Bem vindos a casa do Capita. O pequeno lar virtual de um nerd à moda antiga onde se fala de cinema, de quadrinhos, literatura, videogames, RPG (E não me refiro a reeducação postural geral.) e até de coisas que não importam nem um pouco. Aproveite o passeio.
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sábado, 21 de novembro de 2009
Herói Secreto.
Enquanto andava pelas ruas noturnas chutando latas vazias de refrigerante e fazendo grande alarido, Gervásio, jornal embaixo do braço, pés cansados, olhava pra trás e pensava nos problemas que tinha o esperando em casa.
Gervásio não era bonito, nem inteligente, tampouco era rico, Gervásio era um exemplar assustadoramente representativo do Homem-Comum. Essa estranha raça de hominídeos que povoa a terra nos dias de hoje, descendente direta do Homo-Sapiens-Sapiens, que sabia que sabia, e talvez aí repousasse seu maior erro. De qualquer forma, o Homem-Comum não sabe que sabe, ele acha que sabe, e, talvez aí repouse o seu maior erro.
Gervásio levava uma existência particularmente enfadonha, trabalhava de nove ás seis num emprego que detestava e no qual não era particularmente competente, estudara até a conclusão do Ensino-Médio (Á época Segundo-Grau.), e sua educação era exatamente isso, média, no início da vida adulta tentara abrir um negócio próprio mas não aguentou a pesada taxa de encargos federais, estaduais e municipais somada as mazelas de sustentar os prejuízos dos primeiros anos de um empreendimento particular, de modo que abandonara o empreendedorismo. Encontrou um emprego modesto em uma loja de sapatos, era pra ser temporário enquanto se recuperava do baque financeiro da falência de sua primeira incursão ao mundo dos microempresários, mas aquele "temporário" foi se esticando, esticando, esticando... E virou permanente. Gervásio era o funcionário mais velho da loja, e hoje era gerente. Nada pra se orgulhar, com o treinamento adequado um chimpanzé com acefalia poderia realizar as suas funções, além disso, a gerência era o ápice do crescimento profissional com o qual Gervásio poderia sonhar naquele emprego, acima dele unicamente o proprietário da loja, e isso Gervásio jamais seria. E nem queria ser. Na verdade o que Gervásio queria mesmo era mandar aquele emprego medíocre lá pra casa do Capita e tentar outra coisa, nem que fosse fugir com o circo e passar o resto da vida lavando elefantes com um escovão. Mas Gervásio não podia. Gervásio constituira família no tempo em que trabalhava na loja de sapatos. Jamais sonhara com a chefia de família, entretanto, á época, pareceu a coisa certa á fazer. Morava com Natália pois era conveniente para ambos, e, quando ela disse que estava grávida, pareceu conveniente sorrir e abraçá-la, mesmo que não se sentisse particularmente entusiasmado com a paternidade.
Deivid era um nome imbecil, mas Natália adorava desde que assistia A Gata e o Rato, sentindo paixão por Bruce Willis e seu personagem, o detetive David, de modo que Gervásio escondeu seu desapontamento com o nome e registrou o menino sob tal graça, embora tenha lutado por breves instantes contra os ímpetos de nomeá-lo Alaor, para que tivesse um másculo nome de peão.
Claro, Gervásio amava seu filho, fosse pela onda de calor que percorreu seu corpo quando o bebê agarrou seu dedo com a mãozinha minúscula, fosse pelo instinto primevo de proteger sua cria e, por consequência, a continuidade de sua descendência, seguiu amando-o quando os médicos disseram que o menino sofria de paralisia cerebral e, embora, no futuro tivesse possibilidades de levar uma vida normal, iria requerer alguns cuidados especiais nos primeiros anos de desenvolvimento.
Gervásio trabalhava por Deivid e Natália, para garantir que eles tivessem o necessário para levar a vida. Era difícil. O emprego de Gervásio não rendia uma grande soma, a família morava em um apartamento cujo aluguel consumia metade dos rendimentos de Gervásio, e com Deivid precisando de cuidados, Natália não podia trabalhar fora.
A vida de Gervásio estava difícil, ele sabia, em algumas ocasiões, na cama antes de dormir se revoltava internamente, e bradava pensamentos acusadores ao Criador que poderia, ou não, o estar observando de cima, em outras, se sentia afortunado ao comparar a sua situação com a de outrem, como a família rica que sofria com o sequestro do único filho á mais de duas semanas e sobre a qual lia no jornal enquanto esperava pelo trem.
