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quarta-feira, 12 de agosto de 2015

A Medida de um Homem


Quatro bêbados à mesa.
Já haviam ultrapassado todos os limites em que ainda se poderia dirigir de volta pra casa, até o temerário "O Ernesto dirige melhor bêbado.", de modo que estavam ali, apartados da sociedade, ébrios e resmungões até que o primeiro tivesse coragem de ir dormir sob a inevitável torrente de insultos proveniente do ato de ser o primeiro a deixar o seio (cheio de cerveja) dos amigos.
O Ernesto, aquele que supostamente dirigia melhor bêbado, já alcançara um estado de torpor em que estava mais dormindo do que acordado. Quem estivesse sóbrio e o olhasse, inclusive diria que metade da sua cara estava dormindo, já que o olho esquerdo estava fechado, e o canto da boca sob este olho jazia torto e caído, e um filete de baba estava prestes a escapar dali. Ainda assim, Ernesto permanecia sentado rijo, como se tivessem vestido sua camisa no espaldar da cadeira, e embora ele eventualmente cabeceasse o ar, logo erguia a cara parcialmente paralisada e grunhia alguma coisa em desacordo com que os demais falavam.
Os outros eram o Negão Meia-Noite, o dono da casa, o Cícero e o Bira.
O Cícero se chamada Odilei, e tinha esse apelido porque sua cabeça achatada e de dimensões avantajadas faziam os demais o acharem parecido com um cearense, devoto de padre Cícero, daí até o Negão Meia-Noite batizá-lo de Cícero, foi um pulo.
Negão Meia-Noite chamava-se Estevam, e seu apelido era devido ao tom retinto de sua pele, mais escuro que a meia-noite, segundo Cícero, que, por sinal, guardara rancor do apelido dado pelo amigo. Bira se chamava Ubirajara, em homenagem a um avô que nunca conheceu, e "Bira" era nada além da redução óbvia, o único que não tinha apelido era o Ernesto, porque era muito chato.
Eram todos homens na casa dos trinta e tantos anos, filhos de uma geração de homens criados pelas mães enquanto os pais trabalhavam, filhos da aurora de uma série de dogmas sobre criação dos filhos que embora não os tenha tornado imbecis inúteis completos como os millenials, também não fez maravilhas pela sua postura de adulto.
Todos eles se consideravam "jovens", todos eles chamavam suas namoradas e ficantes de "minha guria", todos tinham certo receio em assumir determinadas responsabilidades, e o único deles que tinha uma esposa (ao menos na teoria, já que o Bira não era casado de papel passado com a Suélen, só morava junto), acabara morando com ela por causa da insistência da própria, e, tivesse voz ativa para negar, muito provavelmente o teria feito, mas, como dito ali em cima, era de uma geração de homens criados pelas mães enquanto os pais trabalhavam, de modo que via a namorada alguns anos mais velha como uma figura de autoridade e não pôde dizer "não" pra ela ao receber um ultimato.
De qualquer forma, o Cícero, o Ernesto, o Negão Meia-Noite e o Bira haviam concordado que, àquela altura, ninguém mais ia pra casa, e que o negócio era esticar a noite do pôquer até a manhã seguinte ao pôquer na casa do Negão Meia-Noite, e ir embora no outro dia quando o único senão seria a dor de cabeça e o gosto de cabo de guarda-chuva na boca.
Entretanto, embora estivessem todos com muito sono, eles sabiam que quem sucumbisse primeiro e dissesse "vou me recolher", seria alvo de uma torrente de insultos, chamado de viado, de franchona, de bichinha, de frouxo, e nas semanas seguintes seria constantemente lembrado de que fora dormir e estragou a noite que tava indo tão bem e a conversa que estava começando a ficar tão boa.
Como ninguém estava disposto a ser esse pária, eles continuavam na mesa, terrivelmente bêbados, todos falando ao mesmo tempo, gritando frases definitivas sobre tudo, política, futebol, cinema, sexo e religião, mas falavam todos ao mesmo tempo, com as línguas enroladas, de modo que ninguém entendia nada, e só Deus sabe quantas conclusões preciosas estariam sendo perdidas ali.
