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sexta-feira, 9 de maio de 2014

Einherjar


O Serapião estava morrendo.
Morrendo de câncer. Um tumor agressivo que lhe surgiu no cérebro, logo acima do olho esquerdo. Quando procurou o oftalmologista para reclamar da gradual perda de visão, o médico o aconselhou a procurar um neurologista. Ele levou tempo pra fazer isso, já que era meio relapso com a própria saúde, mesmo.
Quando as dores de cabeça começaram a aparecer mais frequentes e seu olho esquerdo estava quase cego, Serapião finalmente foi ao neurologista.
Ele encomendou inúmeros exames que o Serapião ficou fulo por ter que pagar, mas fez.
Quando saíram os resultados, o Serapião foi encaminhado pelo neurologista a um oncologista.
O oncologista explicou que ele precisaria fazer novos exames, culturas, biopsias e o escambau. Que era difícil julgar qualquer coisa, mas que deveria ser tudo rápido, muito, muito rápido.
Foi o "rápido, muito, muito rápido" que fez o Serapião entender que estava, e essa foi a forma como ele compreendeu tudo, fodido.
Fez os exames mesmo sabendo o que ouviria. Astrocitoma difuso em estágio avançado. Devido ao estágio de crescimento, as células malignas e o tecido saudável do cérebro já não eram lá muito fáceis de limitar o que tornava uma cirurgia particularmente arriscada.
Os médicos (eram três, um que falava bastante, muito atencioso, outro que dava pitacos com menos sutileza, mas de maneira bastante direta, o que Serapião gostava, e outro, mais velho, cabeça raspada e cavanhaque grisalho, que só olhava pro Serapião com uma expressão de gelo no rosto.) lhe recomendaram fazer os tratamentos de praxe, radioterapia, quimioterapia, lhe recomendaram que conversasse com uma terapeuta e lhe recomendaram, em última instância, que colocasse sua vida em ordem.
Serapião saiu do hospital sabendo o que faria.
Andou até a ponte sobre o arroio dilúvio na Azenha, debruçou-se sobre o para-peito e ficou olhando o lixo correr em direção ao Guaíba por vários minutos.
Não fez tratamento algum.
Passou os últimos dez meses de sua vida seguindo sua rotina como se nada tivesse acontecido.
Trabalhou, leu, foi ao cinema, pagou suas contas, contraiu outras tantas, jogou bola, jogou videogame, saiu com seu cachorro e fez tudo praticamente sem problemas.
Eventualmente a visão do olho esquerdo tornou-se quase nula. As dores de cabeça mais frequentes. Mas ele não ligou. Seguiu fazendo tudo o que sempre fez até morrer em casa, assistindo TV no canto do sofá perto de suas coisas.
Não tinha muitos grandes arrependimentos, o Serapião.
Dois... Talvez três momentos de sua vida em que gostaria de ter agido com mais sabedoria... Menos teimosia e pequenez... Dois envolvendo mulheres a quem tinha amado profundamente, outro, envolvendo um amigo que lhe era muito caro e a quem desapontou.
De resto, apenas bobagens. Pecadilho comezinhos que não fariam diferença alguma pro andamento do cosmos.
Serapião não era religioso. Não tinha medo da morte. Achava que seria como pegar no sono olhando TV, e simplesmente se desligar como um rádio velho. Nas últimas semanas de sua vida (e após a cegueira do olho esquerdo tê-lo levado a pensar em usar um tapa-olho ao estilo Nick Fury todas as semanas pareciam a última para Serapião), porém, Serapião se viu desejando que houvesse algo mais...
Ele ficou pensando em qual era a ideia de vida após a morte que mais o agradava... Não o Céu cheio de anjos, harpas e louvor dos cristãos, tampouco a Krypton/Brasília dos espíritas... Não... Serapião se agradava da vida após a morte dos nórdicos. Não o Valhalla... Mais particularmente o Folkvang dos vikings. Um céu de guerreiros que namoravam Valkírias, banqueteavam-se com mesas fartas e podiam ir até a beira da bifrost para chamar seus animais de estimação em vida para que se juntassem a ele e aos seus no tempo de glória que se seguiriam até o ragnarok... Para ir ao Folkvang bastavam três coisas, ter tido uma vida honrada, ter morrido em combate, e comprometer-se a proteger o castelo de Freyja.
Serapião sabia que se comprometeria a proteger o castelo... Estava morrendo combatendo sozinho e desarmado ao caranguejo que lhe devorava as temporas... Mas não sabia se havia levado uma vida honrada...
Antes de morrer, pensou em ligar para as três pessoas a quem achava que tinha desapontado na sua vida, e perguntado se elas o poderiam perdoar. Parecia a coisa honrada a se fazer... Mas Serapião morreu antes de tomar coragem para fazer isso.
E nós nunca soubemos se ele poderia ter-se unido aos Einherjar.

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