Ao ver a composição se aproximar da estação, dobrou o jornal, reposicionando-o sob o braço, e se colocou onde imaginava que a porta do vagão abriria, muitas pessoas faziam isso na estação, de modo que Gervásio se sentiu como se tivesse vencido várias delas quando a porta dupla separou-se bem á frente de seu nariz. A sensação fugaz de triunfo desapareceu quando Gervásio sentou-se e notou a bolsa de viagem da nike sob o banco em frente ao seu. Olhou em volta, não haviam tantas pessoas no vagão, ninguém sentando próximo á bolsa. Agachou-se e a apanhou. Entregaria para alguém quando chegasse á sua parada. Pegou o jornal, olhou o caderno de esportes, seu time estava em situação decente no torneio nacional, talvez classificada ao torneio do continente, por que não? Gervásio gostaria de levar Deivid á um jogo do torneio continental, o moleque vibrava com futebol, Gervásio não era um fã muito apaixonado, mas o entusiasmo do guri o levava a acompanhar o esporte com mais atenção. Gervásio lia sem absorver as letras. Parou, olhou pra bolsa. O que haveria nela, ele imaginava. Não custava dar uma olhada. A colocou no colo, agarrou os dois cursores do zíper, e os separou com delicadeza. Maços gordos de notas de cem iluminaram sua face. Era dinheiro demais para Gervásio estimar um quantia, centenas de milhares de reais, talvez um milhão. Poderia ser dinheiro falso, imaginou de imediato. Gervásio repetiu o gesto das atendentes de casas lotéricas e arranhou as riscas horizontais próximas á efigie de uma das notas, constatou o relevo entre o alívio e o pavor, o dinheiro era verdadeiro. Gervásio fechou a bolsa sobressaltado e olhando para os lados quando o trem parou.
Algumas pessoas entraram no vagão, e sentaram perto de onde estava Gervásio. Ele abraçou-se a bolsa. Se pôs á divagar, imaginando o que faria. Poderia separar uma parte do dinheiro, então iria trocando as notas grandes aos poucos, em vários estabelecimentos comerciais, de modo á impossibilitar o rastreio do dinheiro. Depois que trocasse uma boa parte, compraria passagens de avião para a Argentina. Sua esposa sempre falava com ternura da viagem que fizera a Mendoza antes de conhecê-lo, ela adorava o frio, embora ele preferisse o calor, mesmo que suasse em bicas até em temperaturas amenas, mas rico, poderia habituar-se ao frio. Poderia levar Deivid á jogos pelo continente todo, e, mais importante, garantir-lhe o melhor tratamento que fosse possível, garantindo que seu rebento se desenvolvesse ao máximo. Sim, pensou Gervásio, abandonaria o emprego na sapataria no dia seguinte, talvez esmurrasse seu chefe. Não, o seu Rodolfo sempre fora gentil com ele, odiava o emprego, não ao patrão. Apenas abandonaria o emprego, de forma amigável e seguiria seu caminho. Não contaria a Natália, a origem do dinheiro, depois que tivesse resolvido o problema das notas grandes, diria que ganhou na loteria, ou que herdou de um parente distante e obscuro. A mente de Gervásio viajou por tanto tempo que ele mal percebeu o tempo da viagem, quando sua parada se aproximava, na penúltima estação, só sobrara ele e um outro sujeito no vagão. Encaminhou-se entusiasmado para a porta, remexendo as pernas querendo que o trem parasse logo, quando ouviu o homem gritar do fundo do vagão. Seria com ele? Pensou se deveria olhar, e, ao dar-se conta que só ele estava no vagão, virou-se. O sujeito apontou-lhe seu jornal, esquecido no banco.
Gervásio não podia ligar menos para o jornal, mas não queria levantar suspeitas, deu um sorriso amarelo, acenou em agradecimento e apanhou o jornal. Colado á porta do vagão, deu uma espiadela nas notícias da capa, mais para disfarçar. Foi quando deu-se conta da manchete. O sequestro.
Não havia nenhum detalhe sobre pagamento de resgate, mas mesmo não sendo particularmente brilhante, talvez pela adrenalina da situação alimentando seu cérebro ocioso, Gervásio somou dois mais dois. Por que outra razão alguém esqueceria uma bolsa repleta de dinheiro sob o banco de um trem? Aquele dinheiro provavelmente representava a vida de alguém. Gervásio tentou racionalizar, a família era rica, podia pagar outro resgate, isso se aquilo fosse, de fato, o resgate de um sequestro. Por que Gervásio deveria se importar? Achado não é roubado, certo?... Não. Gervásio não podia. Não era certo. Além disso, o sujeito no vagão poderia ser um bandido. Vira gervásio, podia segui-lo e ameaçar sua família.
Aqueles segundos se arrastaram com passos de velha enquanto o Gervásio travava um duelo com sua própria consciência. Gervásio estava tomando uma decisão, e não sabia se era por temer pela segurança de sua família e de outra pessoa ou por um medo incnsciente de mudar de vida.
Deixou o jornal cair de próposito, e, ao abaixar-se para apanhá-lo, posicionou a bolsa sob o banco do trem.
Assim que as portas se abriram, Gervásio saiu andando rápido, e só respirou quando a composição gritou deixando a estação. Foi nesse momento que o coração de Gervásio se apertou no peito, se encolhendo até quase sumir. Os pés judiados de Gervásio o conduziram como se fosse um zumbi até sua casa. Tomou banho, fingiu assistir o noticiário, a novela e o jogo de futebol ao lado da esposa e do filho, e depois deitou-se na cama imaginando o que havia acontecido, e, durante a madrugada, quando Natália teve que se levantar para atender Deivid, ele se perguntou se a alternativa não teria sido melhor.
Na manhã seguinte, acordou, aprontou-se para o trabalho e apanhou o jornal sob a porta, a manchete, em bom tamanho, mostrava a notícia de que, após o pagamento do resgate, menino vítima de sequestro fora libertado naquela madrugada.
Com os olhos marejados, Gervásio foi ao quarto de Deivid, e beijou o filho, mesmo em segredo, havia dado ao filho motivo para orgulhar-se dele. Era um herói. Secreto. Mas herói.
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