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quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Na Nossa Cara o Tempo Todo


Olhava os DVDs e Blu-Rays na livraria Saraiva, junto à prateleira pensando se devia investir uns trocados no box da trilogia do Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan em formato de alta definição. Olhava o box diante de si enquanto estalava os dedos, vestido com uma camiseta do Capitão-América, jeans e tênis vermelhos.
Parou momentaneamente de estalar as juntas, e, enquanto apanhava a caixa com os filmes, percebeu que ainda ouvia o ruído característico de dedos sendo forçados para causar o ruído.
Ouviu os dois estalos mais agudos do dedo mínimo, dois de um anelar, mais um do médio, outros dois do indicador, e o estalo grave de um polegar.
Absorto, riu consigo mesmo ao perceber que era exatamente a ordem, e o tipo de movimento, que ele fazia com os próprios dedos, ao menos na mão esquerda. Na direita, não conseguia estalar o dedo mínimo, devido à uma fratura jogando futebol anos antes.
Aguçou os ouvidos para tentar escutar a sequência dos estalos. O grave do polegar, dois do indicador, médio, dois do anelar, e silêncio.
Ergueu as sobrancelhas, curioso.
Quem estaria estalando os dedos exatamente como ele fazia?
Virou-se paulatinamente, como quem não queria nada, para olhar em volta. Percebeu, atrás de uma prateleira de pouco mais de metro e meio que os separava, uma moça.
Estatura mediana, cabelos negros, pele muito branca. Usava óculos de grau de armação preta quadrada e simples, vestia uma camiseta azul do Capitão-América, calças jeans e um tênis All-Star vermelho.
Chegou a sorrir ao perceber que a desconhecida e ele, estavam trajados como se fossem um par de vasos. Viu que a moça havia parado de estalar os dedos e segurava um box de blu-ray da trilogia O Senhor dos Anéis.
Achou interessante a combinação de visual e gosto cinematográfico dela. A olhou com mais atenção. O cabelo, preto, era grosso e encaracolado. Ele logo percebeu que era bem cuidado e que, se ele tivesse paciência pra cuidar do cabelo, o dele poderia ser daquele mesmo jeito. As sobrancelhas dela eram bem desenhadas, visivelmente tiradas fio a fio diante de um espelho com esmero. Aquele arco que elas desenhavam deixavam claro que, sem o cuidadoso trabalho da pinça, ela teria os proverbiais "maranduvás" sobre os olhos.
Não era exatamente bonita, mas estava longe de ser feia. Estatura mediana pra alta, alguns quilos acima do peso, mas uma construção física correta. Em alguns círculos, seria considerada atraente. Ela ergueu os olhos do Blu-Ray e olhou pra ele, direto nos olhos, olhos castanho-escuros iguais aos dele, e uma solitária pinta embaixo do olho esquerdo.
Ele, sem saber o que fazer diante do olhar dela, sorriu sem jeito, erguendo as sobrancelhas. O gesto foi repetido à exatidão por ela.
Foi quando ele teve certeza:
Deparava-se com sua contra-parte feminina no shopping.
Como se um estranho portal dimensional se houvesse aberto por perto do Barra Shopping Sul, e de lá, daquela realidade alternativa, tivesse saído, inadvertidamente, sua versão feminina. Igual a ele até os últimos detalhes, exceto que em gênero invertido.
Ficou com ânsias de perguntar a ela como fora sua vida.
Se ela fora muito chegada a seu avô, se tivera uma relação turbulenta com a mãe e grande ternura pelo pai, se tinha um irmão do meio e uma irmã mais nova, se seu primeiro namorado fora um loiro baixinho que quase não falava, se seu segundo namorado era um camarada horroroso de feio, mas muito gente-boa, se ela já havia encontrado o amor de sua vida e era um sujeito muito alto, com quem não tinha nada em comum...
Percebeu-se atraído pela contraparte.
Achou estranho, mas não conseguia evitar. Julgou que era natural já que a atração surge entre criaturas análogas, e haveria criatura mais análoga a ele do que ele próprio em gênero inverso?
Ficou imaginando as implicações morais de se sentir atraído por uma versão feminina de si mesmo, e as implicações práticas. Sexo entre os dois seria de alguma forma reprovável? Uma espécie de incesto, ou apenas uma masturbação tremendamente elaborada? Haveria terror caso eles se casassem e tivessem filhos? Nasceria uma ninhada dele próprio, crianças que, à despeito do intervalo entre o nascimento de cada uma, pareceriam gêmeos, já que, aparentemente os dois partilhavam o mesmo material genético exceto por um X a mais ou Y a menos? Isso não geraria filhos defeituosos? Versões dela e dele ao estilo Slot, de Os Goonies?
E conseguiriam chegar a tanto, ou a reação dos dois ao tentarem contato íntimo fosse como a de Marty McFly ao beijar a versão jovem de sua mãe em De Volta para o Futuro?
Ele não soube dizer.
Estava hipnotizado olhando nos olhos de si próprio. Percebeu que passara vários segundos olhando para a moça sem dizer nada, com ela sustentando-lhe o olhar. Perguntou-se se era possível que ela e ele tivessem pensado exatamente a mesma coisa naquele momento, e se ela perguntaria já que era mulher e, em tese, seria mais verbal que ele.
Mas ela não disse nada. Apenas sorriu, virou as costas e começou a andar em direção aos videogames.
Ele ficou olhando, então percebeu que precisava perguntar. Não conhecia outro caso semelhante na ciência ou na literatura, precisava falar com ela, ouvir-lhe a voz. Fez a volta na prateleira que os havia apartado e correu até onde a perdera de vista, e a viu abraçada a um sujeito de cabelos loiros muito finos. Era algo magricela, mas tinha um rosto bonito, olhos azuis e era alto. Bem mais alto que ela.
Refreou-se ao vê-la acompanhada, e fincou olhos no homem junto dela, que se virou e o olhou, e então olhou pra ela, como que percebendo a inegável semelhança.
Sua versão feminina, que estava abraçada à cintura do loiro alto, o olhou, e sorriu.
-Vamos? - Disse para o loiro. -É quase hora do nosso filme.
O loiro maneou a cabeça em sinal de positivo, e pôs-se a andar.
Deram alguns passos e ela parou, olhou pra trás, e sorriu dizendo:
-Estava na minha cara o tempo todo...
Abraçou o altão novamente, e andou pra fora da loja, deixando-o aturdido para trás.

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