimo, se acontecer, não será surpresa.
Eu odeio as pessoas. Ninguém em especial, não se ofenda, quando digo "as pessoas" estou, novamente, generalizando, mesmo. E, como não sou hipócrita (A maior parte do tempo.), incluo-me.
Eu odeio as pessoas por terem tirado de mim o medo, por terem me roubado o choque. Eu as detesto por terem tirado de mim a capacidade de ficar horrorizado, por roubarem a minha expectativa de um Deus que fiscaliza e intervém, e me deixado com nada senão a certeza de que nós, cada um de nós, quando tiver a oportunidade, fará o seu pior.
Hoje eu não tenho mais pavor, eu não ficarei chocado mesmo no dia em que nós matarmos uns aos outros até a última criança.
Foi-se o tempo. Queria o meu pavor de volta...

"Havia um tempo, em que eu vivia, um sentimento quase infantil..."