Após um bom tempo nisso, calhou de o Negão Meia-Noite começar a falar enquanto os outros bebiam de seus copos (menos o Ernesto, que tentava beber com a cara torta e deixava escapar pelo canto do lábio adormecido todo o líquido que entrava em sua boca.).
Negão Meia-Noite disse:
-Somos uma geração de frouxos. De frouxos, ouviram bem? Uma corja de sujeitos que não honram as calças. Que não honram as cuecas. Que não valem o que cagam.
Os outros ficaram olhando pra ele. Graves recriminações mereciam atenção e silêncio.
-Eu tenho trinta e seis anos. - Dizia o Meia-Noite. -Com 36 anos meu pai já era casado, tinha um apartamento, uma casa na praia e três filhos... E eu? O que é que eu tenho com 36 anos? Uma namorada que eu não aguento ver mais de três vezes na semana, e um aluguel pra pagar todos os meses por um apartamento onde eu nem gosto de morar...
Soluçou.
Bira chegou a levar a mão ao ombro do Negão para consolá-lo, mas percebeu que não era choro, era efeito do generoso gole de cerveja que ele tomara para pontuar sua frase, e que se transformara em um arroto.
O Cícero bateu a caneca na mesa e disse:
-Eu tenho trinta e sete. Com trinta e sete meu pai já tinha matado dois homens e cumprido pena. Eu não brigo desde a segunda série, porque quando briguei, apanhei e fiquei com medo de me machucar. Se alguém ameaça me bater, eu me encolho e fico com vontade de fugir. Meu pai, se alguém ameaçasse bater nele, quebrava uma garrafa na cara do sujeito e degolava ele com os cacos pontigudos do gargalo...
-"Ponchiaguds". - corrigiu o Ernesto, meio dormindo.
-Que se foda. - Esbravejou Cícero. -Se tu corrigisse meu pai, ele te dava um soco na cara e uma cuspida no estômago... Ou o contrário... Mas eu? Eu esbravejo porque tu é meu amigo e eu acho que metade de ti morreu e sei que tu não vai me bater...
Deixou a cabeça pender sobre os braços cruzados na mesa e todos fizeram alguns segundos de silêncio até ele erguer a cabeça e dizer, com a voz embargada:
-Mas eu não fui dormir!
Ergue-se um breve burburinho de desaprovação dos demais.
Bira falou:
-O meu pai... Qualquer coisa que estragava em casa, ele arrumava. Qualquer coisa. Chuveiro, telefone, rede elétrica, fogão, máquina de lavar... Tudo. O véio desmontava, e reconstruía sem deixar sobrar peça. Descobria o que não tava funcionando, substituía, e o negócio passava mais meia dúzia de anos sem dar problema... Tudo, menos carro. O carro o véio levava ao mecânico. Mas meu vô? Meu vô consertava tudo o que meu pai consertava e carro, também. Motor a diesel... Desmanchava, limpava peça por peça, e montava de novo. Épico.
Apoiou o queixo na mesa e continuou:
-Eu não sei nem trocar pneu. Não sei nem trocar fusível. Se estraga alguma coisa em casa, a Suélen nem olha pra mim... Ela diz logo "tem que chamar um homem pra arrumar a tomada do quarto". Porque eu não sei arrumar a tomada... Ou porque eu não sou homem? Se eu fosse homem, arrumaria a tomada do quarto, chamaria a Suélen pra testar, e quando ela visse que estava funcionando, eu comeria ela de quatro, ali, na frente da tomada. Sem ligar se ela gozou ou não. Ia gozar e me levantar, afivelar o cinto e ir beber uma cerveja vendo o futebol...
Bebeu um gole de cerveja e fitou os outros. Todos sérios, algo deprimidos. Menos o Ernesto, parcialmente morto, com seu olho fechado e a boca torta. O Negão Meia-Noite falou:
-Nós não temos aquilo que faz um homem, gurizada. Não temos hombridade. Não temos contato com o barro, não temos sangue debaixo das unhas... Somos uma corja de filhinhos da mamãe criados a Ovomaltine e leite com pêra... Não construímos nada...
-Não matamos ninguém, não sabemos brigar... - Disse Cícero.
-Não somos capazes de consertar nada... - Completou Bira.
-Nhaumjabemuhdobráobostrzapleibó...? - Resmungou Ernesto.
Os outros olharam pra ele.
