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sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Melhor Lembrança


-Pensa na tua melhor lembrança. - Ela sugeriu, cobrindo-lhe os olhos e afagando-lhe o cabelo molhado com os dedos finos.
Ele estava deitado, de barriga pra cima na cama dela, no quarto dela, coberto com nada além do lençol vermelho dela. A cabeça dele, estava apoiada na coxa fina e branca dela, e ele tentou se remexer pra tirar o cabelo molhado da perna dela, mas ela o deteve.
-Deixa. - Disse. -Pensa na tua melhor lembrança.
Ele mexeu as sobrancelhas sob a mão dela como que para mostrar que estava confuso.
-Melhor lembrança... Em que sentido?
Ela, mantendo o tom de voz calmo, disse:
-Qualquer um. Só pensa... E me diz onde tu foi mais feliz...
Ela sorriu maliciosamente, e se esgueirando de sob a mão dela, virou-se para beijá-la no púbis.
-Fui muito feliz aqui mesmo, não faz nem meia hora...
Ela deitou pra trás, apoiando-se nos cotovelos, mas mantendo as pernas em posição de lótus, dando-lhe espaço para a manobra. Sorria, mas ele percebeu que não era aquilo o que ela queria.
Pudera.
Acabavam de sair de um banho demorado que fora precedido por uma sessão de mais de uma hora e meia, justamente, daquilo. Ele a beijou no púbis, entre os pelos macios, subiu beijando-lhe o ventre, o umbigo, as costelas evidentes que se fechavam no topo do estômago. Beijou-lhe um seio, e então o outro, e o peito, o ombro, o pescoço, a bochecha e os lábios.
Passou a mão no cabelo fino dela, e a trouxe para perto, beijando-lhe a boca novamente. Beijou por alguns segundos, massageando-lhe a nuca com a mão sob os cabelos dela, então, descolou os lábios dos dela e sorriu.
Puxou o elástico de cabelo vermelho ensopado do pulso, e amarrou um rabo de cavalo bem alto na cabeça, com mais uma volta, transformou o conjunto num coque improvisado, mas eficiente.
Ela olhou pra ele o tempo todo. Um meio sorriso no rosto.
-Tu nunca fala sério comigo. - Declarou. Não estava acusando, estava declarando. Como se fosse uma verdade à prova de contestação.
Continuou:
-Tudo o que eu sei de ti é empírico. É o que eu posso descobrir a partir de observação. É muito difícil conviver com uma pessoa assim. Eu falo tudo de mim. Te procuro, choro no teu ombro, me abro, te deixo saber tudo sem tu nem precisar perguntar. Eu me entrego inteira, verbalmente e por escrito, e te dou tanta informação, que tu se torna a pessoa que mais sabe de mim. Aquela pessoa pra quem eu não tenho nenhum segredo. Isso te coloca numa posição de vantagem tão grande entre nós que é até injusto. Tu sabe, tu viu, e por isso tu sempre sabe o que me dizer porque tu sabe tudo o que eu penso sem esforço. Eu entrego. Aí, com duas palavras, eu te deixo entrar na minha casa, subir na minha cama, tirar minha roupa e me comer. A gente faz isso, toma banho, e tu deita e eu penso que esse é um momento pra equilibrar as coisas. Um momento em que tu vai estar mais acessível, mais relaxado, mais aberto... Que tu vai estar pelado aqui comigo e nesse momento tu não vai ter nenhuma barreira, afinal, tu tava dentro de mim há meia hora atrás, e isso quer dizer intimidade. E aí...
