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quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Todo Mundo Tem Problemas


Todo mundo tem problemas.
É uma máxima. O mais comum dos lugares-comuns. E, diga-se de passagem, uma verdade irretorquível. É a mais pura das verdades. Realmente.
Todo mundo tem problemas.
Mas não é apenas para afirmar o óbvio que se presta essa máxima. Ao dizer que todos têm problemas, o que se quer dizer é que tu não deve se preocupar com os problemas alheios, mas sim com os teus próprios. Quer dizer que tu não deve ficar lamentando pelos outros, quando tu tem tuas próprias questões a resolver, mas na infância, eu não ligava pra essa máxima, e nem pra verdades irretorquíveis, e eu era particularmente sensível.
A visão de alguém triste me incomodava.
A visão de alguém faminto, passando necessidades, mais ainda. Eu literalmente perdia a fome ao ser confrontado com a fome de outrem. Era automático.
Certa feita, num dia qualquer, logo que o McDonald's chegou ao Brasil, minha avó me levou ao que, então, acredito que fosse a única loja da rede em Porto Alegre. Ficava na Praça da Alfândega, perto dos antigos (e saudosos) cinemas Imperial e Guarani.
Antes que entrássemos na lanchonete, fomos abordados por diversos meninos de rua, magros e esfarrapados, que suplicavam por hambúrgueres como os que viam as pessoas comendo através das janelas.
Passamos reto pelos meninos, fizemos nosso pedido, e, ao recebê-lo, nos sentamos à mesa. Mas a mesa era próxima da vitrine, e lá de dentro eu enxergava os meninos famintos na rua.
E não consegui comer. Disse à minha vó que não estava mais com vontade, e ela me olhou reprovadora e disse:
-Tu quer dar o sanduíche pra aquele guri na rua que eu sei.
Ela se levantou, visivelmente brava, apanhou a bolsa e me levou embora, permitindo que, no caminho, eu desse a caixa com o hambúrguer e as fritas ao menorzinho dos meninos que se amontoavam diante da lanchonete.
Eu fiquei, então, mais satisfeito por ter dado aquele hambúrguer a um faminto, do que jamais teria ficado após comê-lo.
Na época em que o Documento Especial passava no SBT, eu fiquei literalmente semanas, chorando antes de dormir por causa da visão de uma criança de colo recebendo água da mãe em uma colher de chá durante uma reportagem sobre a seca no nordeste do Brasil.
Semanas.
Durante o dia eu ia à escola, brincava, lia meus gibis. Mas à noite, ao me deitar e colocar a cabeça no travesseiro, eu ia fazer minhas orações (eu acreditava em Deus quando era pequeno, e rezava antes de dormir), era assaltado por aquela imagem. A mulher, aparentando muito mais idade do que realmente tinha, segurando aquele bebê tão pequeno no colo, tentando fazê-lo tomar água da colherinha... E a notícia, narrada por Roberto Maya, de que a criança morreria alguns dias mais tarde, aquilo me tirava o sono, me fazia chorar de escorrer lágrimas.
Eventualmente, essa minha faceta ficou mais evidente para meus pais e avós. E eu comecei a ouvir o mantra de que todo mundo tem problemas.
Em casa mesmo, minha família tinha vários. Problemas financeiros, de saúde, de comportamento... Mas pra mim, um teto sobre a cabeça, três refeições por dia, roupas e água e energia elétrica eram uma benção, mesmo que as roupas eventualmente fossem de segunda mão, vez que outra faltasse uma refeição, ou que a energia elétrica não fosse lá tão constante... Ser confrontado com tanta gente que tinha tão menos... Me fazia sentir afortunado.
Claro... O tempo passa, as pessoas crescem, e essa capacidade de empatia se desvanece. Nós não aprendemos que "todo mundo tem problemas", apenas que os nossos são mais importantes.
Deixar de comer pra alimentar um faminto deixa de ser um ato que gere satisfação, e se torna uma impensável tolice. Porque é que eu, que me esfalfo trabalhando desde os 14 anos de idade, vou deixar de comer pra alimentar um vagabundo?
Perder o sono com a tragédia de alguém distante se torna impraticável, à medida em que sempre há uma tragédia ocorrendo em algum lugar, e hoje em dia tomamos conhecimento de todas a ponto de ficarmos anestesiados.
Os nossos próprios problemas rugem na nossa cara o tempo inteiro, e não sobra um minuto sequer para suplicar a um poder maior por ajuda, pois se há um poder maior, ele parece não se preocupar com nada do que acontece por aqui. Estamos por nossa conta, e é cada um por si.
Todo mundo tem problemas, e eu tenho que cuidar dos meus.
Mas de vez em quando, é difícil não perceber os problemas alheios... Hoje mesmo, havia um homem sentado na calçada perto de onde eu trabalho. Os braços apoiados nos joelhos, o rosto escondido no espaço entre os antebraços. Suas mãos e pés muito sujos, eram testemunho do trabalho de alguém que passara horas batendo pé, de chinelos de dedo, procurando nos contêineres de lixo por material reciclável que enchia o carrinho de super-mercado que ele carregava consigo.
Os cabelos dele estavam limpos e bem cortados, suas unhas sujas, mas aparadas. Não era um vagabundo. Era um trabalhador. Alguém que tivera menos sorte do que eu, ou tu, ou a maioria das pessoas que nós conhecemos.
Ele ficou sentado um bom tempo ali. Eu o vi duas ou três vezes da janela do serviço antes do almoço. E quando o meio-dia chegou, eu estava ansioso para passar por aquele sujeito e oferecer a ele uma garrafa de água gelada nesse dia calorento. Talvez, algum trocado para que ele almoçasse...
Saí com a garrafa de água na mão, mas o homem não estava mais lá.
E enquanto eu comprava meu almoço, ele já havia desaparecido da minha mente, como desaparecera o menino que me pediu um hambúrguer anos atrás, ou o bebê que morreu de desidratação na edição Vidas Secas do Documento Especial...
Todo mundo tem problemas, mas os meus são mais importantes pra mim. Os teus, são mais importantes pra ti. E nessa toada, todos nós morremos sozinhos, sem jamais receber a ajuda de ninguém...
É um mundo muito, muito triste esse em que nós vivemos.

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