-Quê? - Perguntou Meia-Noite.
-O bstr da pleibó... - Disse Ernesto, o olho fechado, a boca pendendo no canto esquerdo, com as palavras escapulindo semi proferidas.
-Que é que ele tá dizendo? - Perguntou o Cícero, rindo.
-O bosser da pleibó! - Rosnou Ernesto, articulando com dificuldade.
-Pôster da Playboy? - Perguntou Bira, incrédulo.
-Éeeeeeh... - Aquiesceu Ernesto. -U homê tequissabê dobrá o bostr da pleiboh...
Os outros agora se juntavam ao redor do Ernesto como cientistas ao redor de uma tumba recém aberta.
-Um homem o quê, Ernesto? - Perguntava Negão Meia-Noite, batendo de leve no rosto zumbi do amigo.
Ernesto suspirou impaciente:
-Dbrá o posser...
-Um homem tem que saber dobrar o pôster da Playboy! - Disse o Bira erguendo os braços.
-Iss... - Concordou o Ernesto. -É zóuqui um hômi naumpod passá a vizem aprendê zuzinhu.
Os outros três se entreolharam. Cícero falou:
-Negão, tu tem uma Playboy aí?
Meia-Noite sorriu:
-Mas ah, se não tenho...
Saiu à procura. A verdade é que com o advento da internet, dos smartphones e tablets, Playboy deixara de ser um artigo de primeira necessidade na casa de um homem, mas Negão Meia-Noite ainda tinha uma, que pra ele, era especial. A última que comprara:
A da Cléo Pires.
Catou da sua estante de revistas o volume grosso típico das edições de aniversário, com a capa dominada pela atriz espraiando-se lânguida, e a exibiu como se fosse um troféu.
Abriu a revista com facilidade na sessão do pôster, e desdobrou a foto em três seções, cada uma do tamanho de uma página, onde ela posava com as mãos acima da cabeça apoiando-se contra uma parede cor-de-rosa.
Habilmente, Negão Meia-Noite dobrou novamente o pôster, deixando-o oculto dentro da revista sem nem uma pontinha mais para fora das páginas.
Solenemente, ofertou a revista a Cícero, para que ele tentasse.
Cícero resfolegou. Estava bêbado e fazia muito tempo desde a última vez que vira uma Playboy. Fora o segundo ensaio da Adriane Galisteu.
Respirou fundo, abriu o pôster ignorando completamente a nudez da modelo, e voltou a dobrá-lo com cuidado, sobrepondo as páginas com esmero, e, com um suspiro, fechou a revista, constatando aliviado, que não deixara sobrar nenhum pedaço do pôster para fora das páginas, e nem dobrara a foto gigante fora das marcas apropriadas.
Estendeu a revista ao Bira, que abriu o pôster e deu uma boa olhada, dobrando os cantos da boca pra baixo e balançando a cabeça em sinal de aprovação perguntando-se porque não assistia mais novela. Então dobrou o pôster com cuidado. A seção central sobre a primeira, colada à lombada da revista, e a última colocada sobre as demais até que também se enfiasse no regaço de onde saíam as páginas, para então fechar a publicação, e ver que não havia nada fora de lugar, em nenhuma espécie de deformação devido à má dobradura.
Bira largou a revista sobre a poltrona ao lado da estante e abraçou Meia-Noite e Cícero, os três saltitando como se tivessem marcado um gol.
Eram, afinal de contas, homens de verdade!
Podiam não saber consertar coisas, não ter erigido patrimônios, e serem incapazes de vencer uma briga, mas por Deus, todos sabiam como sobrar apropriadamente um pôster da Playboy.
Não eram homens de negócios, homens habilidosos, e nem homens de ação, mas eram homens!
Aliviados, se despediram rapidamente, e Meia-Noite foi pro seu quarto, de onde voltou com lençóis para os amigos forrarem o sofá e o colchão inflável, e, desejando boa-noite a todos, recolheram-se.
Apenas após uma meia hora o Ernesto percebeu, ao esquadrinhar o ambiente com seu olho acordado, que os amigos haviam ido dormir, e, antes de ele próprio fazê-lo, recriminou-os com a boca torta:
-Bandiviado fidasputa mduxaru zuzinho nssa porradssa mes benaor auia cunvers taficanu boa...

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