Ela parou e olhou pra ele. Ele a encarava sério. Ela sorriu triste e continuou num suspiro:
-Aí eu te peço um insight... É uma manobra arriscada, eu sei. Tu não é o tipo de cara dos insights verbais... - A voz dela embargou brevemente, mas ela respirou fundo, engolindo em seco, e continuou. -Tu geralmente escreve... Eu te pedi isso. Uma lembrança. Não era pra me dar. Era só pra dividir comigo. Sem analisar, sem fazer piada nenhum grande alarde, sabe...? Só... Dividir. E o que eu consigo com isso? Te fazer ir embora. Tu tenta me comer de novo, e eu não tô no clima, e aí tu começa a te arrumar pra ir embora. E eu fico me sentindo um lixo. Porque tu me come e sai, e eu fico aqui, pensando no que eu fiz de errado, e eu não consigo entender, porque tu não vem com manual, eu tô tentando, é assim contigo, tentativa e erro. E eu erro e erro e erro, e contigo eu só erro, e... Sabe? Eu não sei mais... Não sei mesmo. Desculpa a tempestade de merda, tá? Não era pra ser assim. Mas eu obviamente não sei como era pra ser, porque se soubesse tu não ia estar procurando a tua cueca, que, por sinal, ficou lá na sala.
Ele levantou da cama e saiu do quarto.
Ela ficou deitada na cama, virou-se de lado e se cobriu. Ficou segurando o choro, esperando que a porta batesse pra chorar. E aí, meu amigo, azar do goleiro, ela ia chorar, mesmo, de soluçar, de os vizinhos pensarem que ela tava apanhando. Porque, que merda, aquilo era muito ruim e ela não ia fingir que tava tudo bem quando não tava.
Ouviu um barulho vindo do banheiro. Era a torneira abrindo, e o armário do espelho.
"Filho da puta." Ela pensou.
"Vai escovar os dentes antes de ir embora pra não sair com bafo de buceta? Se ele colocar aquela cara barbuda nessa porta eu jogo um negócio nele, ai se jogo.".
Ele, de fato, colocou a cara ali de novo. Não só a cara. Entrou no quarto de novo, ainda completamente pelado, mas trazia a cueca na mão. Colocou a roupa íntima sobre a poltrona ao lado da cama, e apagou a luz, o que fez com que o quarto se inundasse da luz amarela das lâmpadas de mercúrio da iluminação pública quatro andares abaixo.
Puxou o lençol e deitou do lado dela, encostando o corpanzil quente contra as costas dela.
Pousou a mão pesada sobre o ombro dela:
-Eu tinha uns nove anos... Ficava na casa da minha avó durante a semana porque era muito perto do colégio, e meus pais não tinham grana, meu pai fazia muita merda naquela época, foi um período em que ele esteve viciado em drogas, bebendo muito, então faltava grana... Como meu irmão mais novo tinha acabado de nascer, era pesado pra minha mãe cuidar dos três com pouco dinheiro, então... Era... era... Mais fácil pra todo mundo, sabe? Minha mãe e ele cuidavam só da minha irmã e do meu irmão recém-nascido, e eu ficava colado na escola, e aliviava o lado deles financeiramente.
Pra mim era tipo colônia de férias mesmo em época de aula. Minha vó me dava brinquedos, roupas, eu podia andar sozinho por aí... Ler meus gibis, brincar com massa de modelar e meus Thundercats. No final da tarde minha vó brincava comigo, depois eu assistia os desenhos da Hanna-Barbera na Manchete enquanto brincava com meus bonecos e esperava a janta.
Ele tirou a mão do ombro dela, e apoiou a cabeça sobre o punho.
-Acho que minha lembrança mais feliz seria dessa época... Um dia qualquer daqueles, em que eu estivesse sentado no chão da sala da minha vó. Assistindo Herculóides ou Jornada nas Estrelas na TV, brincando com o Panthro e o Lion-O enquanto minha vó fritava galinha na cozinha pra janta. Ela fazia uma galinha frita muito boa, o cheiro enchia a casa e só de lembrar, eu fico salivando... Aí, o meu avô chegava do trabalho, a gente sentava à mesa, e via novela enquanto comia.
