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sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Resenha Filme: Você Nunca Esteve Realmente Aqui


Fazia já bastante tempo que eu estava com vontade de assistir Você Nunca Esteve Realmente Aqui, longa de Lynne Ramsay (Precisamos Falar Sobre Kevin), o circuito reduzidíssimo do filme quando estreou no Brasil em agosto não ajudou, e o desinteresse de Paulo, dono da locadora de que sou sócio (talvez a última locadora em Porto Alegre?) no filme, somado ao preço de dezessete reais e noventa centavos do filme no Now da Net, me fizeram crer que eu só conseguiria assistir ao filme quando ele passasse na sessão de filmes indies do Max Prime, como ocorrera com O Lagosta.
Mas ontem descobri o serviço do Google Play Video na TV, e encontrei Você Nunca Esteve Realmente Aqui para alugar em full HD por módicos seis e noventa (mais barato que uma locação de DVD na locadora. Toma essa, Paulo.), e passei minha noite na companhia de Joaquin Phoenix.
Ou melhor, de Joe.
Joe é um veterano de guerra que trabalha como matador para um detetive particular. Joe, porém, escolheu um nicho específico: Ele resgata mulheres vítimas de abuso, geralmente meninas vítimas de exploração sexual. E Joe criou a fama de entregar o que lhe é pedido, e ser veemente na violência que usa para fazê-lo.
Quando o conhecemos não podemos ver Joe inteiro. Apenas fragmentos. Seu rosto contorcido em um grito mudo embalado em plástico. Suas mãos apanhando os objetos de seu ofício após mais um trabalho bem sucedido. Um rolo de fita adesiva, um colar com o nome de uma menina, um martelo sujo de sangue. Não há panorâmica, vemos apenas fragmentos da cena. É melhor se acostumar. Nada é entregue de bandeja em Você Nunca Esteve Realmente Aqui.
Joe é um sujeito de estatura mediana, mas tem uma constituição sólida. Braços musculosos e cobertos de cicatrizes. Uma barriga paternal. Uma barba espessa e grisalha. Cabelos longos presos em um pequeno rabo de cavalo. Não é alguém com quem se mexeria na rua.
Algo horrível acabou de acontecer, mas Joe não está abalado. Ele é o agente de parte daquele caos. Pra ele, só mais um dia no escritório.
Mas a vida de Joe não é apenas violência. Ele vive no Brooklyn com sua mãe idosa (Judith Roberts).
Joe cuida da mãe, que começa a apresentar sinais de demência senil. Ele a coloca na cama. Ajuda com as tarefas domésticas. Brinca e faz piadas. A despeito da violência que sabemos que Joe é capaz de entregar, ele é carinhoso com a mãe, ainda que, eventualmente, algo reticente.
Eventualmente Joe é contratado para resgatar a filha de treze anos de um senador em campanha eleitoral (Alex Manette).
A menina, com um histórico de fugas de casa caiu nas mãos de um grupo de exploradores de menores e está sendo mantida em um bordel oculto em uma bonita "townhouse" Nova Iorquina.
Após uma breve preparação que inclui o aluguel de um automóvel, compra de refrigerante e água, fita adesiva e um novo martelo, Joe está pronto para a ação. Ele observa a casa, descobre os pormenores de seu funcionamento, e age com extrema violência resgatando a jovem Nina (Ekaterina Samsonov) e punindo brutalmente os seguranças e frequentadores do local no processo.
Mas após concluir o serviço, Joe se vê envolvido em uma conspiração que o faz embarcar em uma jornada de pesadelo, conforme seu mundo desaba e ele é arrastado para o inferno embalado pelos traumas que é incapaz de superar enquanto precisa decidir se essa é uma jornada rumo ao fim ou à redenção.
Não se deixe enganar pela premissa que imediatamente traz à mente thrillers de ação descerebrados. Você Nunca Esteve Realmente Aqui é exatamente o oposto. Há pouquíssima ação, e muitíssimo cérebro.
Talvez porque o longa escrito e dirigido por Lynne Ramsay (a partir do livro de Jonathan Ames) seja menos uma história e mais um estudo de personagem. O ponto de vista de Joe é a única coisa que temos para trabalhar. Se ele não sabe ou não viu, nós também não sabemos e nem vemos. As únicas coisas que sabemos sobre o seu passado são as lembranças que ele não consegue manter ocultas. Pequenos fragmentos que estão ali, não para nos dar qualquer vislumbre do background do protagonista, mas para assombrá-lo, e nós com ele. O pai abusivo que aterrorizava a mãe com um martelo (que Joe, adulto, transforma em uma ferramenta de retidão usada para punir os maus), o tiro em uma criança que agoniza no oriente-médio, o container cheio de mulheres mortas. O passado de Joe não vai além disso porque ele não está tentando lembrar, mas esquecer, e essas poucas memórias surgem sem convite e são imediatamente afugentadas. Joe não quer reviver nada. Joe mal quer viver. Ele flerta com a ideia de soltar uma faca afiada feito a língua do diabo na própria garganta. Ele fantasia sobre dar um tiro na própria boca. Ele é um veterano ansioso pela morte, mas decide que não pode morrer ainda. Joe não é um homem, mas a soma de seus ferimentos e traumas tentando encontrar propósito.
Da mesma forma, Você Nunca Esteve Realmente Aqui é a soma de cenas tão distintas quanto o momento em que Joe e sua mãe cantarolam juntos polindo a prataria ou a sequência que vemos através de câmeras de vigilância quando ele esmigalha a cabeça de pessoas a marteladas. É lírico e poético em um momento, uma explosão de brutalidade no seguinte.
Músicas pop surgem contrapondo a ação, e a invasiva trilha sonora de Johny Greenwood pulsa para nos oferecer um vislumbre da sobrecarga sensorial experimentada por Joe nos momentos de tensão enquanto a cinematografia de Thomas Townend nos obriga a encarar closes de mãos, dedos, olhos em imagens propositadamente granuladas para nos colocar dentro desse mundo porque Lynne Ramsay remove qualquer vestígio de gordura de seu script, mantendo o diálogo esparso, quase raro, e obrigando o espectador a encontrar seu próprio caminho guiado apenas pela performance de Phoenix, para nossa sorte, um dos melhores atores em atividade no cinema.
Com um começo desnorteador e um final enigmático entremeado por lirismo e brutalidade, os econômicos oitenta e três minutos de Você Nunca Esteve Realmente Aqui são difíceis, desafiadores, até pretensiosos, mas nem por isso menos brilhantes.
Não é pra todo mundo. Mas é um dos melhores filmes do ano.

"-Joe, acorda. Está um dia lindo.
-Está mesmo um dia lindo."

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