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segunda-feira, 4 de julho de 2011

Olhar.


A Loraine sentou em frente ao Rubens na sala de aula como fazia todas as manhãs desde que eles haviam começado o ano letivo no distante e quente final de fevereiro. A Loraine sempre sentava mais na frente pois, apesar de ter um pequeno problema de visão que a obrigava a usar óculos com lentes prescritas, Loraine fazia tudo ao seu alcance pra evitar o aparato, inclusive "pagar de CDF", como diziam suas amigas, sentando-se bem na frente na classe.
Loraine, como se pode ver por esse breve relato, era bastante vaidosa. Não era nenhum escândalo a vaidade dela, não, existia a vaidade, mas era controlada, uma vaidade até saudável em uma menina nos seus quinze, dezesseis anos.
O Rubens sentava bem na frente pois o pessoal do fundão não se dava bem com ele. Rubens não chegava a ser um nerd na assepção da palavra. Não era particularmente estudiodo, nem inteligente, mas gostava, e como gostava, de ficção científica. O Rubens, por conta de sua preferência por atividades intelectuais, como devorar uma coleção de livros do Julio Verne no verão, não era lá um esportista dos mais bem dotados, então, não se enturmou com a galera do futebol, que dominava o fundo da sala. Não era um ermitão, o Rubens, não. Tinha amigos na sala. O gordo Jéfferson, que tinha uma cintura bastante ampla, o Matheus Roqueiro, que adorava pagode, e a Suíça, que não nascera na região dos Alpes, mas sim em Viamão, e fora batizada por sua mãe sob a graça de Aparecida, que os colegas reduziram para "Cida", depois aumentaram para "Suicida", e finalmente reduziram novamente para "Suíça".
Rubens sempre sentava, pois, na frente, como não queria ser CDF a ponto de sentar na primeira fileira, e tampouco ficar sob os holofotes da professora Maria do Carmo, que lecionava matemática e comandava aquela classe com mãos de ferro, ele resolveu se misturar e sentar na segunda fileira. Ali, tinha à sua esquerda a Suíça, à direita, o Matheus Roqueiro, atrás de si a proteção do muro de nome Gordo Jéfferson, e à sua frente, a Loraine.
Rubens jamais havia notado Loraine. Não que ela não fosse suficientemente bonita para ele, ela era. Na verdade, era bonita demais pra ele. Ele se via namorando, claro, qual moleque de quinze anos não pensaria nisso com a ebulição de hormônios que ocorria em seu corpo diariamente? Mas ele jamais havia pensado em Loraine daquele jeito. Nunca a vira como mulher, a via quase como um patrimônio do ensino médio, distante, inatingível, e, por isso mesmo, segundo o pragmatismo de Rubens, perfeitamente ignorável.
Até aquela manhã fria de julho. Todos estavam encasacados, usando várias e várias camadas de tecido para vencer o frio de quatro graus celcius que fazia nas ruas de Porto Alegre naquela manhã. Cachecóis, toucas, luvas e até cuecões e pijamas ainda sob as roupas haviam para alguns exagerados. Foi naquela manhã, em que Loraine sentou-se na frente de Rubens, como fizera todos os dias nos últimos quatro meses. Mas naquela manhã de frio glacial, aconteceu uma coisa que não acontecia em todas as manhãs. A Loraine sentou-se à frente de um entediado Rubens, e, uma vez acomodada, encurvou-se para a frente, apenas fazendo um movimento em forma de gancho com a coluna, projetando o tórax pra frente sem que o abdôme ou os quadris se movessem. E, com um movimento rápido e gracioso, ela removeu o cachecol de lã rosa-claro que lhe envolvia o pescoço longo e branco, deixando à mostra sua nuca, e em sua nuca, por Deus, em sua nuca, Rubens pôde perceber, sob a luz pálida daquela manhã de inverno que entrava pela janela do quarto andar, uma penugem dourada quase invisível deitada delicadamente sobre a pele clara da parte de trás do pescoço de Loraine.
Isso foi mais de quinze anos atrás. Se perguntarem a Rubens, ele ainda hoje não saberá o que foi que causou a promoção da beleza de Loraine de "perfeitamente ignorável", para "objeto do desejo". Ele jamais se decidiu entre a flexibilidade das costas dela, a penugem dourada sob o sol daquela manhã fria, ou a pele de pêssego de sua nuca. O que Rubens decidiu, de fato, foi que ele nunca, jamais, em tempo algum, descansaria enquanto não passeasse sôfregamente com seus lábios na pele sedosa da nuca de loraine. Foi com essas exatas palavras que Rubens anunciou seu intento à Suíça, Jéfferson e Matheus, e disse-lhes solenemente que contava com os amigos em seu intento.
Foi pensando nisso, e nisso apenas, que Rubens começou a cortejar Loraine. Primeiro tímida e desastradamente, é verdade, causando algo entre estranheza e lisonja no alvo de suas afeições.
Mas Rubens foi se refinando com o passar do tempo, e o que lhe faltava em jeito, e sutileza ele compensava com dedicação e afinco. Contava com a ajuda do gordo Jéferson e do Matheus Roqueiro e o filtro da Suíça, que lhe dizia quais dicas dos amigos podia, ou não, seguir, e lhe ajudava a ser insistente o bastante pra não ser esquecido, mas não a ponto de ser chato.
Eventualmente, com muita transpiração e um pouco de inspiração, com muito trabalho duro, e um pouco de sorte, Rubens pavimentou o caminho até o coração de Loraine. Ele conseguiu beijar com sofreguidão a nuca macia de Loraine, passar as mãos pela extensão completa de suas costas flexíveis, e ver o sol nascer sobre os pêlos dourados sob seus cabelos atrás de seus pescoço de alabastro, ah, sim...
E não foi nada do que ele esperava. E enquanto desligava o tom do seu celular ao ouvir o toque pessoal de Loraine, Rubens não conseguiu deixar de lamentar, não o fato de Loraine não ser tudo o que ele imaginava, mas o tempo e o esforço investidos em vão naquela relação.
Rubens, enquanto saía de casa pensando se iria à loja de informática ou ver um dos filmes do Fantaspoa no Cine Bancários nem sequer cogitou a hipótese de que o problema não fosse Loraine, mas sim, ele. Ou melhor, não ele, mas sim o fato de que uma relação não se encerra no começo. Pelo contrário. Ela deve seguir recebendo cuidados. Muitos, todos. Ainda mais do que antes, para manter o viço.
A nuca de Loraine, coberta de pêlos dourados quase invisíveis, exceto à luz do sol continuavam todos lá, no alto das costas flexíveis dela. O que mudara fora apenas o olhar que Rubens, aquele pseudo-nerd cretino, dedicara à eles.

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