Ele silenciou um momento. Como que fazendo força pra lembrar:
-Mas sabe... As tardes eram boas... Mas as noites, não. As noites terminavam cedo demais na casa da minha vó. Antes das dez ela se recolhia. Meu avô antes disso. E eu ficava sozinho no quarto, olhando a lua pela janela... E não era bom. Então... Talvez tenha sido minha adolescência, meus quinze anos, quando eu era um guri bonitinho e tinha muitos amigos no colégio, e as gurias queriam ficar comigo... E depois da aula eu encontrava meus amigos da rua e nós íamos jogar bola, ou ao cinema, ou só ficar conversando na esquina... Meu pai tinha resolvido os problemas dele, a grana não era tão curta... Mas ao mesmo tempo, naquela época eu fiz muita coisa de que não me orgulho. Minha personalidade ainda estava em formação e eu ainda não tinha discernimento de certo e errado como tenho hoje... E lembrar daquele tempo nem sempre é bom.
Ele se debruçou sobre ela, e viu que os olhos dela haviam transbordado. Ela tinha lágrimas escorrendo dos olhos e molhando a fronha verde-esmeralda do travesseiro.
Ele secou os olhos dela, mais como quem diz "Não chore" do que para efetivamente secá-los. E continuou:
-Talvez tenha sido a tarde de sábado que eu passei sozinho em casa com a minha primeira namorada. Linda, alta e esguia do meu lado... Achando que ela e eu envelheceríamos ao lado um do outro, nos casaríamos, teríamos filhos e repetiríamos aquilo todos os dias dos anos vindouros... Mas eu era muito imaturo, e não tinha pra oferecer a segurança e a constância de que ela precisava... Ou as entradas nas festas com a minha segunda namorada, que era sempre a menina mais bonita do salão e fazia eu me sentir bem comigo mesmo por estar do lado dela, os dois altos, brancos e vestidos de preto como se fôssemos o Adam e a Eve de Amantes Eternos... Mas ela e eu não tínhamos nada em comum, passávamos o tempo todo discutindo e eu odiava aquelas festas...
Ele a virou pra si:
Ou talvez tenha sido com a minha terceira namorada. Que conheci na faculdade, e que era muito bonita, divertida e espirituosa e muito mais inteligente do que eu. Por quem eu briguei e quase perdi minha matrícula, que me conheceu quando eu me tornei quem eu queria ser, e até me ajudou a formar de vez e de fato minha personalidade... Mas ela foi embora e eu nunca soube o que foi que eu fiz de errado... Pode ter sido trocar presentes de Natal no banco da praça com a minha quarta namorada, ouvindo o tema de Friends no MP-3... Ou assistir desenhos com a minha quinta namorada no domingo à tardinha na casa dela... Mas eu coloquei tudo isso a perder, também. E, por mais que as outras pessoas não pudessem ver, eu podia. Então, esses momentos felizes todos, também desembocam em momentos de tristeza...
Ela ainda chorava. Ele sentiu, também, uma lágrima fugidia lhe escapar do olho, e sumir em sua barba:
Eu não consigo decidir qual foi meu momento mais feliz, qual é a minha melhor lembrança. Eu não sei eleger um. É impossível pra mim. Minha mãe sair do coma? Foi ótimo. Mas não era felicidade genuína. Era alívio após um momento traumático. É como ficar feliz depois de ter sido atropelado por não ter ficado paraplégico. Ganhar dinheiro? Viajar? Eu não consigo ver isso... Essas coisas, como felicidade maior, lembrança melhor... Eu sou um sujeito de drops. Acho que os pequenos momentos de felicidade que eu designei pra ti, juntos, são a melhor lembrança da minha vida. Um passe de calcanhar que funcionou numa pelada no parque, um feriadão na praia com os amigos, um primeiro beijo com sabor de halls de cereja, passear sozinho nos cômoros de areia na praia, levar meus irmãos ao cinema... Eu não posso eleger um em detrimento dos outros. Mesmo estar aqui, contigo agora... Não é melhor do que o que eu já fiz e do que o que já me aconteceu. Não importa quão bom seja.
Inclinou-se pra frente e a beijou na boca.
-Boa noite, meu amor.

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